Enquanto os holofotes mundiais se voltam para os desdobramentos capítulos das prisões dos sete executivos da Fifa – inclusive o ex-presidente da CBF José Maria Marin – e das sucessivas denúncias de corrupção deflagradas desde a Justiça americana começou a expor, há duas semanas, a caixa-preta de negociatas operadas pela cúpula mundial do futebol e seus aliados, o Congresso tem a oportunidade de encaminhar uma virada de jogo. Não propriamente pela recém-criada CPI da CBF, avalia o economista Pedro Daniel, mas pela Medida Provisória 671, que condiciona o parcelamento da dívida dos clubes com o fisco, em torno de R$ 4 bilhões, a compromissos como não gastar mais do que se arrecada, manter as contas transparentes e honrar compromissos trabalhistas. “Não deveríamos precisar de lei para que essas práticas fossem adotadas”, diz o coordenador da área de esportes da consultoria BDO, em entrevista ao Negócio é Esporte.
Com a cartolagem na defensiva, diante do escândalo em curso, a MP insinua-se menos vulnerável às ressalvas da bancada da bola. “O importante é aprová-la com os pontos essenciais, como a transparência contábil e o teto para as despesas”, ressalta Pedro, que participou do grupo de discussão sobre a medida no Congresso. Pela nova regra, os clubes não podem gastar só 70% do que arrecadam. Poucos já adotam esta responsabilidade. O Flamengo é uma das exceções. Embora os resultados ainda provoquem desconfiança da torcida, o rubro-negro fez o dever de casa financeiro e entra, ainda de acordo com o especialista, “num círculo virtuoso”. Uma faxina que contribui para se tornar o mais valioso entre os congêneres nacionais, segundo o mais recente levantamento da BDO.
O Negócio é Esporte: Na sua percepção, qual o alcance da caixa-preta que começou a ser aberta com a prisão dos executivos da Fifa e as sucessivas denúncias de propina, inclusive em Copas do Mundo?
Pedro Daniel: Ainda é cedo para precisar o alcance. O futebol mundial perde credibilidade e o futebol do dia a dia, também. Pois eles estão dentro da mesma estrutura. O mais importante é apurar a fundo as responsabilidades e aproveitar o momento para fazer algumas mudanças importantes.
Quais você considera mais importante?
A abertura da estrutura política a outros agentes, com mais transparência. Isso reduziria o risco de práticas como corrupção, extorsão, e de decisões pautadas por interesses arbitrários.
Na sua opinião, o primeiro passo é a abertura política? Como encaminhá-la?
Sim, é o pontapé inicial para moralizar e modernizar o futebol mundial. A lógica política da “família Fifa”, pela qual os filiados elegem o presidente e o conselho, que se reproduz nas confederações e federações, mantém um grande conflito de interesses com o mercado. O primeiro passo para reorganizar a gestão do futebol é tornar a estrutura político-administrativa mais aberta.
Há algum modelo que sirva de referência, inspiração?
Os Estados Unidos, como se observa em outras áreas, saíram na frente neste sentido: no fim da década de 1970, o presidente Jimmy Carter assinou o equivalente a uma medida provisória segundo a qual 20% dos comitês executivos das confederações americanas são votadas por atletas. Passou-se a dar poder a outros agentes do mercado, para afastar o risco de um modelo próximo, digamos, ao ditatorial. Então, o primeiro passo é revisar a estrutura da família Fifa, o que é difícil.
Até que ponto as investigações em curso, nos Estados Unidos, na Suíça e em outros países podem se converter, efetivamente, em mudanças capitais na gestão mundial do futebol?
É preciso que a caixa-preta seja toda aberta e que todos os responsáveis pelas irregularidades sejam punidos. Aí teremos um terreno propício ao saneamento, a modelos em que prevaleça o profissionalismo e uma estrutura política aberta, alinhada ao mercado. Convém lembrar que a Fifa é uma das maiores empresas do mundo, com faturamento médio anual superior a US$ 2 bilhões e mais filiados (209) do que a ONU. Só com a Copa no Brasil, a Fifa arrecadou cerca de US$ 5 bilhões. Então, é importante investigar direitinho esse contexto. A Fifa precisa se abrir e auxiliar nas investigações, até para passar credibilidade ao público, ou seja, a quem consome o futebol, é apaixonado pelo futebol e faz com gere tanta receita.
As denúncias de propina extensivas à Conmebol e à Confacaf podem atrapalhar os planos de a Libertadores e a Copa América se tornarem continentais, com as participações de times e seleções dos EUA e do Canadá?
Talvez esse cenário possa até ajudar a pavimentar essa trilha. Uma união para resgatar a moralidade e tornar as competições mais atraentes.
Antes, porém, não preciso sanear a estrutura política e o modelo de negócios dessas confederações?
Seria o ideal. A Conmebol nunca foi vista como um símbolo de transparência, pois sequer publica o balanço financeiro na internet. Estrutura bem diferente, para fazer uma comparação injusta, da observada na Major League Soccer, a liga de futebol profissional dos Estados Unidos, que é franqueadora e adota um modelo profissional. Ouso dizer que, no curto prazo, a Conmebol e a Concacaf se unam num campeonato das Américas, para resgatar a credibilidade no setor. Mas o ponto é que o modelo da Conmebol está falido. Um clube arrecada mais, com direitos de transmissão, em campeonatos estaduais, como o do Rio e o de São Paulo, do que na Libertadores. Isso não faz sentido em termos de mercado. É um reflexo do arcabouço político-administrativo da confederação.
