Desde 2014, só um de cada cinco atos racistas em jogos da Conmebol tiveram punição; relembre dez casos!

Levantamento feito pelo LANCE! a partir de dados do Observatório da Discriminação Racial mostra que impunidade prevalece em casos como os da semana passada

imagem cameraTorcedor do Boca é retirado da Neo Química Arena após fazer gestos racistas (Foto: Alex Silva / LANCEPRESS!)
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Lance!
São Paulo (SP)
Dia 03/05/2022
10:48
Atualizado em 03/05/2022
18:51
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Após cinco casos de racismo em jogos da Copa Libertadores no espaço de 15 dias, a Conmebol emitiu nota oficial na semana passada condenando o ocorrido e comprometendo-se a endurecer as punições a fim de coibir novos episódios do tipo. Mas, para cumprir a promessa a entidade precisará romper com um histórico de pouca efetividade nesse campo.

Levantamento feito pelo LANCE! baseado em relatórios do Observatório da Discriminação Racial no Futebol Brasileiro aponta que de 2014 até agora foram 48 denúncias ou flagrantes de racismo em partidas de competições organizadas pela Conmebol - sete delas neste ano. Do total, apenas 11 renderam algum tipo de punição aos acusados de cometerem o ato criminoso ou ao clube para o qual eles torcem.

>> EDITORIAL DO L!: Conmebol, o tema racismo também é com você!

Segundo os dados, 38 dos casos de racismo denunciados ou flagrados no período ficaram impunes, sem ter qualquer tipo de resposta. Em 32 deles, os autores sequer foram identificados pelas autoridades.

Entre as punições, em apenas quatro delas houve de fato a prisão ou pelo menos alguma consequência jurídica (processo ou esclarecimento a delegado ou juiz) para o acusado. Todas elas ocorridas em território brasileiro. Fora dele, os casos sequer são fiscalizados pelas autoridades nos estádios. Em 12 episódios, os relatos de jogadores mostram que muitas vezes os policiais foram comunicados ou estavam ao lado dos racistas. E nada foi feito.

A Conmebol agiu, de fato, em apenas cinco oportunidades, com multas aplicadas aos clubes pelo qual os racistas torciam. Em outras duas, as próprias equipes se anteciparam e baniram os acusados de seus jogos ou quadros associativos.

O artigo 17 do Código Disciplinar da Conmebol estabelece sanções aos clubes por comportamentos dos torcedores que atentem contra a dignidade humana. Estão incluídos nesse tópico discriminação por cor de pele, raça, sexo, orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem. Em 2020, a pena mínima para esse tipo de incidente era de US$ 15 mil (aproximadamente R$ 74 mil). No regulamento de 2021, a sanção mínima subiu para US$ 30 mil (cerca de R$ 148 mil).

Neste ano, o River Plate foi multado por conta dos atos registrados no duelo contra o Fortaleza, no Monumental de Nuñez, e

IMPUNIDADE ESTIMULA RACISTAS

Para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, o problema é amplo, afeta as diversas organizações esportivas, e tem menos a ver com a legislação e mais com a falta de ação para que ela seja cumprida:

- Falta rigor na punição aos culpados. A verdade é essa. Não só da Conmebol, mas de outras entidades que organizam o futebol. É um reflexo da sociedade como um todo. Endurecem as leis, mas não fazem uma fiscalização adequada e tampouco prestam um atendimento e suporte às vítimas. Não é diferente do que acontece no Brasil - afirma Vicente. 

Os dados mostram o Brasil como o país líder nas ocorrências, com 18 casos desde 2014. Como os brasileiros são as principais vítimas, fica explícito que os autores dos crimes de racismo não se sentem intimidados com localidade. Argentina (11) e Uruguai (10) completam o ranking, seguidos de Bolívia (3), e Chile e Paraguai (2) e Peru e Equador (um cada). De todos os filiados à Conmebol, apenas Colômbia e Venezuela são os únicos países que não registraram casos no espaço de tempo analisado.

No geral, entre 2014 e 2020, o Brasil teve em média um caso de racismo registrado a cada dez dias em jogos de futebol, incluindo competições oficiais, femininas e amadoras.

"A quantidade de casos punidos pela Justiça Desportiva de fato é muito pouca. Raramente ela pune o indivíduo ou o clube. E existe uma disputa de narrativas que diz que o clube não pode ser punido por conta do torcedor", diz Marcelo Carvalho, criador do Observatório da Discriminação Racial

Foram 287 casos, dos quais 169 ficaram sem nenhum tipo de punição e em 114 sequer os autores foram identificados. Apenas 39 acusados sofrem punição judicial, outros 25 pagaram com sanções esportivas e 40 clubes foram punidos.

- A quantidade de casos punidos pela Justiça Desportiva de fato é muito pouca. Raramente ela pune o indivíduo ou o clube. E existe uma disputa de narrativas que diz que o clube não pode ser punido por conta do torcedor. Esse é o cenário, a gente não vê esse aumento nas punições. É um numero baixo. Muitos poucos casos chegam ao Tribunal de Justiça Desportiva. E quando a pena acontece ela é pequena - ressaltou ao LANCE! Marcelo Carvalho, criador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol Brasileiro.

