Luiz Gomes: ‘Cartolococcus em ação: o futebol e a má conduta’
'Operação 'Limpidus' mostra que grandes clubes continuam tristemente contaminados por um mal semelhante ao Streptococcus Pyogenes, corrompendo valores e princípios'
Streptococcus Pyogenes é uma bactéria que, entre outras doenças, provoca a fasciíte necrosante, uma infecção que destrói o tecido que cobre os músculos, gordura e pele. Popularmente ficou conhecida como bactéria que come carne. Mas o que isso tem a ver com o futebol? Como uma coluna esportiva pode invadir o seu domingo tratando de um assunto tão desagradável como esse?
É apenas uma analogia.
A operação 'Limpidus', lançada nesta sexta-feira pela Polícia Civil e o Ministério Público do Rio, mostrou que grandes clubes continuam tristemente contaminados por um mal semelhante. Há dentro deles verdadeiros Streptococcus Pyogenes, elementos que, por omissão, cumplicidade ou colaboração com as torcidas organizadas corroem de dentro para fora o patrimônio dos clubes, comprometem receitas e, o pior, corrompem valores e princípios que deveriam nortear gestões realmente focadas nos interesses das instituições que dirigem.
É surpreendente a ingenuidade de Pedro Abad, o presidente do Fluminense. Um dos cartolas que foi levado coercitivamente para depor pela polícia, ele admitiu que fez um acordo com as organizadas do clube para o repasse de um "pequeno número" de ingressos, “cerca de 200”, até o fim do ano. Mas disse nada saber sobre o destino dos bilhetes. “O Fluminense nunca teve nenhum conhecimento de os ingressos serem repassados ou terem destinação diferente. Como se pode constatar, a torcida se concentrou no mesmo lugar, com uma bateria só, e teve efeito positivo dentro de campo”, justificou o dirigente. O que ele não comentou é como um clube que soma prejuízos de mais de R$ 3 milhões com seus jogos no Maracanã pode abrir mão de receitas distribuindo ingressos gratuitamente para “ganhar” um apoio que deveria ser natural.
Abad ainda teve de ouvir uma reprimenda pública da Bravo 52 (uma das poucas organizadas do Fluminense que não estão envolvidas no esquema de ingressos, segundo a polícia) que o chamou de mentiroso ao colocar todos as torcidas no mesmo saco. “Cantamos, apoiamos, ficamos loucos durante cada um dos 90 minutos de bola rolando. E em cada partida, tiramos dinheiro do nosso bolso! Cada instrumento, do nosso bolso, cada caravana, do nosso bolso, cada cerveja, do nosso bolso!”, afirmou a Bravo em nota. O que o constrangido cartola foi obrigado a admitir. Sim, nem tudo parece estar perdido...
Pior situação é a do vice-presidente de estádios do Botafogo, Anderson Simões. Os indícios contra ele são tão significativos que a Justiça acatou o pedido da polícia e do MP e determinou que fosse afastado do cargo e proibido de frequentar estádios. Em sua sala no Nilton Santos, durante operação de busca, além de computadores e documentos, foram apreendidos dois facões. Objetos, digamos, no mínimo inadequados para um ambiente de trabalho e que agora serão periciados para saber como e onde foram ou vinham sendo utilizados.
A operação “Limpidus” levou à prisão de vários dirigentes de organizadas. Entre os beneficiários da distribuição de ingressos estariam facções e indivíduos proibidos de frequentar estádios. Mas esse tipo de relação promíscua não é uma invenção carioca. O Palmeiras vive uma crise interna e está no meio de uma investigação policial com a descoberta de que ingressos cedidos gratuitamente ao ex-presidente Mustafá Contursi eram repassados e vendidos por um integrante de uma das principais organizadas do clube. Caso que só veio à tona quando a mulher que servia como intermediária passou a ser ameaçada por esses “torcedores”. É assim que a banda toca...
É importante que as investigações sigam até o fim, seja no Rio ou em São Paulo. Que os acusados possam se defender e que paguem se a culpa for comprovada. Mas os clubes precisam mudar. Enquanto permitirem que Streptococcus Pyogenes continuem a comer sua carne por dentro, o problema não vai acabar. Não é que tenham de romper com as torcidas. Ao contrário, elas fazem parte do futebol. Mas os princípios dessa relação devem ser, sempre, os interesses do clube – e não da política clubística, como muitas vezes acontece. É isso que legitima criminosos, vândalos e oportunistas que não representam o verdadeiro torcedor.