Na marca de cal! Entenda porque, há 35 anos, Fluminense e Botafogo foram ao Maracanã apenas para disputarem pênaltis

Na tarde da promulgação da Constituição Federal, equipes protagonizam capítulo insólito do clássico

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Faltam poucos dias para Fluminense e Botafogo disputarem mais um clássico. Porém, nesta quinta-feira (5), o Clássico Vovô completa 35 anos de um de seus momentos mais inusitados. Na mesma tarde na qual a Constituição Federal de 1988 era promulgada, jogadores do Tricolor das Laranjeiras e do Alvinegro entraram em campo exclusivamente para cobrar pênaltis.

O episódio foi proporcionado pelo regulamento da competição. Naquele ano, foi instituída uma emenda denominada popularmente como "Lei dos Pênaltis". O assunto deu o que falar (veja a cronologia abaixo).

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O DESACATO

Em setembro, equipes empataram o jogo e desceram rumo ao vestiário: ordens superiores (Foto: Reprodução / TV Globo)

Fluminense e Botafogo mediram forças na primeira rodada do Campeonato Brasileiro. Marcelo Henrique colocou os tricolores em vantagem, mas Cláudio Adão igualou para os botafoguenses.

Ao fim do tempo normal, o árbitro José de Assis Aragão se manifestou à imprensa sobre a decisão das equipes deixarem o campo.

- Acabando a partida, empatada em 1 a 1, chamamos os dois capitães. Eles disseram que não iriam cobrar as penalidades porque tinham instruções dos presidentes de ambos os clubes para não cobrar as penalidades - afirmou à Rede Globo.

Goleiro do Fluminense na partida, Ricardo Pinto contou ao Lance! como foi a comunicação.

- Fomos informados que não iríamos cobrar os pênaltis e, assim que acabou o jogo, fomos embora. Nossa vida seguiu, continuamos a treinar, pensar nos outros jogos. Depois é que veio a informação que a equipe ia para o Maracanã só para cobrar os pênaltis que estavam faltando - disse.

O ídolo tricolor Romerito reconheceu que a peculiaridade causou surpresa.

- Foi uma situação muito estranha, porque o regulamento da Copa União incluiu os pênaltis e o Fluminense e Botafogo não estavam de acordo. Mas depois a Justiça definiu a cobrança de pênaltis. E aí, num Maracanã vazio, as duas equipes foram cobrar. Tivemos de cumprir - afirmou.

Lateral do Alvinegro, Renato Martins constatou.

- Foi uma situação esquisita. Os dois presidentes autorizaram a não bater os pênaltis. Depois de quase um mês, fomos pegos de surpresa e tivemos que voltar para bater em um dia de semana. Concentramos e tudo para bater essas penalidades! - revelou.

Então no Botafogo, o meia Gilmar Popoca endossa o quanto aquela tarde foi incomum.

- Foi uma coisa muito estranha, porque não estávamos habituados a isso. Tínhamos empatado em 1 a 1 e decidiram que não iriam fazer. Aí passamos a semana treinando. Bem depois, o clube foi comunicado que aconteceriam as cobranças contra o Fluminense - destacou.

APÓS IMBRÓGLIO, ENFIM UMA DECISÃO AO HORIZONTE

Nabi Abi Chedid: salvo-conduto deu margem para pênaltis (Foto: Reprodução / TV Cultura)

Após impasse, o presidente em exercício da CBF, Nabi Abi Chedid, aceitou "perdoar" os clubes rebeldes da primeira rodada. A situação do clásssico entre Botafogo e Fluminense ficou em aberto.

Foram levantadas a hipótese de sorteio e até de ambas as equipes perderem pontos. No entanto, chegou-se ao consenso de uma nova data para que o Tricolor das Laranjeiras e o Glorioso disputassem os pênaltis.

- Nunca havia acontecido uma decisão dessa natureza. Concentramos à noite para cobrar os pênaltis no período da tarde seguinte - disse o lateral alvinegro Renato Martins.

OLHOS DOS BRASILEIROS VOLTADOS PARA BRASÍLIA

Disputa de pênaltis iniciou minutos depois da nova Constituição ser promulgada (Foto: Divulgação)

Em 5 de outubro de 1988, iniciavam os preparativos para a disputa de pênaltis entre Fluminense e Botafogo. Enquanto isso, em Brasília, às 15h50 a Constituição Federal entrava em vigor, tornando o Brasil um estado democrático.

Em discurso histórico, o deputado Ulysses Guimarães afirmou: "Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo".

