O futebol brasileiro perdeu um pouco de sua graça no dia 19 de abril de 1994. Há 25 anos, um acidente automobilístico na Lagoa Rodrigo de Freitas encerrou abruptamente a trajetória de Dener, no momento em que ele acreditava que um de seus sonhos estava mais próximo de ser alcançado. Contratado para ser o camisa 10 do Vasco naquele ano, o craque não escondia seu desejo de estar na Copa do Mundo.
- Dener sempre foi um cara com potencial de Seleção Brasileira, sabia que, se ajudasse no tricampeonato carioca do Vasco, aquilo podia ajudar na sua carreira. Além disto, sempre foi um camisa 10 que consegue quebrar as linhas defensivas, que busca o drible em direção ao gol. E em vez de ter uma vaidade, típica da idade, ele sempre foi muito atento. Era um dos primeiros a chegar aos treinos, escutava o que eu pedia... - relata Jair Pereira, ao LANCE!.
DO 'CARL LEWIS DA COLINA' AO APLAUSO DE MARADONA
A ansiedade por Dener estar entre os escolhidos de Carlos Alberto Parreira também era notada por seus colegas.
- A gente chegou para a pré-temporada no Vasco praticamente junto. Eu estava voltando ao clube depois de ter jogado no Celta (de Vigo, na Espanha). E me lembro muito dele como um cara alegre, divertido, mas mostrando profissionalismo, aspirando uma convocação na Seleção Brasileira - recordou Luisinho.
O desejo de Dener mostrar serviço no Cruz-Maltino rendeu uma situação para lá de inusitada. Alexandre Torres contou que, em um de seus primeiros treinos na Granja Comary, o futuro camisa 10 da Colina teve seus minutos de maratonista:
- Foi em um dos primeiros treinos. A gente teria que sair da bandeirinha de córner, passar por trás dos gols e correr o campo todo. Quando o preparador apitou, ele deu um pique tão forte, que a gente começou a se olhar e falou: "pô, esse cara é o Carl Lewis!". Aí foi correndo nos primeiros 50 metros e a gente incentivando. Falando que ia ter recorde mundial. Um pouquinho antes de dar o novo pique, as pernas dele começaram a tremer, ele perdeu o fôlego antes de chegar nos 100. Aí ele caiu, a gente começou a rir!
'Quando deu o primeiro pique, a gente se falou: 'pô, esse é o Carl Lewis'. Aí logo depois, as pernas tremeram e ele caiu cansado', recorda Torres
Pimentel também lembra do bom humor do craque:
- Ele ria, zoava todo mundo. Estava sempre brincando, com aquele jeitão dele de paulista.
O Vasco encerrou sua preparação com dois amistosos contra o Newell's Old Boys. Embora a equipe tenha empatado as duas partidas na Argentina (em 0 a 0 e 2 a 2), Dener encheu os olhos de um craque já consagrado que atuava no adversária.
- Dener em uma jogada só fez uma fila no time deles e, em seguida, chutou uma bola na trave. O Maradona ficou surpreso para caramba! Quis saber quem era ele, foi cumprimentar, encheu de elogios. Isso não é para qualquer um não - disse Jair Pereira.
O PESSOAL DA BARRA DA TIJUCA
Com o decorrer do Campeonato Carioca, Dener viu sua amizade ficar mais forte com seus colegas de bairro. O camisa 10 era vizinho de nomes como a dupla de zaga Alexandre Torres, Ricardo Rocha e do volante Luisinho.
- A gente às vezes ia junto para treino, revezava quem dava carona um para o outro. E ele sempre contando os sonhos dele - relembra Torres.
Capitão do Vasco na época, Ricardo Rocha, que também foi contratado pelo clube naquele ano, procurava dar conselhos ao meia-atacante:
- Dener estava muito feliz por jogar no Vasco. Lembro que eu ia, o ajudava a ficar atento com as preocupações comuns do futebol. Ele sempre sonhando muito com uma vaga na Seleção e também com propostas que chegavam para jogar no exterior.
'A MISTURA DE GARRINCHA COM PELÉ': A CONQUISTA DA TAÇA GUANABARA
O camisa 10 logo caiu como uma luva em um Cruz-Maltino que vinha forte em busca do tricampeonato carioca. Além das contratações, a equipe mantinha uma a base forte, com nomes como Carlos Germano, Pimentel, Leandro Ávila, Yan, Gian e Valdir.
