O futebol salvou a prisão mais perigosa da África

Após criação de liga, penitenciária na capital de Uganda vê índice de reincidência desabar

imagem cameraDivulgação
Avatar
Lance!
São Paulo (SP)
Dia 12/12/2015
19:32
Atualizado em 14/12/2015
16:52
Compartilhar

Opio Moses acordou de madrugada com as mãos frias e suadas. Sentia o coração batendo rápido e pensou estar sofrendo um ataque cardíaco. Sem atendimento médico à disposição, pediu ajuda aos colegas próximos. Deram-lhe água, o abanaram para criar uma corrente de vento. Era o possível naquele momento.

No dia seguinte, o diagnóstico: era estresse.

- Eu era uma espécie de Sepp Blatter. Mas sem corrupção - brinca Moses para o LANCE!.

Ele ocupava o cargo de presidente da Upper Prison Sports Association, a organização (informal) que organiza os torneios de futebol na prisão Luzira Upper nas cercanias de Kampala, capital de Uganda. O esporte mudou a cadeia, que já foi considerada um dia a mais perigosa da África.

"Se não fosse o futebol, isso aqui explodiria", afirma oficial que cuida da prisão no país

Depois da criação da liga, em 2000, a Luzira Upper apresenta taxa de reincidência de 30%. Menor do que a encontrada em cadeias dos Estados Unidos e Europa.

- Se não fosse o futebol, isso aqui explodiria. Nós (as autoridades) precisamos ser espertos. Eles (os presos) são a maioria esmagadora. Se quiserem, eles tomam conta de tudo - afirma Wilson Magomu, oficial que era encarregado da prisão até o início deste ano, quando foi promovido para supervisor de todo o sistema presidiário do país.

O processo da inserção na Luizra Upper virou exemplo dentro do continente, embora as condições não sejam ideais.

- Sim, tudo melhorou. Mas ainda é uma prisão africana, com todos os problemas que isso acarreta - completa Magomu.

Isso significa dizer que 3,5 mil detentos ocupam um espaço construído para receber 500 e, dependendo da época ano, os presos recebem apenas uma refeição por dia.

- Acho que ele tem razão - concorda Moses, sobre a afirmação do ex-oficial, de que sem o futebol, a cadeia sairia de controle.

A organização da liga na cadeia seria capaz de deixar qualquer um estressado.

- É um trabalho de sete dias por semana - completa o “presidente”.

Ele é o responsável por organizar os torneios, montar as tabelas, mediar conflitos, achar patrocinadores, cuidar do registro de jogadores e das transferências. Na Luzira Upper Prison, não há ninguém mais importante do que ele.

INÍCIO DE TUDO

A prisão é a única de segurança máxima em Uganda,  país independente desde 1962 e que se equilibra em uma população que reúne 50 etnias diferentes. A cadeia foi construída na década de 30, quando o território ainda era um protetorado britânico. As condições precárias faziam da Luzira Upper o local ideal para encarcerar nacionalistas e dissidentes.

A violência sempre foi uma característica marcante na relação entre presos e guardas. Na década de 90, a população penitenciária foi dizimada por epidemia de Aids.

A mudança começou em 1999, quando o governo do país resolveu abrir Luzira para ONGs internacionais. As denúncias das condições nas celas provocaram mudanças. A mais significativas foi a autorização para que os presos pudessem se organizar em uma liga de futebol.

A partir do esporte, surgiram escolas administradas pelos presos. Os melhores alunos são colocados em programas de reeducação e passam por testes vocacionais. Há parceria com a University of London (Universidade de Londres).

- A liga é um universo que reflete o que é o futebol fora da cadeia. Não tenha dúvida disso. O que acontece fora tem a imagem dentro - constata Moses.

A começar pelos times. O Campeonato Inglês é o mais assistido em Uganda e os times em Luzira refletem isso. Há o Manchester United, Liverpool, Everton, Arsenal… Cada equipe deve, obrigatoriamente, ter seu próprio estatuto, presidente, secretário e tesoureiro. Precisa ter pelo menos 16 jogadores registrados. O máximo é 25. 

"A liga é um universo que reflete o que é o futebol fora da cadeia. Não tenha dúvida disso. O que acontece fora tem a imagem dentro", afirma Moses

O primeiro criado foi o Liverpool, em 2000. Começou como mais rico porque era comandado por um grupo preso por roubos a bancos. O time tinha os  uniformes mais bonitos e os jogadores mais habilidosos.

- Só há duas formas de atrair os melhores para a sua equipe dentro da prisão. Dinheiro não há. Você oferece uniformes novos ou comida - explica o presidente.

Não se pode desprezar essa moeda de troca dentro da cadeia em Uganda. O próprio Moses recebia uma ração diária maior que a dos outros para administrar a liga. Torcedores fazem doações de alimentos para persuadir alguns jogadores a defender determinada equipe. Jogos importantes podem ser vistos por até 1,5 mil pessoas.

Dinheiro é tão proibido dentro de Luzira que não existe cara ou coroa antes dos jogos. Não há moedas.

Dez equipes disputam os títulos dentro da prisão em um campo de dimensões oficiais construído no setor Boma A. Os cultos religiosos ou culturais não são marcados para o mesmo dia e horário dos jogos. Não há como concorrer.

- O futebol monopoliza tudo. Eles esquecem vários dos problemas. Exatamente como acontece do lado de fora - afirma Mogamu.

Um desses problemas mais sérios é a lentidão da justiça ugandense. A estimativa é que cerca de mil presos poderiam ter a pena revista ou já a cumpriram e deveriam estar livres. Vários deles correm atrás da bola todas as semanas na Luizra Upper, enquanto Opio Moses organiza tudo entre uma crise e outra de estresse.

ONDE FICA: UGANDA

Bandeira e território

A República de Uganda é um país localizado no leste da África. Sem ligação com o mar, faz fronteira com o Quênia, Sudão do Sul e Congo. Colonizado por ingleses, o país tem como línguas oficiais o inglês e o suaíli. Yoweri Kaguta Museveni, que chegou ao poder após um golpe em 1986, é o presidente. Uganda tem cerca de 35 milhões de habitantes. A seleção de futebol nacional nunca jogou uma Copa do Mundo. O resultado mais expressivo no esporte foi o vice-campeonato da Copa Africana das Nações, em 1978.

Siga o Lance! no Google News