Supercampeão dos sambas-enredo no Carnaval do Rio, um verdadeiro colecionador de hits, especialista em refrões popularíssimos que sáo verdadeiros 'grudes', o compositor David Corrêa, de 82 anos e torcedor do Fluminense, morreu no domingo (10 de maio), vítima da Covid-19. Ele foi autor de sambas que marcaram história na Portela, Vila Isabel, Mangueira, Imperatriz Leopoldinense e, mesmo Tricolor de coração, ostenta no currículo a assinatura da obra que a Estácio de Sá levou para a avenida em 1995 e que marcou o centenário do Flamengo, cantada até hoje pela torcida rubro-negra.
Primórdios na Portela
David começou a sua carreira oferecendo músicas para alguns sambistas populares no fim dos anos 60 e ganhou status de bamba ao emplacar uma série de vitórias em concurso de sambas-enredo na Portela. O primeiro triunfo veio em 1973 (Pasárgada, a sua única vitória assinando sozinho). Em 1975 pintou o seu primeiro estrondoso sucesso: Macunaíma (com Norival Reis).
"Vou-me embora/Vou-me embora/ Eu aqui volto mais não/ Vou morar no infinito e virar constelação"
(Portela 1975)
Vencedor quatro vezes seguidas
A fase de ouro de David Corrêa na Portela ocorreu entre 1979 e 1982. Foram quatro anos seguidos vencendo os sambas, com destaque para o de 1980, o único que o compositor teve o prazer de ver cantado pela escola campeã (a Portela dividiu o título com Imperatriz e Beija-Flor); e o de 1981, um dos mais populares de todos os tempos.
"O Carioca tem um quê/ sabe amar e viver......Trabalha de janeiro a janeiro/ Em fevereiro cai na delícia da folia''
(Portela 1979)
"Ó raia o sol o dindin/ Suspende a lua dindin/ Salve o palhaço que está lá no meio da rua"
(Portela 1980)
"E lá vou eu, pela imensidão do mar/Nessa onda que borda a avenida de espuma/ Me arrasta a sambar"
(Portela 1981)
"Me leva, me leva/Me leva, baiana que eu também vou/Mestre-sala e porta-bandeira/Girando num conto de amor"
(Portela 1982)
Pit stop de sucesso no Salgueiro
A partir de 1983, David Corrêa buscou competir por outras escolas e o sucesso se manteve. O seu samba vencedor no Salgueiro em 1984 tem um dos refrões mais conhecidos do carnaval:
"Oiá, oiá/Água de cheiro pra ioiô /Vou mandar buscar/ Na fonte do senhor"
(Salgueiro 1984)
Bicampeão na Vila
Em 1985, o compositor, sempre com o parceiro Jorge Macedo, rumou para a Vila Isabel. Ganhou o concurso duas vezes seguidas, novamente emplacando sambas popularíssimos:
"Eu dei pra ti uma cidade doce/Há cheiro de doce no ar/ Inhá Preta, um doce de amor"
(Vila Isabel 1985)
"Ô ô ô ô ô ô, canto que a saudade que ficou, ficou/ O morro desce, me alucina/ Fazendo o mundo girar/ É passo, é pó, é paetê/ Pro rei rodar/Ô lelê/ Mas o mundo é pra eu brincar"
(Vila Isabel 1986)
Vitória na Imperatriz em 1988, sem o parceiro de fé
O último samba acima pôs fim à parceria com Jorge Macedo. Mas David Corrêa não parou de vencer. Em 1988, pousou brevemente na Imperatriz Leopoldinense para emplacar seu nono samba vencedor no carnaval carioca em dez anos. E mais uma vez fez um refrão-grude num enredo que ironizava os planos econômicos que levavam o Brasil a uma inflação incontrolável. Seus parceiros foram Guga, Gibi e um dos grandes do samba, Zé Katimba.
"Eu quero é poder ser Marajá/ Gozar a vida/ Pra vida não me gozar"
(Imperatriz 1988)
Me leva que eu vou....
A sequência de vitórias não se repetiu nos anos 90, mas o autor mostrou que ainda era um dos grandes, colocando dois sambas na antologia do carnaval. Em 1994, emplacou o hino vitorioso da Mangueira e o refrão até hoje é muito popular, talvez o mais conhecido para a nova geração (Carlos Senna, Bira do Ponto e Paulinho de Carvalho foram os outros autores).
"Me leva que eu vou/ Sonho meu/Atrás da verde-e-rosa/Só não vai quem já morreu"
(Mangueira 1994)
Tricolor assina o samba do centenário do Fla
No ano seguinte, em 1995, conseguiu uma façanha. O samba-enredo que fez para a Estácio de Sá, que versava sobre o centenário do Flamengo, bateu os favoritos (inclusive um de outro grande compositor do carnaval, Dominguinhos do Estácio). O tricolor fanático assinou, então, o samba que a torcida do Flamengo canta até hoje. Os parceiros de David foram Adilson Torres, Déo e Caruso (este um campeoníssimo na Estácio).
"É Mengo tengo/ no meu quengo é só Flamengo/ Uh! Tererê.Sou Flamengo até morrer ....Cobra coral, Papagaio vintém/Vesti rubro-negro/ Não tem pra ninguém"
(Estácio de Sá, 1995).
Neste século
David Corrêa seguiu concorrendo nos concursos de samba-enredo, chegou a vencer na Portela em 2002, mas sem o brilho dos anos 70, 80 e 90, o que não minimiza a sua imensa colaboração para tornar o carnaval carioca ainda mais popular.
Sucessos fora da avenida
O seu cartel de sucessos não ficou apenas nos sambas de enredo. Pelo menos duas músicas de sua autoria foram grandes sucessos. A principal: “Mel na Boca”, hit na voz de Almir Guineto relançado por dezenas de artistas como Alcione e Beth Carvalho.
"Será que o amor é isso?/Se é feitiço vou jogar flores no mar/Um raio de luz/Do sol voltará a brilhar/Que se apagou e deixou noite em meu olhar"
A outra é um dos grandes sucessos de Elza Soares: “Bom dia, Portela”.
"Se alguém perguntar se por acaso eu sou feliz/ Meu destino é quem diz/ pois a felicidade é difícil de achar".
Ele fez quase uma centena de músicas, era figurinha carimbada nos álbuns de seu amigo Agepê ('Amor Atrevido' é um exemplo), sempre curtiu fazer músicas irônicas ou de duplo sentido ao estilo Dicró, como “Jacaré Papão”:
"Não mergulhe que a lagoa é funda/ Jacaré vai comer sua sunga."
Atropelamento, Covid e morte
Nos últimos anos, David Corrêa passou por problemas de saúde, sempre se recuperando. Em 17 de abril de 2020, ele foi atropelado em Jacarepaguá, ficou hospitalizado, mas recuperou-se. Uma semana depois, por causa de um problema renal, mais uma vez teve de ser internado e acabou morrendo na noite deste domingo, com o laudo indicando Covid-19. O bamba do samba faria 83 nos no dia 5 de junho.