No Brasil, desde outubro o crime de injúria racial é equiparado ao de racismo por decisão do Supremo Tribunal Federal. Para Carvalho, a decisão pode facilitar a culpabilidade dos acusados, visto que poucas vítimas sabiam de fato a necessidade de processar os agressores na esfera cível. Mas mesmo assim, há o problema conhecido da lentidão nos processos.

- Se a gente sair da Justiça Desportiva e ir para a Cível ou Criminal, os casos demoram muito para serem julgados. No esporte tem 30 dias para serem julgados, por conta da necessidade de se ter os resultados por conta do andamento dos campeonatos, por isso fazemos esse recorte. Na Justiça Comum, contudo, um caso demora até cinco anos para ser julgado, a gente não consegue pegar esse recorte porque é muito tempo. A maioria dos casos que acabam indo para a Justiça correm em segredo, o que dificulta ainda mais.

De acordo com o CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), segundo o advogado Rodrigo Marrubia, especialista em direito esportivo, a pena por praticar um ato discriminatório no futebol brasileiro é a suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica. E suspensão pelo prazo 120 a 360 dias, se praticada por outras pessoas (dirigentes de clubes, por exemplo), além de multa de R$ 100 a R$ 100 mil.

No caso de torcedores que pratiquem atos discriminatórios, estes deverão ser identificados pelos clubes e proibidos de ingressar nos estádios por um período mínimo de 720 dias. Os clubes também poderão ser punidos pelas condutas de seus torcedores, com a pena de multa de até R$ 100 mil, podendo chegar à perda de pontos da partida em questão ou até mesmo exclusão da competição, caso a conduta seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas e a infração seja considerada de extrema gravidade, completou Marrubia.

DEZ CASOS EMBLEMÁTICOS DE RACISMO  

1 - 14/02/2014: Tinga

Copa Libertadores da América (Peru)
Fato: Em jogo entre Real Garcilaso x Cruzeiro, A cada vez que o volante Tinga, do Cruzeiro, tocava na bola os torcedores faziam som de macaco.
Como terminou: O Real Garcilaso foi punido em R$ 27,8 mil pela Conmebol.

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2 - 16/03/2016: Corinthians

Copa Libertadores da América
Fato: Torcedor do Cerro Porteño imita macaco para provocar corintianos na Arena Corinthians.
Como terminou: O gesto foi flagrado pelas imagens da TV. Nada consta sobre algum registro pós-jogo para tentar identificar o
torcedor. O caso ficou restrito às imagens da televisão e não seguiu adiante.

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Gabriel Jesus foi alvo de racismo em Nacional x Palmeiras (foto:reproduçao)

3 - 17/03/2016: Gabriel de Jesus

Copa Libertadores da América
Fato: Atacante foi alvo de racismo durante jogo do Palmeiras contra o Nacional, no Uruguai.
Como terminou: Nacional foi multado por gestos racistas de torcedor contra Gabriel Jesus. Clube uruguaio recebeu sanção da Conmebol e pagou o valor de US$ 10 mil dólares (aproximadamente R$ 37 mil à época).

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4 - 04/05/2016: Atlético-MG x Racing

Copa Libertadores da América

Fato: O treinador de goleiros do clube do Racing, Juan Carlos Gambandé, protagonizou uma cena lamentável de injúria racial. Gesticulando para os torcedores atleticanos, ele simulou estar
comendo uma banana e provocou quem estava nas proximidades.
Como terminou: Racing demite preparador de goleiros. Não foi verificada nenhuma outra punição por parte da Conmebol.

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5 - 12/04/2017: Felipe Melo

Copa Libertadores 
Fato:
Em jogo entre Palmeiras e Peñarol, no Allianz Parque, Felipe Melo acusa Gaston Rodríguez de racismo por tê-lo chamado de macaco durante o jogo.
Desdobramentos: Após repercussão do fato ao término da partida, ainda no estádio, o diretor esportivo do Peñarol, Gonzalo De los Santos, e o capitão da equipe, Cristián Rodríguez, foram falar com
o atleta palmeirense e oficializaram um pedido de desculpas em nome do clube uruguaio e de Gaston Rodríguez. Felipe Melo, por sua vez, aceitou o pedido e deu o caso como encerrado. O Palmeiras informou que não levaria o caso adiante, considerando que a iniciativa de entrar com processo deveria partir do próprio atleta ofendido e não do clube.
Como terminou: Caso não foi levado adiante por nenhuma das partes. Não há registros de que a Conmebol tenha investigado a acusação de racismo.

