Têm coisas que só acontecem ao Botafogo . Uma delas é ser o único time carioca a contar com a Copa Conmebol entre os seus troféus. Há 30 anos, um grupo desacreditado superava adversidades, desbancava favoritismos e, depois de vencer nos pênaltis o Peñarol, do Uruguai, dava a volta olímpica no Maracanã.
O principal título internacional do Glorioso alia o amadurecimento de uma geração alvinegra à chegada de jogadores impetuosos que se consagraram no cenário sul-americano. Porém, tudo foi precipitado por uma sucessão de reviravoltas (entenda os detalhes no gráfico abaixo).
BOTAFOGO 'MUDA' DE CARA EM 1992
Jéfferson Gaúcho: uma das "caras" do Botafogo remodelado para os novos tempos (Foto: Reprodução / Jornal dos Sports)
As mudanças no Botafogo após a perda do título brasileiro de 1992 ficaram ainda mais nítidas entre quem vivenciava a rotina do clube. Titulares foram cedidos ou negociados e alguns jogadores da base começaram a subir rapidamente no Carioca (a competição foi disputada no segundo semestre). As contratações foram mais modestas, como o empréstimo do meia Macalé, que jogava no Cruzeiro.
Atleta dos juniores do Alvinegro, o defensor André Santos apontou como ficou o cenário diante da guinada promovida pelo presidente Emil Pinheiro no dia a dia do Carioca.
- Para nós foi um choque. De uma hora para outra, saíram Carlos Alberto Santos, Djair era jovem e foi para a Lazio... Mas, ao mesmo tempo, minha geração, a do Alexandre Agulha, começava a lutar por uma oportunidade. Só que a gente não tinha noção de como era tudo aquilo que o Emil planejava - afirmou o zagueiro, ao Lance!.
Também formado na equipe, o lateral André Duarte detalhou algumas dificuldades.
- Éramos muito novos e, quando sai todo mundo, há uma desestrutura. Nós que ficamos contamos muito com o Edinho (ex-jogador e treinador da equipe em 1992). Ele conseguiu fazer um grande trabalho, mesclando jovens com profissionais - afirmou.
Em 25 de novembro de 1992, porém, houve novo golpe: Emil Pinheiro renunciou à presidência. A medida não só causou novas saídas, como também deixou o clube em situação complicada inclusive no ano seguinte.
- Quando a gente se deu conta, além de saírem os jogadores que pertenciam à empresa dele, o Emil levou material do clube. A gente chegava para treinar e o Botafogo não tinha bola, não tinha colete! - contou.
Emil Pinheiro tinha uma empresa ao lado do agente Léo Rabello e cedeu ex-botafoguenses como Pichetti e Bujica para o America, além de estruturar o clube a partir de 1993. A toque de caixa, o Botafogo elegeu Mauro Ney Palmeiro como mandatário.
UM 'CAPITA' SE JUNTA AO GLORIOSO
A engrenagem para o título da Copa Conmebol começa no decorrer de 1993. Os dirigentes do Botafogo se reúnem para convencer Carlos Alberto Torres a assumir o comando da equipe. Os botafoguenses viam nele o nome ideal para substituir Paulo Emílio.
- Dois diretores chegaram ao apartamento do Carlos Alberto Torrres e fizeram o convite, mas afirmaram: "a gente não tem dinheiro". Aí ele fez uma ligação internacional, arrumou jogos do Botafogo na Martinica (ilha que pertence à França) e o dinheiro ficou para ele - destacou André Santos.
O atacante Marcelo Costa, também formado no Alvinegro, recordou-se deste período.
- Ele arrumou essas partidas e, com o dinheiro dele, fizemos a pré-temporada de olho no Campeonato Brasileiro e na Conmebol - disse.
O capitão do tricampeonato mundial da Seleção Brasileira é lembrado com carinho.
- O Torres passava confiança para a gente, dava muita força. E, por ser um vencedor nato, isso nos dava uma sensação muito boa - disse André Duarte.
A EQUIPE DA CONMEBOL GANHA CORPO
Logo no início de 1993, o Alvinegro começa a formar a equipe que venceria a Copa Conmebol. Eliel chegou logo no Carioca.
- Eu sabia que o Botafogo vinha em uma situação financeira muito difícil, tinha perdido os medalhões, mas sabia da grandeza do clube. Aí acabou dando tudo certo - afirmou.
