– Como me colocam para ser treinadora de um menino que faz mais golpes do que eu?
A frase de Rafaela Silva ao ser questionada sobre sua participação em um reality show mostra que a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, no ano passado, não alterou em nada a maneira simples e humilde da judoca.
Se há uma mudança que a carioca de 25 anos quer agora é só de motivação, para não perder o foco na carreira em meio à fama, aos compromissos com patrocinadores e à sensação de que já ganhou tudo.
Após meses de “oba-oba”, ela se fechou para um período de treinamentos com a Seleção no Japão e na Espanha. O objetivo era focar na busca pelo bi no Mundial, que acontece em Budapeste (HUN). A brasileira disputa a eliminatória da categoria até 57kg nesta quarta-feira, às 5h (de Brasília), com finais às 11h.
Ao LANCE!, Rafaela admitiu que a preguiça tem batido em alguns momentos, mas garantiu que segue focada no bi em Tóquio-2020.
O ano de 2017 é de mudanças no cenário do judô mundial. Algo mudou nos seus treinamentos? Que avaliação faz da temporada até agora?
A preparação foi bem forte. Sou um pouco mais visada nas competições, por ser a atual campeã olímpica. As adversárias começaram a me estudar mais, e há muitas meninas novas no circuito. O Mundial erá uma competição bem disputada. Na minha categoria, a maioria das atletas eu não conheço, nunca vi. O primeiro Mundial após uma Olimpíada é sempre mais forte. Estou fazendo um trabalho diferenciado. Mudei algumas coisas. No judô, quando você começa um golpe novo, às vezes não se sente à vontade na competição seguinte. Requer confiança. Estou trabalhando por um bom resultado em Budapeste.
Qual é a sua motivação para manter o mesmo foco da Rio-2016 após o ouro olímpico?
É bem difícil manter a motivação. Todas as competições que um atleta do judô pode conseguir ganhar eu consegui. Mundial Junior, Sênior e Olimpíada. Mas, só de lembrar da sensação de estar no pódio olímpico e da alegria que dei à minha família, treinadores e equipe que me ajudou, é algo que eu gostaria de sentir novamente. Vou caminhar até a Olimpíada de Tóquio, em 2020.
Como tem sido o trabalho com a Nell Salgado, sua coach, nesse sentido? Mudou a dinâmica depois da Olimpíada?
Mudou bastante. Antes, eu tinha um objetivo, que era ser campeã olímpica, e o conquistei. Estamos tentando achar outra motivação. Tem sido um pouco mais duro. Ainda não demos um grande passo, mas estamos evoluindo no trabalho psicológico. Ser campeã olímpica todo mundo pode ser. Teve a Sarinha (Menezes), em 2012. Em 2016, fui eu. Agora, quero conquistar mais resultados para que, ao encerrar a carreira, as pessoas lembrem do que fiz pelo Brasil.
Nell tem um jeito duro. Não alivia nem nos xingamentos. Como é lidar com ela?
Eu estava acostumada, porque eu e minha irmã brigávamos bastante em casa. Vivíamos nos xingando. Então, parecia que eu e Nell estávamos falando a mesma língua. Foi isso que ajudou na nossa conexão para fazermos um belo trabalho.
E isso ainda acontece nas sessões com ela, ou ficou mais leve?
Não ficou mais leve. Ela está é mais chata (risos).
Em que sentido?
Em relação à cobrança, mesmo. Às vezes, dá uma preguiça de levantar para ir ao treino. E ela diz: “Para que você está fazendo isso, para que está levantando, qual é o seu objetivo?”. Ela tenta me mostrar aonde eu quero chegar e quais são meus objetivos. Tem dias em que falo: “Hoje, não vou, não”. Mas tenho de levantar todo dia.
Como você ficou de apoio financeiro após o ouro na Olimpíada?
Acho que melhorou bastante. Muitas pessoas falaram, e vemos a crise que acontece em nosso país. Mas meus patrocínios eu consegui manter e fechei um novo agora. Então, para mim, está caminhando bem. Comprar minha casa era meu grande objetivo. E consegui fazer minha mudança no final de abril, antes do Pan-Americano.
Dentre seus compromissos fora do tatame, você vai participar de um reality show (Ippon – A Luta da Vida, será exibido pela Globo em seis episódios, a partir do dia 3 de setembro, em uma parceria com o Bradesco). Qual será o seu papel? O que espera do desafio?
