A preocupação atual de (ainda poucos) jogadores excede o que se passa dentro de campo. Além de um mundo cada vez mais conectado e com ferramentas para melhorar o rendimento no gramado, os atletas começam a pensar no pós-carreira no futebol. Empresas que planejam e cuidam das finanças são cada vez mais frequentes nesse ramo esportivo, mas o espaço ainda é enorme já que muitos profissionais ainda não 'dão bola' para esse tipo de serviço.
O pensamento no futuro tem papel decisivo nessa profissão. A trajetória de um futebolista, raramente, chega a 20 anos. O auge técnico, físico e psicológico de um profissional é, em média, de três a cinco anos, com exceções de Cristiano Ronaldo e Messi, que superam esse dado há mais de 10 anos. E é nesse curto período que, normalmente, se consegue um contrato mais vantajoso e com possibilidades de investimentos.
Como a aposentadoria ocorre antes dos 40 anos, sendo a média da população brasileira de 65 anos, o cenário mostra que o então ex-atleta precisa de outra ocupação quando parar com a bola. Ou seja, a vida tem que continuar de outra maneira com um planejamento que, preferencialmente, se inicie ainda durante a carreira profissional.
Em levantamento divulgado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), através da sua Diretoria de Registro e Transferências (DRT), em 2016, os números mostraram que mais de 28 mil jogadores têm contratos profissionais no Brasil, mas os vencimentos em carteira são pequenos na maioria dos casos. Segundo o relatório, mais de 80% dos jogadores recebem até R$ 1 mil de salário, próximo do salário mínimo nacional de R$ 954, enquanto outros 13% recebem seus vencimentos dentro da faixa salarial de R$ 1 mil a R$ 5 mil e somente 1,77% ganhava entre R$ 10 mil e R$ 50 mil.
Os salários entre R$ 50 mil e R$ 100 mil equivalem a 0,40%; entre R$ 100 mil e R$ 200 mil são de 0,28%; de R$ 200 mil e R$ 500 mil ficam em 0,12% do total e somente um atleta tinha o vencimento acima de R$ 500 mil há dois anos. Ou seja, em um ambiente de quase 30 mil profissionais, 725 jogadores recebem entre R$ 10 mil e R$ 500 mil, considerados vencimentos bem acima da média brasileira. E, mesmo assim, muitos deles não sabem administrar seu dinheiro.
Não são raros os casos de atletas famosos que conseguiram cifras milionárias no País e no mundo e se perderam nas contas ou tiveram grandes complicações. Garrincha, Muller, Jardel, Maradona, George Best, David James, Vitor Baía, Riise, Christian Vieri, Paul Gascoine, Andreas Brehme, entre outros. Os motivos variam: carros de luxo, gastança com noitadas e roupas, divórcios, maus investimentos, empresários oportunistas, etc. Em jogadores de alto nível da Europa é bem frequente o pagamento de multas fiscais e tributárias. Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo, Rooney, Mascherano e assim vai.
- Nós trabalhamos bastante as variáveis para ele (jogador) economizar, pelo menos, 40% de seu faturamento - diz Marcelo Claudino, da TopSoccer.
Um estudo feito pela consultoria alemã Schips Finanz, em 2011, aponta que 50% dos profissionais de futebol terminam a carreira com problemas financeiros. Apesar de já fazer sete anos e ter um avanço na questão em geral, a administração do dinheiro dos atletas ainda é precária em sua maioria e o panorama não mudou tanto de lá para cá.
O que fazer?
As empresas que gerenciam as carreiras do atletas, aos poucos, vão incorporando esse cuidado com as finanças em seus serviços, apesar de algumas, conforme ouvidas pela reportagem, acreditarem que essa relação conjunta pode dar conflito e desgaste com o agenciado. Então, até por isso, outras firmas oferecem somente esse tipo de trabalho, criadas especificamente para este fim.
- Por ter menos tempo de renda alta, já que a carreira é curta, nós trabalhamos bastante as variáveis para ele (jogador) economizar, pelo menos, 40% de seu faturamento e gerar um valor financeiro adequado que renda uma boa quantia em seu novo ciclo de vida - afirmou Marcelo Claudino, da TopSoccer, fundada em 2013 e que atende aproximadamente 60 jogadores espalhados pelo Brasil, China, Emirados Árabes, Portugal e Estados Unidos.