Dez minutos depois, Fluminense e Botafogo entravam em campo no Maracanã para os pênaltis. A Suderj abriu o estádio exclusivamente para o jogo, e o mesmo trio de arbitragem do jogo de setembro foi para o campo.

- É uma situação que nunca vivi e nunca vi acontecer. Foi algo bastante complicado, estranho no mínimo. Aquecia, não aquecia, foi um clima todo diferente. Foi inusitado porque nós tínhamos de fazer todo o procedimento do jogo. Tinham de estar os mesmos jogadores que estavam na súmula, não podia trocar, independentemente de quem estava jogando. Era muito improvável que algum jogador ou um goleiro se machucasse em um pênalti, mas tinha de ter os titulares e os reservas da partida. Havia toda estrutura da partida, inclusive um pequeno aquecimento apenas para fazer um chute. E tudo isso mobilizando o Maracanã - contou Ricardo Cruz.

O goleiro do Fluminense, Ricardo Pinto, não esquece sua estranheza com a situação.

- Teve todo o preparativo no vestiário, as duas equipes foram para o jogo, se prepararam só para as cobranças. Foi bem surreal - disse.

NO MARACANÃ, UMA SÉRIE DE REGRAS

Jogo com portões abertos e disputado no meio de semana levou público (Foto: Reprodução / TV Globo)

O "novo ato" do clássico trouxe algumas peculiaridades. Disputada na tarde de quarta-feira, a série de pênaltis teve portões abertos e levou em torno de 5 mil pessoas ao Maracanã. Houve relatos de brigas de torcedores, segundo a imprensa da época.

Além disso, as duas equipes só puderam levar a campo os jogadores que encerraram a partida. A única substituição permitida seria a do goleiro, em caso de lesão. Isso fez com que Botafogo e Fluminense se mobilizassem para todos estarem em forma.

Meia do Botafogo, Gilmar Popoca revelou que passou por uma preocupação antes da inusitada disputa.

- Lembro que eu tinha tomado uma pancada no tornozelo durante o treinamento da semana e estava um pouco preocupado. Mas, como estava na súmula, tinha de bater o pênalti - destacou.

AS VISÕES DOS BATEDORES

Gilmar Popoca detalhou como foi a preparação alvinegra em torno da disputa.

- Na quarta-feira, o treinador Jair Pereira reuniu todo mundo, fomos para o Maracanã. E foi estranho! A gente entra no Maracanã, troca de roupa, bota o material todo como se fosse jogar os 90 minutos, faz um breve aquecimento para um pênalti. Terá de fazer um movimento mais forte,, precisa estar um pouco. Entramos em campo, estava extremamente vazia a arquibancada, mas tinha torcedores.

Em seguida, contou que lidou com uma mudança de última hora ao cobrar.

- Por ser um dos batedores, eu sempre era ou o último ou o primeiro a cobrar. Mas nesse dia, não sei por qual motivo, foi o dia no qual fiquei mais tenso para fazer minha cobrança. No que caminhei para fazer a batida, fiquei mais preocupado. Quando fui me aproximando, o Ricardo Pinto começou a ficar muito grande, e eu falei "meu Deus, e agora?" (risos). Eu tinha o hábito de dar uma meia paradinha. E quando fiz isso, vi que o Ricardo Pinto não se moveu . Aí me gerou uma confusão, pois eu estava com o corpo inclinado para bater, mas às vezes eu virava o pé, fazia o movimento contrário. Nesse dia eu não tive troca. Empurrei a bola no canto. Ele foi para o canto da bola, a bola vai para a rede lateral, mas o Ricardo quase chegou. Quando fiz um gol, me deu um alívio muito grande para que os outros também tivessem tranquilidade. Infelizmente a gente perdeu - disse, complementando com um susto que tomou:

- No portão no qual saí, não dá para ver normalmente a torcida. Quando virei uns 50 torcedores vieram na minha direção. Achei que eu ia apanhar. Mas quando eles me viram, algumas pessoas falaram "Não, o Gilmar tá bem!, O Popoca também, fez gol". Imagina se eu erro. Eles me trataram bem, apesar da irritação da derrota. Foi muito estranho, um dia fora do eixo - complementou.

Romerito detalhou como causou surpresa entre os tricolores a preparação para o confronto.

- Foi uma coisa diferente colocar todo o equipamento de futebol, com números que estavam de acordo com a relação de jogadores. De fato, era muito constrangedor vestir o uniforme só para bater um pênalti - afirmou.

Em seguida, o paraguaio brincou com todo o episódio envolvendo o Clássico Vovô em tarde de pênaltis.

- Eu fiz o meu pênalti, foi bom. Uma experiência diferente, mas um regulamento muito mal feito - constatou.

