Os ‘sincerões’! Técnicos portugueses no Brasil se notabilizam por franqueza nas entrevistas
Com falas contundentes e sem fugir de assuntos polêmicos, treinadores lusos tem chamado atenção e gerado debates sobre o estilo
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As entrevistas coletivas pós-jogos vêm ganhando um tempero especial no futebol brasileiro com a forte presença de técnicos portugueses. Nova coqueluche do mercado por conta de resultados expressivos conquistados e métodos de trabalho considerados mais modernos e produtivos, os profissionais da Terrinha mostram uma faceta particular, de franqueza incomum, longe das amarras impostas pelas regras de conduta do 'bom-mocismo' nacional e da pasteurização das assessorias de imprensa.
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Atualmente, quatro times do Campeonato Brasileiro da Série A são comandandados por portugueses: Corinthians, Palmeiras, Flamengo e Botafogo. Em todos eles, já aconteceram declarações de extrema sinceridade nas coletivas que ganharam as manchetes dos veículos de imprensa - e, por quê não, os corações dos torcedores?
No Timão, Vitor Pereira parece levar a ferro e fogo os aprendizados do mentor José Mourinho nos tempos de Porto. A cada declaração após as partidas, jornalistas e torcedores demonstram surpresa com a franqueza com que o treinador trata assuntos espinhosos e a clareza em expor suas ideias e o que pensa sobre o esporte.
No último domingo (22), ocorreu um dos exemplos mais claros. O assunto em questão após o empate em 1 a 1 com o São Paulo, na Neo Química Arena, pelo Brasileirão, foi o atacante Róger Guedes. Mesmo com os pedidos da Fiel, o camisa 9 esquentou o banco pelo segundo jogo seguido (já ficara de fora no duelo com o Boca Juniors, pela Copa Libertadores, que terminou com o mesmo placar, durante a semana). A resposta, clara e direta, ao falar do desejo do atleta de atuar em determinada posição, foi taxativa até para o mais corneteiro dos alvinegros.
- Eu também queria treinar o Liverpool. Ia correndo direto para a Inglaterra, com todo respeito que tenho ao Corinthians, mas o Liverpool é o Liverpool. Aqui não é o que nós queremos, na minha filosofia de jogo é o que a equipe precisa. Às vezes, do Róger pela esquerda, outras vezes pelo meio e outras pela direita e ele tem que ter a capacidade de responder às situações, com compromisso defensivo para não desequilibrar a equipe. Futebol não dá para jogar com jogador sem compromisso e preciso de uma resposta mais forte.
Não foi um caso isolado de 'sincericídio' do português, que em outras oportunidades já afirmara que não trabalhava com um time titular fixo, além de analisar um possível desequilíbrio do elenco apontando o excesso de meias e também rebateu as críticas de que não saberia a importância do Dérbi (clássico contra o Palmeiras), sendo que já 'deixou estádio em tanque de guerra' na Turquia.
- Temos muitos meias ofensivos. Renato (Augusto), Paulinho, Giuliano, Luan... Temos que encontrar uma mescla. São muitos meias ofensivos. Nós temos muitos meias ofensivos. Já conversamos sobre isso, estamos desequilibrados. E minha função é arranjar soluções. E isso não é ter um time titular. Porque se montar o time titular com as peças que vocês querem, provavelmente não será equilibrado. Se formos olhar só para a qualidade técnica, não é equilibrado. Nós temos que equilibrar o jogo. O jogo de hoje é exemplo disso. Nós aqui não temos hipótese nenhuma de escalar todos eles juntos. Nós temos que ir gerindo isso bem para equilibrar isso, até para dar a eles suporte no seu jogo ofensivo - destacou Pereira após a vitória por 1 a 0 sobre o Fortaleza.
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'Abrasileirado', Abel sofreu ofensas, mas passou a ser ouvido
O estilo de entrevistas 'sinceronas' dos lusitanos chegou ao país pela boca de Abel Ferreira. O palmeirense é o 'patrício' com o maior tempo de casa na elite do futebol nacional. E, do susto inicial que suas declarações causaram, passando por críticas e até ofensas xenófobas, passaram a ter simpatia geral. Hoje, suas posições sobre futebol, organização tática, do esporte no Brasil e até de arbitragem são ouvidas e debatidas com o respeito adquirido pelos grandes mestres. As duas conquistas de Libertadores consecutivas, algo que só Lula, no Santos, e Telê Santana, no São Paulo, haviam alcançado no país, ajudaram a dar prestígio às falas.