- O mais importante nem é o investimento em si, mas cada investimento aceito pelo atleta esteja de acordo com o planejamento dentro do que quer pro seu objetivo. Os investimentos mais comuns são a renda fixa, o Tesouro Direto, fundos. Estamos passando por uma transformação, as taxas de juros estão baixas e, para ter maior rentabilidade, precisa ter um pouco mais de risco. Já os imóveis são importantes, mas tem que ter uma parcela controlada disso dentro do patrimônio total para não ter muito recurso imobilizado que tire a rentabilidade da área imobiliária - complementa Claudino.
O empresário, que iniciou o projeto com jogadores da Seleção brasileira de vôlei em 2008, disse que a empresa não aborda potenciais clientes e consegue sua clientela apenas na indicação. Os serviços são financeiro, contábil e jurídico, com honorários fixos.
- O futebol tem uma grande demanda. Levamos a educação financeira. Eles aprendem a operar e a fazer sozinhos. Não há conflito de interesses. Recebemos um valor fixo, que varia de acordo com a renda e patrimônio do cliente, sem comissionamento. Todas as vantagens que recebemos e conseguimos em negociações ficam para eles - completou.
Cada caso é um caso, dependendo da renda, o tempo de contrato, entre outras variantes, mas basicamente há um consenso: ter uma reserva que permita viver até seis meses devido aos clubes atrasam o pagamento dos salários; cuidadoso com as ofertas dos amigos para abrir negócios que você não conhece e que não terá tempo para acompanhar; envolver toda a família na gestão de suas finanças pessoais, afinal eles também precisam colaborar para que você mantenha o controle de suas despesas e consiga assim construir um patrimônio. Essas dicas vem do ex-atleta William Machado, formado em Ciências Contábeis, que se aposentou aos 34 anos e se associou a um projeto de educação e consultoria financeira para atletas: a Bawn Investimentos.
Exemplos
A reportagem do LANCE! foi atrás de um personagem de cada clube do Trio de Ferro do futebol paranaense para ouvir como cada um se prepara quando pendurar as chuteiras. Não foi tão fácil conseguir.
No Paraná Clube, por exemplo, o meio-campista Leandro Vilela, 22 anos, é um raro caso que tem essa preocupação com o pós-carreira. E a resposta para isso é um pilar corriqueiro nesse tipo de atleta com noção da realidade: a base familiar. Ele vem investindo seu salário desde a época de categoria de base e, mesmo com os grandes atrasos salariais que ocorriam no Tricolor até 2016, está conseguindo ter um bom suporte. Ele, que guarda grande parte de seus vencimentos, tem vínculo com o time paranaense até o final do ano que vem.
Dentro do elenco atual paranista, que passa por entradas e saídas para a disputa da Série A, tendo entre 30 e 35 atletas, o volante disse que Carlos Eduardo, 30 anos e com experiência na Europa, é outro que guarda e investe sua renda. O resto do grupo? Ele desconhece. A média de idade do grupo é de 25,6 anos.
- Eu sou de uma família que me ajuda muito e me aconselha em aspectos financeiros. Meus pais são da área bancária e trabalharam 20 anos nesse mercado. Sempre me aconselharam em guardar dinheiro pra comprar minha casa, pra sempre ter dinheiro quando as coisas apertarem. Então sempre me ajudaram a guardar parte da minha renda, direcionando em quais coisas gastar e investir. Tenho previdência privada, tenho consórcios e fundos de investimentos que me ajudam a ter uma renda melhor. Hoje eu guardo 80% do meu salário. Penso em ter um negócio próprio, pra quem sabe quando eu parar de jogar já ter algo planejado e não sofrer com essa mudança de ex atleta. Penso em ter uma cancha de futebol sintético, estou juntando dinheiro pra isso, pois preciso comprar o terreno e fazer o acabamento da cancha e não é um negócio barato - explicou Vilela.
Já no Coritiba, assim como no Tricolor, um preocupado com o futuro é da nova geração. O lateral-direito Marcos Moser, 19 anos, estreou no profissional no Campeonato Paranaense deste ano e conta que o clube oferece palestras de educação financeira, inclusive feita recentemente, mas são poucos que vão até o final em seu interesse.- Como eu subi agora, o salário e as premiações aumentaram bastante em relação às categorias de base. Tem que ter cabeça para controlar essa parte, sem gastar em coisas fúteis. O clube já vai preparando o pessoal da base, com conversas e palestras, dando conselhos nessas questões. Muitos jogadores querem festejar e só isso não gera nada - afirmou.
