Futebol no campinho de barro, cenário onde só os mais fortes se destacam. Jogo pegado, molecada toda reunida, pés descalços aos montes... É quando a criança mais habilidosa do bolo decide fazer a diferença. Passou por um, passou por outro, driblou um terceiro e chegou na cara do gol. Na frente do goleiro, finalizou com a calma digna de um Romário. Bem... Se você imaginou essa cena toda com um menino correndo, é melhor rever os seus conceitos.
Nascida em Rondonópolis (MT), Ana Vitória já sonhava ser jogadora aos oito anos, em 2008. Movida por seu objetivo, ela foi levada pelos pais à escolinha do União Rondonópolis, seu time do coração. Chegando lá, não pôde ser inscrita pelo fato de ser menina. O rival Rondonópolis Esporte Clube aceitou, mas, sem escolinha de futebol feminino, colocou a pequenina entre os garotos. Ela cresceu, ficou melhor que eles e foi para a base do clube em 2012. Um ano depois, a jovem que jogava com os meninos já estava na Seleção feminina Sub-17. Hoje, com 17 anos, é campeã da Libertadores feminina pelo Corinthians Audax e uma das maiores joias do Brasil. A garota que precisou se destacar contra homens e superar o descaso com o futebol feminino está vencendo:
- Eu via os garotos como iguais e queria estar superando quem quer que fosse.
Voltando de recuperação após lesão na coxa, Ana começou a final da Libertadores no banco e entrou no segundo tempo. Ela chegou ao Corinthians Audax em fevereiro deste ano, após aprovação em teste. Até então, ela se revezava entre períodos com a Seleção feminina Sub-17 e a base masculina do Rondonópolis Esporte Clube. Em entrevista ao LANCE!, a meio-campista recordou o começo de sua carreira e as dificuldades superadas.
- Nunca fui de ficar brincando de Barbie. Gostava de correr, de bola. Tenho dois irmãos mais velhos e muitos primos, então acabei desenvolvendo gosto pelo futebol. Meus pais me levaram para a escolinha do União, mas não fui aceita. Já no REC (Rondonópolis Esporte Clube) me receberam muito bem. Com 11 anos fui da escolinha para a base do clube, sendo a única menina. Nunca tive isso como empecilho. Criança não tem discernimento de que homem pode ser mais forte. Para mim, éramos todos iguais. E eu queria ser a melhor peça do time - disse Ana, em seguida relembrando uma mágoa dos tempos na base:
'Já escutei algumas coisas por ser menina, mas procurei não guardar rancor... A única coisa que me marcou, com raiva, foi quando não me deixaram participar de uma competição simplesmente pelo fato de eu ser menina'
- Já escutei algumas coisas por ser menina, mas procurei não guardar rancor. É obvio que não gosto, mas ignoro. A única coisa que me marcou, não com tristeza, mas com raiva e muito rancor, foi quando não me deixaram participar de uma competição em Goiás simplesmente pelo fato de eu ser menina. Colocaram na regra: "A equipe que utilizar meninas será punida com a perda de todos os pontos". Isso aconteceu em 2012. Foi um marco negativo de tudo que vivi, pois eu não via porque separar. Meu time acabou jogando a competição e eu fiquei fora.
As adversidades do dia a dia englobavam até o local onde Ana Vitória poderia se trocar. Neste quesito, porém, ela contava com a compreensão dos colegas:
- Era um time de garotos, só tinha vestiário masculino. Mas sempre me respeitaram. Eles esperavam eu sair do vestiário para começarem a se trocar.
O caminho até aqui foi árduo. Era preciso brilhar nos treinos contra os companheiros meninos, para ser titular, e nos jogos contra adversários meninos. Com tantas barreiras superadas, bater pênalti decisivo na final da Libertadores, em 21 de outubro, contra o Colo-Colo, foi tarefa das mais fáceis. Ana Vitória converteu sua batida nas cobranças alternadas e festejou o título quando sua rival chutou para fora na sequência. Sonho de criança realizado.
