Miro Neto: ‘Boca x River, a simbólica despedida da Libertadores-raiz’

'Decisão com Superclássico é como um cortejo simbólico a advertir a Conmebol da traição imperdoável que pode estar cometendo ao espírito da competição'

imagem cameraBoca e River iniciam neste sábado a decisão da Libertadores 2018 (FOTO: Twitter Boca Juniors)
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Lance!
São Paulo (SP) 
Dia 08/11/2018
19:46
Atualizado em 22/11/2018
18:31
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Quis o destino, doutor honoris causa em ironia quando o assunto é futebol, que a despedida da final em dois jogos na Libertadores ocorresse com o mais famoso clássico do continente. É como um cortejo simbólico a advertir a Conmebol da traição imperdoável que pode estar cometendo ao espírito da competição. Na Bombonera, neste sábado, e no Monumental de Nuñez, dia 24, Boca e River farão o confronto mais importante de uma história que conta 105 anos. Maior rivalidade de um país de "locos por el fútbol", como no batismo de um famoso bar portenho, o Superclássico encerra a edição que precede à da instituição da final em jogo único. Já está decidido e, salvo um improvável recuo da confederação em futuro próximo, quem perder terá poucas chances de almejar uma revanche autêntica, com ida e volta, na presença de todos os calores que o formato produz.

Se o Boca for campeão, terá construído metade do enredo diante de seus "hinchas" e festejará sob os olhares dos "hinchas" rivais, na "cancha" rival. Se for o River o campeão, a ordem será a inversa e as sensações igualmente únicas e eternas. No modelo solteiro que a América do Sul resolveu emular da Europa a partir de 2019, algo parecido acontecerá apenas se os arquirrivais fizerem final em ano que tenha como sede escolhida um dos dois estádios. Mas, ainda assim, não passará a sensação de completude que o sistema de mando e visita, existente desde a criação do torneio nos anos 60, legitimou - antes da introdução de prorrogação e pênaltis havia o terceiro jogo em campo neutro, como o Santos x Peñarol de 62, mas era uma saída de desempate.

Via de regra, brasileiros apaixonados pelo futebol argentino devem boa parte desse fascínio ao jeito de torcer dos vizinhos. Os cânticos e atmosfera dos estádios são os chamarizes que os levam a fazer turismo assistindo a jogos na Bombonera, em Nuñez, no El Cilindro (Racing) e demais estádios de Buenos Aires e região metropolitana, ou até mesmo indo a outras cidades com clubes tradicionais, como Rosário e La Plata. No Brasil e demais países sul-americanos as arquibancadas também são grandes partícipes do jogo. Faz parte da alma de toda a região e se expressa com candente originalidade na presença dos torcedores locais. Duelos sul-americanos em campo neutro atingem em cheio o coração do futebol da região.

Em uma indústria que exporta suas promessas e é privada dos seus craques quando eles estão no auge, o ambiente de partidas tem ainda mais relevância, como um contrapeso, uma espécie de compensação. E isso não se confunde com os rotineiros atos infracionais e de violência no que convencionou-se chamar de "espírito de Libertadores", expressão para atos rústicas que, eles sim, deveriam ser alvo de políticas de combate prioritárias da Conmebol. Aqui o que se alude é às festas proporcionadas pelos torcedores que criam dinamismos únicos nas partidas. A ponto de ganharem fraseado de valoração: Enfrentar o Boca na Bombonera! O Peñarol no Centenário! O São Paulo no Morumbi! Falam por si só.

Se a Liga dos Campeões é o créme de la créme do futebol mundial, isso se deve em boa medida ao brilho de jogadores sul-americanos. Eles chegam cada mais vez mais jovens e enriquecem a competição. Vide o casos de Vinícius Jr. que estreou esta semana na competição pelo Real Madrid aos 18 anos. Se os torcedores dos clubes europeus enchem estádios a temporada inteira pela fidelidade e paixão aos times, os jogos transcendem esse caráter identitário, despertando interesse mundial por reunirem fartura de astros. A final captura a atenção de todos os cantos do planeta e os deslocamentos em massa dos torcedores acontecem, predominantemente, em distâncias curtas e de ótima infraestrutura. É um combo que inexiste na Libertadores, inclusive, notem, pela razão inicialmente citada: os melhores jogadores sul-americanos estão no Velho Continente. Grosso modo, a Conmebol copia um ingrediente que dá certo do outro lado do oceano em larga medida porque conta com os melhores jogadores daqui. As finais entre Boca e River têm potencial para escancarar do que se está abrindo mão, um valor genuíno, sem ter-se os outros da fonte que se bebe. Exporta-se o melhor da matéria-prima (o pé de obra), o importador cria a excelência com centralidade dela e se tenta copiar essa excelência sem ter a matéria principal e rejeitando o que é mais valioso e inegociável.

Se fosse em jogo único disputado em Santiago, no Chile, como acontecerá na edição da Libertadores do ano que vem, a final de agora entre River e Boca se plastificaria, perderia boa parte de sua essência. Teria, visualmente, as características de um desses jogos de exibição de pré-temporada, embora valendo o mais desejado troféu pelas equipes deste trecho do planeta. Já que a Conmebol optou pela versão "Libertadores-nutella", vamos aproveitar os últimos vestígios de "Libertadores-raiz" que o destino nos presenteou.

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