O ala comentou que vai casar neste ano e ainda não tem carro e moradia próprios. A ideia do jovem jogador é, após ter a posse desse bens, começar a investir em outros negócios a partir de 2019. Seu contrato com o Verdão vai até o final de 2020.
- Converso bastante com esse pessoal que trabalha com investimento para ver o que gera lucro lá na frente. Tenho planos em mente, como imóveis e terrenos para começar no ano que vem. A carreira é menor em relação aos outros trabalhos e precisamos ter esse suporte. No elenco, ouço falar sobre alguns que investe também. O Abner, o Thiago Lopes e devem ter mais alguns - completou.
Por fim, no Atlético-PR, uma pessoa em especial dentro do grupo faz toda a diferença: Paulo André. Ele iria se aposentar ao fim da última temporada, mas decidiu atuar por mais um ano. Considerado um ponto fora da curva no meio futebolístico, assim como Beckham, Ronaldo, Fabio Luciano, Roberto Carlos, Zidane, Kaká, entre outros que se prepararam, o zagueiro de 34 anos tem grande vivência e continua amadurecendo no fim da profissão.
Apesar do jogador não responder ao pedido de entrevista, a reportagem conversou com pessoas dentro do clube sobre o profissional e investimentos que ele sempre aconselha? Estudo. Ler. Comer as palavras. O jogador, por exemplo, é formado em Educação Física e está terminando o curso de Administração, além de ser pós-graduado em Gestão Esportiva pela Fundação Getúlio Vargas e com formação em Gestão Técnica na Universidade do Futebol. Ainda escreveu o livro “O Jogo da Minha Vida – Histórias e reflexões de um atleta” sobre a construção de sua carreira.
O defensor também foi líder do movimento de atletas Bom Senso F.C, que cobrava melhorias no futebol nacional, mas já saiu de cena. Costuma investir na Bolsa de Valores. Atualmente, além de atuar dentro de campo, o profissional tem voz ativa e dá sugestão no gerenciamento do clube, alinhando um cargo no CT do Caju para a próxima temporada. Ele tem admiradores no grupo, que tem média de 26,5 anos, devido aos seus inúmeros ensinos.
- Ele é uma referência, dá conselho em todos os sentidos, inclusive em relação ao futuro. Ele tem um percurso na carreira, está se aproximando da aposentadoria e conquistou muitas coisas. É um exemplo. É difícil, no nosso meio, ter gente como ele, que nos ajuda e auxilia em qualquer situação - elogiou o goleiro Santos.
O arqueiro de 28 anos, que renovou com o clube até outubro de 2020 nesta semana, assumiu a titularidade durante a temporada e está no time paranaense desde 2008. A solidez no Atlético-PR deu maior tranquilidade para o seu preparo ao fim de sua carreira, mesmo ainda tenho um bom período pela frente.
- Escuto algumas pessoas falando em tipos de investimentos no clube. Nós pensamos mais na aposentadoria, pois sabemos que a carreira passa rápido e temos que preocupar com o futuro da família. Tem que parar, refletir e planejar. Vemos muitos casos de atletas que foram muito bem e passam por dificuldades. Hoje, com auxílio de uma empresa especializada, me sinto mais preparado e tranquilo com o pós-carreira. No futebol tudo acontece muito rápido e tenho que aproveitar o máximo possível desse período - avaliou.
O treinador Fernando Diniz, após a goleada por 5 a 1 diante da Chapecoense, ainda comentou de outro atleta importante em aconselhamento dentro do elenco rubro-negro: Ederson. Com passagens pelo exterior, o jogador de 29 anos tem o contrato terminando com o Furacão e ainda não sabe se vai ficar. As partes ainda negociam, mas o comandante, independente de seu destino, sabe que seu destino está encaminhado.
- Mais quem um jogador, ele é uma pessoa diferente no futebol. Bons conceitos de vida, uma família bonita e um cara que ajuda os garotos. É um profissional exemplar, diferente. Ele vai jogar mais cinco ou dez anos, mas é um homem bem estruturado e não me preocupa na vida - finalizou o treinador, formado em Psicologia e que, acima de tudo, acredita na relação com as pessoas para passar suas convicções de futebol e de vida.