Depois chegaram outras novidades como Suélio, Perivaldo e Sidney. Também vieram dois jogadores do Sul, a tempo de disputarem o Torneio Rio-São Paulo.
- Aléssio e eu chegamos do Londrina. O Botafogo não tinha grandes nomes, a estrela maior era o Carlos Alberto Torres. Cheguei, batalhei e, aos poucos, fui me firmando - disse o goleiro Carlão.
Mais tarde, o artilheiro do Glorioso desembarcou em General Severiano, credenciado pela vice-artilharia do Paulistão com a camisa do Novorizontino. Só que ele esteve bem perto de uma passagem rápida.
- O Carlos alberto pediu meu empréstimo à Portuguesa e eu cheguei sem saber daquela confusão que estava o Botafogo. Vim na terça-feira e no sábado queria ir embora, voltar para São Paulo - revelou Sinval, acrescentando:
- Era uma situação caótica! Não tinha bola, não tinha camisa para treinar. Aí o (então dirigente) Edson Santana me ligou: "olha, estou sabendo que você vai embora. Vem cá, você vai voltar para jogar na Portuguesa? Desculpa te falar, mas você vai jogar para 3 mil pessoas, sendo que aqui tem chance de se consagrar, entrar para a história no time do Nilton Santos, do Jairzinho". Aí não deu outra, fiquei no Rio, enfrentei tudo com o elenco. Lembro que a gente passou muito sufoco. Pegávamos ônibus de linha para ir rumo ao Galeão, às vezes o avião tinha de chegar atrasado para todo mundo viajar junto. Uma tristeza - constatou.
A lista reforços é exaltada por André Santos.
- Tínhamos de contar com uma espinha dorsal mais experiente para a disputa do Brasileiro. Fizemos dois Cariocas bons com média de idade jovem. Mas o Brasileiro era mais difícil e a Conmebol também era bastante disputada - disse.
DE FASE EM FASE...
O Botafogo estreou na Conmebol contra um adversário brasileiro bastante temido. O Bragantino vinha de um título paulista no ano de 1991 e foi quarto colocado no Brasileirão de 1992.
- O Bragantino era um time imbatível, era uma pedra no sapato dos cariocas. Mas nós ganhamos duas vezes. No Rio e em Bragança Paulista, onde era extremamente difícil - disse André Santos.
Carlão recorda-se de um feito que teve em uma dessas partidas.
- Tomamos um sufoco do Bragantino, acabei tomando um gol, fui muito exigido. Mesmo assim, consegui pegar um pênalti do Alberto no jogo de ida - recordou.
As partidas contra o Caracas envolveram muito mistério para todos.
- Era um time que a gente não conhecia, não sabia como jogava. Mesmo assim, fomos lá e ganhamos. E aqui, vencemos de novo - afirmou André Santos.
O goleiro Carlão contou uma peculiaridade que marcou esta partida.
- Foi a primeira vez que viajei para fora do país. Ouvir o Hino Nacional fora do país foi emocionante - afirmou.
DA PROFECIA DE CARLOS ALBERTO TORRES À PINTA DE CAMPEÃO: A SEMIFINAL COM O ATLÉTICO-MG
Semifinal contra o Galo: um marco para a campanha (Foto: Reprodução / TV Globo)
A semifinal com o Atlético-MG trouxe um roteiro ainda mais instigante para os torcedores do Botafogo. No jogo de ida, a equipe amargou a derrota por 3 a 1 para o Galo, que lutava pelo bicampeonato do torneio.
- Não vimos a cor da bola! O Atlético tinha o Paulo Roberto Prestes, o Sérgio Araújo, o Reinaldo. Sofremos 3 a 1, fora as ameaças. Mas quando o Sinval fez o nosso gol, o Carlos Alberto depois virou para ele e agradeceu: "você fez o gol da nossa classificação". E a gente ficou com isso na cabeça! Se ele acredita na nossa vitória, então temos que acreditar, né? - afirmou André Santos.
Marcelo Costa recorda o momento de tensão, mas brinca ao falar do gol do companheiro.
- Perdemos por 3 a 1 e o Sinval, como sempre, fez um gol espírita, como sempre - afirmou.
O atacante havia marcado de falta, função na qual havia sido designado por Torres.
- Eu nunca tinha batido falta na vida. Aí virei para o Suélio e disse que ia bater. Ele se assustou. Aí fiz um gol da intermediária. Na hora, o Torres falou que eu ia ser o cobrador de falta. O China disse que eu ia começar a quebrar as vidraças (risos) - lembrou-se.