- Em campo, ele parecia que jogava bola como se estivesse em uma pelada de rua. Descontraído, enfileirando jogadores e sempre sorrindo - declarou Pimentel.
Seu primeiro gol no Campeonato Estadual ocorreu na estreia da equipe na competição, quando o Vasco bateu o Volta Redonda por 2 a 0. Em seguida, marcou na vitória por 1 a 0 sobre o Bangu.
E não demorou a cair nas graças da torcida. Logo, as arquibancadas começaram a reverenciá-lo com o grito de "Ê, cafuné, ê, cafuné, o Dener é a mistura de Garrincha com Pelé!".
Alexandre Torres recorda como o meia-atacante, com gols e jogadas, foi abrindo caminho para o Vasco engrenar na Taça Guanabara:
- Dele, você só podia esperar o inesperado. Com um movimento, deixava para trás cinco, seis... Além disto, abria caminho para outros jogadores de qualidade, como Yan, Valdir, ficarem desmarcados e entrarem livres na área.
'Era um cara ensaboado, né? Partia para cima e não tinha como segurar', diz Ricardo Rocha
Ricardo Rocha é taxativo ao recordar o período de Dener em São Januário:
- Era um cara ensaboado, né? O que ele fazia era sacanagem, partia para cima, e aí não tinha como segurar...
Camisa 7 da Colina, Valdir não esconde que a parceria entre eles foi bem fácil de funcionar:
- Foram três, quatro meses juntos nas quais a gente se entendeu muito bem. Ele tinha muita velocidade, partia muito para dentro e, com as arrancadas dele, deixava muita bola para eu completar.
O bom desempenho na primeira fase credenciou o Cruz-Maltino à vaga para a final na Taça Guanabara. E, em jogo com grande atuação de Dener, a equipe sagrou-se campeã com goleada: 4 a 1 sobre o Fluminense. Autor de dois gols, Valdir Bigode não esconde que o desempenho do camisa 10 foi crucial para o título:
- Ele jogou muito. Deixou muito essa lembrança de se divertir ao jogar futebol, dos seus dribles.
Devido ao triunfo (no qual Yan e Pimentel marcaram os outros gols do Vasco e Ézio fez o gol tricolor), o Vasco chegou ao Quadrangular Final com dois pontos extras. O embate no Maracanã teve uma peculiaridade: em uma de suas habituais arrancadas, Dener passou como quis por dois marcadores, mas errou a finalização ao tocar na saída do goleiro.
'ELE ADORAVA IR PARA SÃO PAULO DE CARRO'
Embora já se mostrasse habituado ao Rio de Janeiro, Dener não deixava de lado suas raízes. Aos 23 anos e já com três filhos, o meia-atacante costumava, depois de cada partida no Vasco, viajar de carro rumo a São Paulo.
- Ele mal trocava de roupa e pegava o carro rumo à estrada. Era muito ansioso em fazer essas viagens, em ficar perto da família - revela Torres.
De acordo com Luisinho, batia em Dener a vontade de rever a família após cada partida:
- Ele sempre falava nos três filhos. Tinha saudade de ficar perto deles.
A rotina do camisa 10 causava preocupação na Colina. Jair Pereira revelou que costumava alertar o seu comandado:
- Nós todos ficávamos dizendo: "Dener, vai de avião, senão você acaba voltando de madrugada ao Rio...". E ele dizia que tudo bem, que estava acostumado com a viagem...
'QUANDO EU SOUBE, SAÍ DE MIM': O BAQUE COM O ADEUS DE DENER
O Vasco iniciou o Quadrangular Final com uma vitória por 1 a 0 sobre o Botafogo. Já na partida seguinte, a equipe comandada por Jair Pereira enfrentou o Fluminense em um jogo bastante turbulento para Dener.
O camisa 10 se envolveu uma confusão com Branco e ambos foram expulsos. O Cruz-Maltino, que pela primeira vez na competição começara perdendo, chegou a arrancar o empate em 1 a 1 (mas não conseguiu a virada mesmo com o Tricolor das Laranjeiras também tendo Jandir expulso). Suspenso para o jogo com o Flamengo, Dener seguiu viagem para São Paulo mais uma vez.
Contudo, em seu retorno no dia 19 de abril de 1994, o camisa 10 não conseguiu driblar uma fatalidade. Seu amigo Oto Gomes Miranda dormiu ao volante, às 5h30, e o veículo colidiu com uma árvore na Lagoa Rodrigo de Freitas. Dener, que usava o cinto de segurança, mas dormia com o banco reclinado, morreu asfixiado com a batida.