Mais um agravante
Os sintomas de depressão e ansiedade são mais comuns do que se imagina entre jogadores e ex-jogadores de futebol. Só no Brasil, em âmbito total, 11,5 milhões sofrem de depressão, segundo a OMS. Uma outra pesquisa, divulgada em 2016 pelo FIFPro, o sindicato internacional dos atletas, mostra outro problema sofrido pelos profissionais durante ou após pendurar as chuteiras.
O levantamento foi feito com atletas de Bélgica, Chile, Finlândia, França, Japão, Noruega, Paraguai, Peru, Espanha, Suécia e Suíça - 55% dos entrevistados passaram a maior parte da carreira atuando no mais alto nível, já o percentual de ex-atletas dessa forma é de 64%. De acordo com o levantamento, 38% dos 607 jogadores em atividade e 25% entre os 219 ex-jogadores disseram ter sofrido de depressão ou ansiedade nas quatro semanas anteriores a que foram entrevistados.
Ronaldo Fenômeno, Pedrinho, Cicinho, Rio Ferdinand, Adriano Imperador, além de atletas em atividade, como Nilmar e Thiago Ribeiro, são alguns exemplos. Os motivos para o início da doença, considerada o 'mal do século', são diversos: lesões, fim da carreira, cobranças, deslumbramentos, genética. Pode aparecer enquanto joga ou depois de parar.
- A depressão não tem uma única causa. É um somatório - afirma Ricardo Losso, psiquiatra do Furacão.
O diagnóstico rápido, entretanto, ajuda no tratamento ou na cura. Mas, no futebol, o auxílio nem sempre está ali ao lado e de maneira fácil. Dos atuais 20 clubes da Série A, apenas seis trabalham com psicólogos presentes no dia a dia do profissional: América-MG, Atlético-PR, Cruzeiro, Flamengo, São Paulo e Vasco da Gama. É mais comum ter nas categorias de base, aliás. Nenhum jogador tem a obrigação de falar com o especialista, que fica à disposição para conversas ou tratamento sempre que solicitado. Na Seleção de Tite, por exemplo, o comandante não vê a necessidade de alguém acompanhando o grupo de 23 jogadores para a Copa do Mundo da Rússia. Em 2014, no Mundial do Brasil, especialistas analisaram que faltou um maior cuidado nesse sentido.
- Muitos clubes não veem o atleta como um ser humano, veem como uma máquina de performance, e também no staff desses atletas, onde a maioria tem um salário razoável e poderia proporcionar um acompanhamento na carreira desse jogador. Falta também esse cuidado do apoio, da assessoria dos profissionais, por isso chamo de negligência. Claro que nos últimos anos tem melhorado, mas ainda no meu modo de ver existe um preconceito com o setor - pontuou Rodrigo Falcão, especializado em psicologia esportiva, em entrevista recente ao Esporte Interativo.
Apesar do avanço, ainda há muita resistência dos jogadores a ponto de abrirem sua vidas ou suas mente para um 'estranho', como alguns pensam. Nos clubes da capital paranaense, o Coritiba possui um psicólogo nas categorias de base, assim como o Paraná. Já o Atlético-PR, desde junho de 2016, tem a Equipe de Performance Mental (EPM), formada por dois psicólogos e dois médicos psiquiatras. O trabalho diário consiste em avaliar individualmente o perfil de cada jogador e usar intervenções na área esportiva e no funcionamento mental. O relatório é compartilhado com a comissão técnica.
- Um dos critérios de depressão é que a pessoa esteja, ao menos, duas semanas com sintomas. Não é apenas uma derrota, ou porque perdeu um campeonato, ou estar abatida, ou aconteceu alguma coisa na vida pessoal. Isso pode ser natural. Na depressão, a pessoa passa a ter o comprometimento funcional. Nos atletas, observamos não só a postura corporal, se está cabisbaixo, se está interagindo menos, mas também afetando a concentração, o prazer de jogar futebol. E não é só no futebol, por isso precisamos ter essa aproximação com o atleta. É a pessoa que está por trás, que vai ter alguns sinais. Temos que ver o todo. Não é só a performance esportiva, que também pode estar afetada, mas outras áreas da vida afetadas. O tratamento pode ser constituído de intervenções psicoterápicas, dependendo da gravidade. Tentamos detectar precocemente e iniciar o tratamento. A depressão não tem uma única causa. É um somatório - finalizou Ricardo Losso, psiquiatra do Furacão, ao jornal O Tempo.