A partida, porém, trouxeu um baque para Carlão. Em um choque perto da trave, o goleiro se machucou. William Bacana assumiu a titularidade.
No Caio Martins, veio o jogo decisivo. E o Botafogo não tomou conhecimento do Galo: fez 3 a 0, desbancando o então campeão.
- O divisor de águas do título provavelmente foi essa vitória. Tiramos um resultado contra o Atlético. Passamos por todo aquele sacrifício e ganhamos força para disputar a final - afirmou André Santos.
- Depois daquele jogo tivemos condições de ser campeões. Passamos a acreditar muito em nós - garantiu Sinval.
NA RAÇA, BOTAFOGO É CAMPEÃO!
O Botafogo vinha em uma campanha oscilante no Grupo A do Campeonato Brasileiro, a ponto de ficar 13h24 sem marcar um gol na competição. Mesmo assim, continuava a se transformar quando disputava a Copa Conmebol. E a equipe foi a campo diante do Peñarol.
- Quando chegamos lá no Uruguai era só barulho. Fogos, batucada a noite toda. Depois, enfrentamos o Peñarol, que era um time repleto de jogadores de seleção. Tinha o Perdomo, Bengoechea, Los Santos... E conseguimos o empate em 1 a 1, que é muito difícil - recordou Marcelo Costa.
O jogo no Maracanã foi precedido por uma situação inusitada.
- Nosso treino começou muito mal. Era um treino só de finalizações. Perivaldo errava, vinha outro jogador e se enrolava, tudo dava errado. O Torres veio, acabou o treino e disse: "vamos embora, ou então vamos começar a falar". Todo mundo se olhou. "Eu estou falando sério. É para ir embora e pensar". A gente ficou ciente de que os erros do treino não podiam repetir no jogo - afirmou André Santos.
O zagueiro contou como o treinador foi decisivo no decorrer da final.
- A partida começou muito morna. Em um erro do Suélio, a gente foi para o intervalo perdendo. O Carlos Alberto veio tranquilo, bem à vontade na preleção: "não é possível que vocês vão perder! Temos de muar!". E nós fomos mudando, conseguimos o empate com o Eliel e a virada com o Sinval. Estava o gostinho, até que veio a ducha de água fria nos acréscimos - relembrou.
Sinval revelou que tinha uma dose de frustração.
- Xingamos o Eliomar, que tinha dado condição para o Otero naquele gol. E veio aquela disputa de pênaltis - disse.
O empate em 2 a 2 forçou a ida para os pênaltis. Sinval partiu para a primeira cobrança e desperdiçou.
- O Carlos Alberto Torres ficava dizendo "você é meu eleito". Parti para a bola, dei uma cacetada e o goleiro salvou. Ia ficar a trajetória toda, com oito gols em oito jogos, esquecida - recordou o artilheiro da equipe.
André Santos detalhou a apreensão entre os atletas.
- A gente ficou se olhando, mas depois os jogadores foram fazendo os gols e veio o momento brilhante do William Bacana ao pegar o pênalti. Depois veio a bola na trave e ganhamos - disse.
Autor do gol decisivo do Botafogo nas cobranças, André Santos revelou.
- Eu costumava treinar pênaltis com (os goleiros do Botafogo) Gabriel, William Bacana. E cantava "vai no canto esquerdo", "vai no canto direito". Quando fui para a bola, a primeira coisa que pensei foi que estava treinando com eles. Aí consegui, o goleiro foi para o outro lado - disse.
Passados 30 anos do título, Marcelo Costa constata ao falar da conquista.
Eliel contou uma curiosidade.
- A vontade e a determinação foram fundamentais para esta Conmebol - disse.
- Eu seria o quinto batedor. Mas as cobranças acabaram antes e ganhamos o título - afirmou.
Aos olhos de Sinval, o peso de Carlos Alberto Torres fez a diferença para o título.
- Ele abraçava o grupo, fazia todo mundo acreditar. Tirávamos força de nós e acreditávamos na conquista - disse.
CONMEBOL É EQUIVALENTE À SUL-AMERICANA?
Em setembro de 2022, representantes de sete clubes campeões pleitearam a equiparação da Copa Conmebol ao título da Sul-Americana. Segundo o "Extra", além do Botafogo, Atlético-MG, São Paulo e Santos, além dos argentinos Rosario Central, Lanús e Talleres levaram seu pedido ao presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez. Porém, o caso ainda não foi adiante.