Ninguém passou impune pela língua ferina de Abel em seus quase dois anos de Verdão. Federação Paulista, CBF, críticas a rivais, elogios, reclamações de calendário, queixas à diretoria sobre falta de reforços e até um hipotético vizinho corneteiro que o provocava após maus resultados. Seria uma metáfora? Só o treinador é capaz de explicar...
- Tenho um vizinho que mora no meu prédio que é um chato. Foi diretamente ao meu vizinho, porque quem manda na minha casa sou eu. Está calado! Quem trabalha dentro do CT sou eu e meus jogadores. Defendo meus jogadores porque são meus nas vitórias e derrotas. Ao meu vizinho, shiu! - disse após a classificação à final da Libertadores 2021.
Após a derrota para o Chelsea na final do Mundial de Clubes deste ano, Abel disse que brigaria 'com o jogador que não abrisse uma cerveja para comemorar'. Lamentou o fato do rival inglês ter uma verdadeira legião estrangeira à disposição para ser escalada. Voltou ao Brasil, ganhou a Recopa e após vencer o Santos em uma sequência de clássicos no Paulistão se viu às voltas com críticas de ser retranqueiro. Novamente não se calou.
- Nossa equipe é um bocadinho retranqueira. Jogamos atrás, não criamos oportunidade de gol, não propõe, não ganha, não bate recordes... - destacou o português, agora até autor de livros em terras brazilis.
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No Rio, experientes e vitoriosos mostram faceta 'controlada', mas polêmicas batem à porta
Exemplos concretos no Brasil da recente vitoriosa escola portuguesa de treinadores, Luis Castro e Paulo Sousa vivem os seus sonhos de verão no Rio de Janeiro. Mais experientes que seus conterrâneos no futebol paulista, até são mais comedidos nas palavras. Mas isso não impede que as polêmicas também estejam presentes pelo estilo sem receio de tratar de temas variados.
Castro, comandante do Botafogo, é conhecido na Terrinha pelo seu jeito polido e professoral. É lamentado até hoje por lá que ele não tenha tido maiores oportunidades no futebol local (passou apenas pelo Porto, em 2014). Entretanto, quando provocado pela imprensa brasileira, mostrou a faceta 'sincericida' lusitana. Um dos assuntos que fugiu, por exemplo, foi comentar sobre os colegas portugueses.
- Eu não falo da vida de ninguém. Eu vou falar da minha vida. Eu falar da vida dos outros? Você não vai me arrancar nenhuma palavra sobre a vida do que fazem, e tal. Sabe uma coisa que aprendi no futebol? Só tenho que me preocupar com o que eu domino. A única coisa que eu domino é o treino é o jogo, que é da minha responsabilidade. Para além disso, nem quero saber. Cada um faça seu caminho. Grande abraço ao Paulo, ao Jorge, ao Vítor, a todos os treinadores, mas eu falar sobre eles? O que eu posso falar é, quando acontecerem as críticas sobre mim, o que posso fazer é refletir sobre as críticas e depois da reflexão perceber o que fazer da minha vida. Se após a reflexão eu devo falar com a administração e dizer adeus, assim farei.
Sousa, que dirige o Flamengo, é um dos gigantes de Portugal. Como jogador, passou por todas as principais ligas e eternizou seu nome na história de clubes como Borussia Dortmund, Juventus e Parma. No Brasil, o trabalho como técnico no clube da Gávea encontra resistência. principalmente pelas polêmicas. Seja com o goleiro Diego Alves, seja pelo ex-comandante rubro-negro, o compatriota Jorge Jesus.
- Eu paguei para estar nesse clube e serei feliz. É um desafio próprio para crescer, desenvolver um talento emocional para seguir focado, acreditando nos processos. Nas conversas, era fundamental renovar, reconstruir esse elenco, dar mais equilíbrio, e, ao mesmo tempo, continuar a ganhar, pois isso é o Flamengo. Vamos fazer isso com paciência, e é um trabalho exercido dia a dia - chegou a dizer o português sobre o caos recente no cotidiano flamenguista.
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Mercado aberto e falta de projeto a longo prazo ajudam na sinceridade, avaliam especialistas
Mas engana-se, contudo, que a sinceridade excessiva dos portugueses é algo natural. Segundo entendedores de futebol lusitano ouvidos pelo LANCE!, dois fatores podem ajudar nessa postura deles no Brasil: o fato de terem mercado aberto não só no país, como em toda a Europa ainda, e também a falta de confiança em projetos de longo prazo no nosso futebol. Como aconteceram com Jesualdo Ferreira, no Santos, e Ricardo Sá Pinto, no Vasco, a demissão pode vir a qualquer momento.
