Opinião: ‘Chuva, Nutella e lágrimas na Fórmula 1’
'Queremos espetáculo. As batidas e rodadas sempre fizeram parte do show'
O tradicional GP de Mônaco é a mais glamourosa corrida da temporada. Disputada desde 1929, é tão tradicional que o ACM (Automóvel Clube de Mônaco) é isento da taxa cobrada pela organização da F1. Talvez por isso a cada ano se renovem os rumores sobre a não realização do GP. Mas a corrida segue firme, apesar de seu traçado anacrônico onde as ultrapassagens são praticamente impossíveis - no GP de 2021 houve apenas uma, na largada. Por isso as esperanças de emoção em Mônaco decorrem sempre da mesma fonte: a chuva. E ela veio no domingo.
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No sábado, a qualificação foi competitiva e agitada. Um dos problemas de Mônaco é o aquecimento de pneus. Ele se agravou com o regulamento deste ano que diminuiu a temperatura dos cobertores elétricos usados sobre os pneus (invenção de Nelson Piquet). Muitos carros anotaram seus melhores tempos na segunda ou terceira volta de cada jogo. Tudo transcorria sem surpresas, com ligeira superioridade da Ferrari sobre as Red Bull. Ao final do Q3, Sergio Perez perdeu a traseira de seu carro pouco antes do túnel, deixando-o atravessado na pista para receber uma traulitada de Carlos Sainz. O incidente causou o encerramento dos treinos antes de os pilotos completarem a última tentativa de volta rápida. Charles Leclerc ficou com a pole, seguido de Sainz e das duas Red Bull, mas com Perez na frente de Max Verstappen, que amargou sua pior posição de largada nesta temporada.
Domingo, minutos antes da largada, a chuva caiu forte. O início do GP foi então sucessivamente adiado pelo português Eduardo Freitas (diretor de prova). E se deu quase uma hora após o horário marcado, com os carros em movimento (a rolling start, copiada das corridas americanas).
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Aqui é preciso insistir num ponto que já abordei na coluna: a F1 não pode ser “Nutella”. Isso de não largar porque chove é uma papagaiada. Se alguém não quiser, que não corra (como fez Niki Lauda em 1976, deixando James Hunt ser campeão). Queremos espetáculo. As batidas e rodadas sempre fizeram parte do show. E os carros de hoje são superseguros. A chamada “célula de sobrevivência”, que envolve o cockpit, é extremante resistente. E quando os carros estavam longe de ser tão protegidos, ninguém deixava de largar com medo do aquaplaning.
Quem não se lembra das vitórias de Ayrton Senna na Lotus e na McLaren em meio às poças d’água? Ou da fantástica corrida com a Toleman de 1984 em… Mônaco!? (Ele venceria, mas a corrida lhe foi roubada.) E quem não se lembra de Portugal em 1985, Hockenheim em 1988, Donnington Park em 1993 (e sua 1ª volta considerada por muitos a melhor da história)? Em todas essas chovia torrencialmente. E nada da frescura de hoje.
Enfim, restou a largada politicamente correta e comportada, atrás do safety car (e com as voltas sob procissão debitadas como se corrida fossem). Como era de se esperar, a disputa foi desanimada em sua primeira parte, sem alteração nas posições de largada. Mas ali pela volta 20 a pista foi secando e a grande questão passou a ser a estratégia de pneus. Ficou claro que os de chuva não eram mais necessários, mas havia a dúvida entre os intermediários e os pneus para pista seca. E aí a corrida mudou.
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Sainz teve a clarividência de antever que os slick dariam conta do recado, e bancou a aposta.
A Ferrari se encarregou de entornar o caldo com Leclerc, trocando seus pneus por intermediários e logo depois mandando-o parar novamente – com direto a arrependimento ineficaz: quando já estava no pit lane. O engenheiro gritou pelo rádio “stay out, stay out”. Era tarde. O monegasco – que liderava com folga antes do rolo - caiu para 4º, ficou furioso, disse impropérios pelo rádio, e entendeu que ali seu sonho de vencer em casa tinha acabado mais uma vez. Como disse Millôr Fernandes, entre o riso e a lágrima há apenas o nariz.
Sainz, o único a pôr os pneus de pista seca, parecia ter tido a sacada perfeita, e saía dos boxes com uma mão na taça. Numa trapaça do destino, ficou atrás de um retardatário, perdeu tempo precioso e tomou o undercut de Sergio Perez. Lembrei-mei da célebre advertência de Mike Tyson: “Everyone has a plan until they get punched in the mouth”.
Tendo se dado bem no pit stop, o mexicano passou a liderar com Sainz o separando de Verstappen (protegido, portanto, de uma ordem de equipe como a de Barcelona).
Daí em diante a pista secou e a corrida seguiu em fila indiana, interrompida apenas por uma batida forte de Mick Schumacher na volta 27. Nem assim houve qualquer mudança digna de nota. Mesmo com pneus desgastados, Perez segurou a ponta, alcançando sua 3ª vitória na F1, com direito a desfile com a bandeira mexicana e emocionado choro no pódio ao lado da família real.
Novamente George Russell foi best of the rest, chegando em 5º e se mantendo como o único piloto do ano a ser top 5 em todas as corridas (soma 84 pontos contra 50 de Lewis Hamilton).
Situação difícil é a de Daniel Ricciardo. Sucessivamente superado pelo competente Lando Norris (48 pontos contra 11 do australiano), parece estar no campeonato já na qualidade de afogado, não de nadador. Após bater forte no treino livre de sexta-feira, amargou apenas a 13ª colocação. Por essas e outras, Zak Brown, chefão da McLaren, declarou semana passada que o piloto “não está atendendo às suas expectativas”, dando início ao processo de fritura. O veterano piloto parece integrar o panteão das promessas que não vingaram, tendo seus sonhos já desbotados.
Verstappen se firma na liderança do campeonato com 125 pontos, contra 116 de Leclerc, seguido de perto por Perez, agora com 110. Uma curiosidade: não fosse a ordem de equipe em Barcelona, e se lá tivesse vencido, Perez estaria praticamente empatado com Verstappen (apenas 1 ponto os separaria). Mas o “se” só resolve na imaginação e na literatura (como no lindo “If”de Rudyard Kipling). Não existe na F1 nem na vida.
P.S. – Na GP2 tivemos nova vitória de Felipe Drugovich. Foi a 4ª em 10 corridas. Estão deixando a gente sonhar...