- Sempre gostei de ver futebol, de Libertadores. Quando pequena, meus times do coração eram União Rondonópolis e Corinthians - comentou Ana Vitória, destacando seus maiores ídolos com a camisa do Timão:
- Gostava muito do Tevez. E fiquei desumbrada quando anunciaram o Ronaldo. Fiquei o dia todo pensando: "Nossa, o Ronaldo vai jogar no Corinthians, meu!".
Ana Vitória ingressou no futebol feminino em 2013. Naquele ano, ela foi descoberta em uma das peneiras promovidas ao redor do Brasil pela então técnica da Seleção Feminina Sub-17, Emily Lima, que buscava conhecer garotas talentosas espalhadas pelo país. A peneira em Cuiabá, a 200 quilômetros de Rondonópolis, mudou a vida de Ana. O desempenho da jovem foi tão bom que, aos 13 anos, ela saiu da avaliação diretamente para a Seleção Sub-17.
- Era tudo o que eu queria. Como eu só jogava com meninos, ficava pesquisando na internet o nível das meninas da minha idade para ver onde eu estava, ver meu parâmetro - recordou Ana Vitória, atualmente já na Seleção Sub-20 e na expectativa pela primeira convocação para a Seleção principal.
'VOCÊ PODE GUARDAR O NOME DELA'
Emily Lima, a descobridora de Ana Vitória, acabou virando técnica da Seleção feminina principal em novembro de 2015, tornando-se a primeira mulher a comandar uma Seleção Brasileira. Ela foi demitida do posto em setembro deste ano, mas colocou seu nome na história. Especialista em futebol feminino, Emily, atualmente com 37 anos, já apontou Ana como uma possível "Nova Marta".
- Sempre falo que a "Nova Marta" é difícil de encontrar, como é difícil encontrar um Pelé, mas estão surgindo sim. Nesse grupo que estou trabalhando tem meninas de muita qualidade. Posso citar um nome que nos chama a atenção, que é a Ana Vitória. Essa menina, você pode marcar o nome dela, vai ter sequência dentro da Seleção, e acredito que vá ser um dos destaques do Brasil daqui a alguns anos - disse Emily em abril de 2014, em entrevista ao Terra.
Ana Vitória, porém, prefere deixar o paralelo com Marta de lado.
- Não penso em ser uma "Nova Marta". O que ela fez e vem fazendo é algo incrível, de outro mundo, mas não me comparo com ela. Tenho uma admiração imensa pela Marta, porém quero ser reconhecida pelos meus feitos um dia - destacou Ana Vitória, que revelou também já ter sido comparada a Kaká.
- Não tenho inspiração em alguém em especial. Busco ver todos, o que fazem de bom, de ruim. Não procuro jogar igual a alguém, só busco tomar a melhor decisão em campo. O pessoal diz que eu pareço o Kaká jogando, mas não sei. É o meu jeito de jogar - comentou a jogadora, que tem 1,72 m e 61 quilos.
COLEGA DE CLUBE DE VALDÍVIA
Ana era a craque do Rondonópolis Esporte Clube no infantil. O mesmo clube, na mesma época, tinha o meia Valdívia, atualmente no Atlético-MG, como o principal destaque na categoria de juniores. Ana tem lembranças do colega.
- Eu treinava em um campo e ele, que é mais velho (seis anos mais velho), treinava em um outro. A gente não chegou a fazer amizade e nem treinar junto, mas tinha contato de se cumprimentar, de trocar algumas palavras. Eu o vi jogando várias vezes. Sempre foi diferenciado, o cabeludinho - destacou.
Ana Vitória ainda não sabe se ficará no Corinthians para 2018. Ela já recebeu propostas dos Estados Unidos e está estudando as possibilidades.
- Tive alguns convites para jogar e estudar fora do Brasil. É obvio que é se pensar, porque o futebol feminino é mais incerto que o masculino, você não pode abdicar dos estudos - falou Ana Vitória, que finalizou pedindo por maior valorização ao futebol feminino, apesar de ver progressos nos últimos anos:
- Acho que as coisas têm melhorado aos poucos. Se olharmos para alguns poucos anos atrás, era tudo muito diferente. Mas o que eu sinto é que falta o interesse de alguns de fazer o crescimento do futebol feminino. É preciso que vendam melhor o futebol feminino, para que as coisas evoluam cada vez mais.