E no Brasil, como podemos aproveitar a maré de denúncias para moralizar e modernizar o futebol?
Um passo importante é a aprovar a MP 671, que condiciona o parcelamento da dívida dos clubes a práticas como não gastar mais do que se arrecada, manter as contas transparentes e honrar compromissos trabalhistas. Sem responsabilidade financeira, os clubes tendem a entrar num buraco ainda mais fundo.
Como assim?
Por conta de filosofias paternalistas, irresponsáveis, amadoras, incompatíveis com o mercado, os clubes se tornaram extremamente deficitários. Só nos últimos cinco anos, os principais clubes brasileiros acumularam um déficit de R$ 1,5 bilhão, incompatível com o nível de receita. Os 20 maiores clubes têm dívidas líquidas de R$ 6 bilhões, das quais R$ 4 bilhões vêm de impostos, e o custo do futebol é elevado. Mesmo com todo esse cenário, em geral, não diminuem despesas, por pressões internas, de torcedores e de patrocinadores. Aspectos como o sistema em que o dirigente leviano só responde por falhas de gestão no próprio mandato, normalmente de dois a três anos, criam incentivos inversos, ou seja, incentivos à gestão temerária. No mundo empresarial, isso não acontece: o dirigente é responsabilizado. A MP limita o déficit e obriga o clube a honrar o pagamento salários e direito de imagem. É um absurdo ter que colocar isso numa MP. Os clubes passam a ter de provar trimestralmente que honram tais compromissos. Mais: o custo do futebol não pode ultrapassar 70% da receita.
Com a CBF e alguns dirigentes de clubes na defensiva, diante do escândalo mundial, você acredita que a MP possa ser finalmente aprovada, sem as ressalvas da chamada bancada da bola?
Acredito que esse cenário possa até resolver a resolução de impasses como os associados à adoção dessas práticas também federações e à limitação de mandatos. Mas temos que nos apegar à essência, aos pontos relacionados à governança, à transparência, às responsabilidades financeira, fiscal e trabalhista.
Mas também é preciso garantir aos clubes um tempo de adaptação, para evitar o risco de um colapso...
Sim, a grande chave é proteger o clube. Não se pode entrar na política do quebra-quebra. É preciso escalonar as exigências para que os clubes possam se adequar no curto prazo sem quebrarem. O problema é que, do ponto de vista contábil, estão tecnicamente falidos. Mas o objetivo não jamais deve ser só refinanciar a dívida. Senão vamos apenas reescrever a história, pois já tivemos, por exemplo, Timemania e Refis 1 e 2.
Dez entre dez consultores da área apontam o Flamengo como o exemplo a ser seguido. Entre outros avanços, o estatuto passou a prever punição para gestão temerária depois do mandato. O clube está mesmo com essa bola toda – nas finanças?
O Flamengo entrou no circulo virtuoso. Pois ser campeão é finalidade, e não o início. Alguns clubes invertem o processo. E aí começam um círculo vicioso: investem o que não podem, tomam empréstimos arriscados, mas normalmente acabam não conseguindo o título, até porque só um time ganha o campeonato. Aí perdem receita, aumentam a dívida e, consequentemente, se tornam menos competitivos. Este é o círculo vicioso. Já no círculo virtuoso, o clube arruma as finanças, reduz despesas, diminui a dívida, faz um trabalho de comunicação, para expor tais esforços, e acaba atraindo investidor, que gosta de atrelar a marca a casos de sucesso. A arrecadação do Flamengo hoje já é a maior do Brasil. Somou, no ano passado, R$ 347 milhões de receita operacional, sem contar venda de jogador, o que aumenta a chance de montar um time competitivo e de ser campeão, o que aumenta a receita.
O clube já se enquadrou naquele teto previsto pela MP: 70% da receita para as despesas do futebol?
Sim, é um dos poucos no país nesse teto. A média é de 77%. Como consequência, há déficit acumulado.
A proibição de investidores na transferência de jogadores, em vigor desde o mês passado, não tende a debilitar ainda mais a saúde financeira dos clubes brasileiros, que perdem poder de barganha com compradores estrangeiros e, assim, têm mais dificuldade em reter talentos?
O impacto da nova proibição deve ser mesmo grande, num primeiro momento. Pois os clubes usam tradicionalmente esse mecanismo como fonte de receita operacional. Por exemplo, vendem 30% dos direitos sobre um jogador a fundo de investimentos, para fazer caixa, cobrir despesas, pagar salários e até contratar. Agora a fonte secou, e não foi substituída. Isso exige um melhor planejamento, para que possam diversificar a receita e evitar um colapso. A MP, na essência, se revela essencial para evitar uma crise.
E o impacto na retenção de talentos?
A retenção talentos torna-se mais difícil. Mas, no longo prazo, isso pode mudar, com a modernização das gestões, com melhor governança e transparência, e o consequente o aumento dos investimentos privados. Hoje vivemos ainda um cenário em que a principal fonte de receita dos clubes é a verba dos direitos de transmissão e o principal patrocinador do futebol brasileiro é uma estatal (Caixa).
Que outras táticas contribuem para a diversificação de receita?
É preciso consolidar uma visão sistêmica do negócio, em que a área de marketing tem um papel ativo, não reativO, com incentivos para investimentos de longo prazo.