DE GOLEIRO CONSAGRADO À DISPUTA ENTRE IRMÃOS: AS HISTÓRIAS DA TARDE NO MARACA

Alexandre e Ricardo Cruz: irmãos em lados opostos (Foto: Reprodução / TV Globo)

A disputa de pênaltis trouxe momentos especiais para alguns jogadores. Washington, Dago, Édson Mariano e Romerito tinham marcado para o Fluminense, e Eduardo desperdiçado a cobrança. Do lado botafoguense, Gilmar, Josimar, Gottardo e Delei fizeram. Porém, o goleiro Ricardo Pinto brilhou ao defender as cobranças de Mauro Galvão e Renato.

- Eu costumava ver as cobranças na TV, anotava cada detalhe dos batedores. Mas lembro que não sabia com exatidão como eram os cobradores do Botafogo. Fui bem nas cobranças do Mauro Galvão e do Renato, que tinha sido nosso colega no Fluminense, e ajudei a equipe a levar a melhor - afirmou.

O lateral Renato Martins recordou-se da situação.

- Por infelicidade, eu acabei perdendo. Além de mim, o Mauro Galvão errou. Infelizmente, o Botafogo pegou só um ponto desse jogo (o ponto do empate no clássico em setembro). Anos depois, eu me vinguei do Ricardo Pinto. Quando eu estava na Portuguesa e ele no União São João, me "vinguei" fazendo um gol de falta - garantiu o ex-jogador

Após a defesa de Ricardo Pinto, as cobranças estavam em 4 a 4. Foi quando entrou em cena uma disputa em família na marca de cal: o zagueiro tricolor Alexandre Cruz teve a missão de superar seu irmão mais velho, o goleiro botafoguense Ricardo Cruz.

- Foi uma situação também especial, envolvendo a minha família, pois eu tinha saído do Fluminense para o Botafogo. Enquanto isso, meu irmão jogava no Fluminense. Nos enfrentamos nas cobranças de pênaltis. Aí, pai, mãe ficaram com as camisas divididas. Metade com a camisa do Fluminense e metade com a camisa do Botafogo - recordou o goleiro.

O defensor tricolor brincou em relação à divisão familiar.

- Pior foi para o meu pai e minha mãe. Iam torcer para quem? - disse, acrescentando:

- Na verdade, eu não fiquei muito tempo com o Ricardo no profissional. Ficamos cerca de um ano juntos, mas treinávamos algumas vezes - explicou.

Ricardo Cruz contou como viu seu irmão e oponente naquele momento.

- Lembro dele estar muito tenso na cobrança, o que é normal para quem vai bater. Para mim era confortável. O goleiro é um franco-atirador na disputa dos pênaltis. Ele depois me revelou que estava no jogo. Houve empate nas cinco cobranças, depois veio o mata-mata. A gente bateu e perdeu, e ficou nos pés dele a decisão. Mas nem ele esperava isso. O Alexandre que tinham jogadores mais experientes, mas o treinador vai lá você e bate. Ele bateu muito bem. Eu fui no canto, mas ele bateu no alto e eu não tive chance - constatou.

Alexandre Cruz deu sua versão sobre a luta para superar Ricardo.

- Acho que foi a caminhada mais difícil que fiz na minha vida. Ainda mais para mim, pois o goleiro não tem obrigação de pegar o penalti. Se o golerio pegar é o mérito dele, agora, a obrigação do batedor é fazer. Meu irmão estava no gol. se eu perdesse, a matéria no dia seguinte era "Alexandre cruz perdeu o pênalti porque seu irmão estava no gol". Todo mundo ia pensar. aquilo ficou na minha cabeça e caminhada não chegava… Aí eu procurei não pensar muito. quando a bola bateu na rede, senti um alívio. parecia que tinha saído uns 100kg de mim. Minha mãe, meu pai, meu cunhado, meu soutrs irmãos, todo mudo comemorou. Eles torciam para os dois - disse, emendando:

- Ainda hoje falo com o Ricardo de brincadeira: "você não ia me aliviar não". Eu tive de bater no canto, porque o Ricardo é muito bom goleiro!

O Fluminense venceu por 5 a 4 e ganhava o ponto extra na curiosa tarde repleta de pênaltis. Os tricolores caíram nas semifinais para o campeão Bahia, enquanto os alvinegros não passaram das fases inicias.

No domingo, 8, o Tricolor das Laranjeiras finalista da Copa Libertadores encara o Botafogo, líder do Brasileiro. Cada equipe se empenha por pavimentar grandes histórias na atual temporada.

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