- Não me parece que seja cultural! Lá não costumam ser tão diretos quanto aqui. Creio que o fato de saberem que a qualquer momento podem ser chutados de um país desconhecido, faz com que tenham uma sinceridade acima do normal - disse o historiador Tiago Cabral, luso-descendente, torcedor do Sporting e autor de textos sobre a presença portuguesa no futebol nacional.
Também com origens lusitanas, o comentarista Élcio Mendonça, da Redetv e Conmebol TV, ressalta que muitos dos profissionais lusitanos não veem uma expectativa de construir uma carreira longeva no Brasil.
- O Brasil não é o habitat natural deles. Um técnico brasileiro que dê uma declaração que desagrada ou polemiza pode afetar o mercado de trabalho dele. Os portugueses muitas vezes estão por aqui de passagem. Então eles sabem que se saírem de seus clubes atuais, ainda possuem um mercado internacional para explorar. Isso deixa eles mais soltos.
Com experiência em assessoria de imprensa, Mendonça também aponta diferenças na cobertura diária de clubes como um fator importante a se destacar.
- Há uma cobertura midiática maior no Brasil. Cobre-se mais futebol que em Portugal, fala-se mais de futebol que em Portugal. Gasta-se mais tempo com futebol no Brasil, enfim. E a maneira de se cobrir também é diferente. Muitas vezes aqui somos pautados pela polêmica. Isso faz com que treinadores e técnicos vão às entrevistas com certo receio dos jornalistas, pelo medo de serem mal interpretados ou de cair em alguma pegadinha que desencadeia a polêmica. Por isso os brasileiros estão mais na defensiva. Em Portugal é diferente a relação da imprensa com os clubes. Claro que se tem atritos, mas ela não é tão polemizada. Isso faz com que se tenha uma conversa mais franca entre profissionais de futebol e imprensa.
Entre os portugueses, a leitura é semelhante. Por mais que assuste eles o fato de no Brasil temas teoricamente básicos, como análise de jogo e adversário, seja encarado como polêmicas muitas vezes, há um consenso de que talvez o tipo de cobertura acabe evidenciando uma diferença cultural.
- Eu diria que o fato de estarem no estrangeiro aguça um pouco o apetite parta falar de forma mais aberta. Aqui em Portugal, os clubes impedem que haja essas falas tão abertas. Mas isso é como tudo na vida. Há situação que dependem do caráter, da postura, da forma de ser de cada pessoa. E isso se aplica a cada um desses treinadores que estão no Brasil. Aqui em Portugal procura-se sobre tudo evitar a polêmica, por isso surgem nas análises conversas relacionadas aos treinos, aos métodos de trabalho, ao jogo, com o adversário, arbitragem. Por isso para nós, esse aspecto não é surpresa. Não diria que há uma sinceridade excessiva. Mas que há muita veracidade - apontou o jornalista Rui Viegas, da Rádio Renascença.
Para Rafael Soares, do diário Record, os nomes contratados pelo futebol brasileiro ajudam na surpresa com que suas declarações podem ser encaradas.
- Bem, eu não sei se estará mesmo relacionado com a nacionalidade destes treinadores. Aliás, olhando para os treinadores em questão, até penso que conseguimos encontrar diferenças na forma como comunicam interna e externamente. Luis Castro, por exemplo, aparenta ser uma pessoa mais pacata se o compararmos com Abel Ferreira e Vítor Pereira. No entanto, reforço esta componente: o Brasil encontrou treinadores portugueses que gostam de falar sobre o jogo porque são estudiosos.
Com experiência na cobertura do quarteto, Soares elogia as condutas de Castro e Pereira, por exemplo. No botafoguense, por exemplo, classifica como 'aula' as coletivas pela sua tentativa de explicar o jogo em detalhes. Ao corintiano, destaca o seu gosto em falar pelo jogo e revela que já atuou como comentarista na TV portuguesa, o que o dá liberdade e prática no trato com repórteres.
- Eu não consigo estabelecer um termo de comparação concreto entre aquilo que são os treinadores portugueses e os brasileiros. Penso que dependerá de perfil para perfil. Acredito que haja uma evolução na forma como os treinadores comunicam porque o público também é mais exigente. No entanto, faço aqui uma distinção. Quem são os treinadores que falam sobre o jogo em si? Quem são os treinadores que são honestos e frontais? Eu acredito que ainda há um caminho a percorrer e sinto que os treinadores ainda se fecham um pouco. Muitas vezes respondem com alguns chavões às perguntas dos jornalistas e fecham-se em copas. Acredito, como disse no início, que há alguma evolução porque os adeptos também são mais exigentes e acredito que querem saber mais sobre o jogo.
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