- Eu morava em Cavalcante (bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro) nessa época. Lembro que me ligaram e disseram: "o Dener sofreu um acidente". Fui para lá e, quando vi aquela cena triste, foi uma dor imensa... - recordou Jair Pereira.
'Não tem como mensurar a saudade', diz Luisinho
Um dos primeiros colegas a chegar no local, Luisinho não esconde o lamento ao lembrar daquele 19 de abril:
- Não tem como mensurar. Um cara muito bacana, do bem e de repente, acontece isso...
Pimentel também relembra o susto com o qual lidou ao saber da tragédia:
- Eu estava ouvindo o rádio. Quando soube, eu saí de mim... É uma coisa que você jamais pode imaginar.
Já Ricardo Rocha não pôde estar perto para consolar os companheiros:
- Eu estava na Seleção Brasileira. A gente fez aquele amistoso com o PSG, no qual inclusive o (Ayrton) Senna deu pontapé inicial. Mas voltei sabendo que a gente ia precisar de muita força.
Com Dener, o Vasco jogara 17 partidas. Foram dez vitórias e sete empates, além de cinco gols marcados.
O VASCO É TRI, SEM DENER, E POR DENER
Em meio à tristeza pela despedida de Dener, o Vasco ainda teve um grande desafio: recolher os cacos e encarar o Flamengo no jogo seguinte. Ricardo Rocha desabafa ao lembrar-se do momento de muita mobilização na Colina:
- Cheguei para todos e disse: "a vida continua, nós temos um título carioca para buscar, e seguimos em condições". E eu tinha de passar para eles essa força, porque era um dos mais experientes e tinha muito garoto no Vasco: Gian, Yan, Valdir...
Luisinho confessa que os primeiros dias foram os mais turbulentos.
- É complicado, né? Você está acostumado a conviver com uma pessoa e de repente tem esse baque. Aí tivemos este jogo com o Flamengo, no qual fomos mal, sofremos nossa única derrota no Campeonato Carioca - relembrou, sobre o jogo no qual o Vasco chegou a abrir o placar, mas o Rubro-Negro virou para 2 a 1.
'Tivemos um trabalho forte e o apoio da comissão técnica pelo tri. Além disto, a torcida nos abraçou', recorda Pimentel
Em seguida, houve novo Clássico dos Milhões, com empate em 1 a 1 (Jardel, substituto de Dener, fez o gol vascaíno). Aos poucos, o Cruz-Maltino voltou a se aprumar. Venceu por 3 a 1 o Botafogo e, beneficiado pela derrota por 2 a 0 do Flamengo para o Fluminense, voltou à briga pelo título.
- Tivemos um trabalho muito forte do Jair (Pereira), da comissão técnica. De experientes como o (Alexandre) Torres, Cássio, do Carlos Germano, que brinco que tem "alma de veterano". Mas a torcida abraçou a gente - lembra Pimentel.
Na última partida, o Vasco alcançou o tricampeonato carioca, ao vencer o Fluminense por 2 a 0, com gols de Jardel. Um título póstumo para a coleção de Dener, mas com a certeza de que ele ainda merecia mais.
'EMPOLGADO COM A IDA PARA A EUROPA': O SONHO QUASE REALIZADO
Além da sensação de que poderia deslanchar com a camisa da Seleção Brasileira, o acidente de carro deixou para trás um sonho que Dener estava prestes a realizar. Naquela semana, ele aceitara o acordo para jogar no Sttutgart (ALE).
- Tinha uma proposta muito boa para ele jogar no exterior depois do Campeonato Carioca. Ele estava muito feliz com isto. Em poder melhorar de vida, ajudar a família - contou Alexandre Torres.
'Ele estava muito feliz com a proposta, em ajudar a família', revela Torres
Pimentel é categórico ao falar sobre seu antigo companheiro de Vasco:
- Dali, era um pulo para estar na Seleção Brasileira e para jogar no futebol europeu. Dener foi um dos melhores caras com quem joguei.
Seu antigo companheiro de Barra da Tijuca, Luisinho garante:
- Dener tinha potencial para ser o melhor do mundo. Além da habilidade, sempre foi um cara muito atento, determinado...
Ricardo Rocha crê que, em meio a 25 anos de saudades, Dener deixa uma lição para o futebol brasileiro:
- Essa alegria de jogar futebol, né? Do jogador técnico, veloz, habilidoso...
A arte de Dener segue cada vez mais viva.