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6 - 06/12/2017 – Jogo: Independiente x Flamengo

Copa Sul-Americana
Fato:
Torcida do Independiente imita macaco para torcedores flamenguistas
Desdobramentos: O time argentino divulgou uma nota que dizendo repudiar "terminantemente qualquer manifestação de racismo e que se compromete a investigar até as últimas consequências para sancionar aqueles que tenham realizado tais lamentáveis atos”. Para o jogo de volta da final da Copa Sul-Americana, o Flamengo lançou uma campanha contra o racismo após o ocorrido na Argentina.
Como terminou: A Conmebol condenou o Independiente a pagar multa no valor de US$ 15 mil (quinze mil dólares), além de uma advertência para sanções mais severas em caso de reincidência. Não foram encontradas informações de que o clube argentino tenha entrado com um recurso em relação a pena recebida.


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7 - 02/05/2018: Romero ofende PM


Copa Libertadores
Fato:
O cabo J. Carlos, policial militar, foi alvo de ofensa racial por parte de Silvio Romero, jogador do Independiente-ARG em jogo contra o Corinthians, na Arena localizada em Itaquera.
Fato: A Polícia Militar de São Paulo havia denunciado supostas ofensas racistas de Romero, atacante argentino do Independiente, ao
policial J. Carlos. No entanto, posteriormente, a organização voltou atrás e disse que não era possível identificar se houve racismo.
Desdobramentos: O atleta chegou até mesmo a ser levado pelo Juizado Especial Criminal (Jecrim) da Arena Corinthians. Em resposta à imprensa, Romero se desculpou várias vezes. "Se ele se sentiu ofendido, peço desculpa aqui. Isso [racismo] não aconteceu, não quis ofender. Pedi desculpa normalmente, não disse nada. Disseram que
eu tinha dito uma palavra meio racista, mas eu não disse nada. O árbitro da partida corrobora o que eu disse. Estou tranquilo quanto a
isso", afirmou.
Como terminou: Sem informações de advertência ou punição pela CONMEBOL.

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8 - 21/08/2018: Independiente x Santos

Copa Libertadores 
Caso: Torcedores do Santos são vítimas de racismo praticado por torcedor do Independiente, que imitava macaco, no estádio Libertadores da América, em Avellaneda, na Argentina. Um dos alvos divulgou em redes sociais vídeo que mostra um torcedor fazendo os gestos.
Desdobramentos: Torcedores registram Boletim de Ocorrência por racismo no estádio do Independiente. O clube informou que estava
analisando a situação para tomar medidas cabíveis.
OBS: Antes do jogo da volta em Santos, em 28/08/2018, o Independiente publicou em seu site oficial, na véspera da partida, uma cartilha de recomendações para os torcedores que fossem ao Brasil acompanhar o duelo no Pacaembu. No entanto, o que chamou
a atenção na cartilha foram os motivos para que os torcedores não fossem racistas e não a condenação aos atos. De acordo com o
Independiente, é “altamente recomendável” evitar os gestos de macaco para que o clube não seja punido, nem para que os torcedores sejam presos. O clube argentino cita que no Brasil é crime associar a pessoa ao animal e a polícia age por iniciativa própria quando vê atos dessa natureza e prende os torcedores. Eles lembraram ainda que em jogos anteriores, houve prisões.
Como terminou: Sem informações de advertência ou punição pela CONMEBOL

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9 - 02/07/2019: Copa América

Jogo Brasil x Argentina, no Mineirão
Fato:
O torcedor brasileiro Anderson Batista afirmou em sua rede social que viu apenas os primeiros minutos da vitória da Seleção Brasileira, pois enquanto comemorava o gol de Gabriel Jesus percebeu que um argentino imitava um macaco em sua direção.
Desdobramentos: O torcedor argentino identificado como Fabrizio foi preso por injúria racial. Anderson comentou a reação do argentino ao ser preso pela polícia: “As pessoas acham que por estarem no meio da multidão elas são invisíveis. Mas não são, não. Ele chorou muito
e, algemado, entrou em desespero e pediu perdão exaustivamente”.
Como terminou: Não foram encontradas informações sobre o andamento do caso.

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10 - 12/03/2020: Gre-Nal

Copa Libertadores
Fato:
Um torcedor do Grêmio foi filmado imitando um macaco para a torcida colorada, presente no estádio.
Desdobramentos: Não se sabe como começaram as provocações entre os presentes, mas o torcedor gremista que imitou um
macaco para os torcedores do Internacional teria sido chamado de “gordo boiola”, uma ofensa homofóbica, por parte dos colorados. O Grêmio apurou o suposto caso de injúria racial do seu torcedor e identificou o homem – que não teve o nome revelado pela polícia – como não sócio. A Polícia Civil de Porto Alegre indiciou, no mês de
maio de 2020, um torcedor do Grêmio por injúria racial. O caso foi encaminhado para o Ministério Público do Rio Grande do Sul.
Como terminou: O caso está tramitando no Judiciário. A Promotoria Especializada do Torcedor ajuizou denúncia para apuração criminal e a instrução do feito está em andamento, com o processo correndo em segredo de Justiça.

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