Ter uma liga nacional de clubes, independente das federações, faz toda a diferença. É algo que por algumas vezes já se tentou criar aqui, mas sem sucesso, pelo amadorismo da cartolagem tupiniquim, uma gente que se comporta sempre mais como torcedor do que como gestor, deixando de lado o profissionalismo que o futebol exige hoje em dia e levando para os negócios do esporte a rivalidade que deveria ficar dentro do campo.
O papel que vem exercendo La Liga, na Espanha, durante esse período de quarentena, em um dos países do mundo mais castigados pela tragédia do coronavírus, é um exemplo de como essa união de clubes, quando gerida de forma competente e profissional, pode manter intacta a paixão dos fãs, mesmo com a bola parada e muito além da repetição de jogos do passado ou da eleição de craques de todos os tempos, tão comuns na mídia – o que tem seu espaço, é óbvio, mas não pode ser tudo.
O campeonato foi suspenso, mas La Liga não parou. São atrações quase diárias com vídeos de jogadores mostrando sua rotina em casa, dando dicas de prevenção, "aulas" de ginástica e até de culinária. Mas, principalmente, ações de solidariedade às vítimas e poderosas ferramentas digitais que mantêm o torcedor mobilizado mesmo longe dos estádios.
Essa semana, La Liga anunciou através de sua assessoria, que os aplicativos desenvolvidos pela entidade neste período ultrapassaram a marca de 110 milhões de downloads. São produtos educativos voltados ao público infantil, tendo o futebol como pano de fundo, jogos de entretenimento, almanaques completos sobre partidas, clubes e jogadores dos torneios espanhóis. Um detalhe importante: 90% dos 60 milhões de usuários que baixaram o Head Football, o mais popular dos aplicativos, são de fora da Espanha, sendo 5,5 milhões no Brasil, o que comprova o potencial que desperdiçamos por aqui.
Também foi iniciativa dos clubes espanhóis um festival virtual - como o que Lady Gaga comandou no último fim de semana - que reuniu, bem antes disso, em 28 de março, mais de 50 artistas internacionais e jogadores de todos os times da primeira divisão espanhola como Sergio Ramos, Piquet, além de Iniesta e o tenista Rafael Nadal. O LaLiga Santander Fest teve uma audiência global de 50 milhões de pessoas, arrecadando mais de 1 milhão de euros para a compra de 115 respiradores, 435 mil máscaras, 12,6 mil trajes de proteção estéreis descartáveis e 500 mil luvas.
Não se pode dizer que, individualmente, os grandes clubes brasileiros não participem de alguma forma dos esforços contra a COVID-19, cada um a seu modo. Cessão de estádios para a instalação de hospitais, autorização gratuita do uso de marcas, campanhas de doação. Mas isso é muito pouco perto do que o futebol poderia fazer em um cenário como esse. Em que pese a situação financeira, agora ainda mais difícil com a paralisação dos jogos, uma dose de criatividade, proatividade e união, que só uma Liga é capaz de criar, poderiam tornar nossos clubes e jogadores protagonistas efetivos desses tempos difíceis sem bola rolando.
La Liga reúne as 42 equipes da primeira e segunda divisões do futebol espanhol. Além da organização dos campeonatos, a entidade, fundada em 1984, é responsável pelas transmissões de TV que são negociadas em todo o mundo. Paralelo às atividades comerciais, contudo, tem tradição em realizar ações sociais em torno do planeta. Nesta linha, foi a primeira liga a criar um campeonato para jogadores com deficiência intelectual, tem um projeto esportivo-educativo no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, e, pouco antes da pandemia começar, acabara de assinar, no Brasil, um acordo de apoio institucional à Taça das Favelas, o maior torneio amador de futebol do país, que prevê a realização de oficinas educativas e a entrega de prêmios para os melhores jogadores nas categorias masculina e feminina. Ajuda que vem de fora, no rastro da inércia que alimentamos aqui.