Será bem diferente, pois estou acostumada a entrar no tatame e receber ordens. Agora, eu tenho de dar ordem para as pessoas. Alguns dos atletas que foram selecionados eu já vejo nas competições, já viajei com alguns, e são mais técnicos do que eu. Falei: “Como me colocam para ser treinadora de um menino que faz mais golpes do que eu?”. Será um desafio grande ser treinadora desta equipe.
O que é representatividade no esporte para você, como mulher, negra, lésbica e periférica?
Eu não tenho muito essa visão, pois me vejo como ser humano qualquer. Tenho dois braços e duas pernas, independentemente de gostar de homem ou mulher. Não faço divisão.
Mas como é ser um espelho para outras pessoas?
Acho que pude ajudar bastante as crianças do projeto social do Instituto Reação. Temos o mesmo treinador (Geraldo Bernardes), o mesmo espaço para treinar e a mesma estrutura. Se eu cheguei a duas Olimpíadas e consegui uma medalha, por que elas não podem chegar também?
Você, que cresceu em meio a dificuldades e hoje tem uma visão tanto de quem cresceu na periferia quanto de quem alcançou uma glória máxima no esporte, que reflexão faz da situação atual da criminalidade no Rio de Janeiro? Você se sente segura ao andar pela cidade?
Para mim, é um pouco diferente. Todo mundo vê o que está acontecendo, fala que houve tiroteio na comunidade. Mas quando eu passo na Cidade de Deus, onde fui criada, não vejo agressividade ou violência. Pelo contrário. As pessoas me param, cumprimentam, conversam. Reencontrei, depois da Olimpíada, amigos que eu não via há anos e eles estavam envolvidos com drogas. Um estava armado. Entregou a arma para outros meninos e os mandou se afastar para vir falar comigo. É difícil eu falar, porque, pelo menos comigo, eles têm um respeito diferente. Para mim é tranquilo andar nas ruas.
"Reencontrei, depois da Olimpíada, amigos que eu não via há anos e eles estavam envolvidos com drogas. Um estava armado. Entregou a arma para outros meninos e os mandou se afastar para vir falar comigo. É difícil eu falar, porque, pelo menos comigo, eles têm um respeito diferente."
Você começou a praticar ioga este ano. O que isso impacta no judô?
O que meu preparador físico sempre fala é que tenho pouca flexibilidade. Sou um pouco limitada para fazer alguns movimentos. Então, a ioga pode me ajudar bastante. E tem o trabalho de respiração, que já fazia no coaching com a Nell nas consultas.
Você já era uma atleta famosa, campeã mundial. Mas o que mudou após uma medalha de ouro olímpica? A fama é boa?
Tem partes boas e ruins. A boa é o reconhecimento, mostrar às pessoas que, se eu cheguei, elas podem chegar. A ruim é que, se eu tenho horário para fazer alguma coisa, já tenho de desistir, porque, se eu tentar sair na rua, terei de parar toda hora para falar e tirar fotos. Assim, não consigo fazer tudo o que preciso.
Você tem feito muitas palestras nos últimos meses. Que conselho dá a quem te tem como exemplo?
Se temos um sonho, temos de batalhar bastante. Nada na vida é impossível. Comecei em um esporte que, no início, era só brincadeira. Meu sonho era ter um tênis, um chinelo bacana, que minha família não podia me dar. Hoje, com os patrocínios, posso ter quanto eu quiser.
De que forma a Sarah Menezes pode servir de exemplo para você? Afinal, ela conquistou o ouro em Londres-2012 e teve uma queda de rendimento durante parte do ciclo olímpico. Vocês conversam sobre isso?
A Sarinha é um grande espelho para todos os atletas da Seleção Brasileira. Ali, um motiva o outro. Em um momento, ela era a atual campeã olímpica, tinha muita visibilidade e não conseguiu resultados positivos, mas reverteu o quadro e chegou bem preparada para uma Olimpíada. Ela contou para a gente que sentia a pressão de entrar em uma competição com o back "number dourado", que as pessoas ficavam muito em cima. Já pudemos compartilhar algumas coisas, sim, que servirão de experiência para mim no ciclo até a Olimpíada de Tóquio, em 2020.
QUEM É ELA
Nome
Rafaela Lopes Silva
Nascimento
24/4/1991 - Rio de Janeiro
Categoria
57 kg
Conquistas
Campeã olímpica na Rio-2016; campeã mundial em 2013, no Rio de Janeiro, prata no Mundial de Paris, em 2011, e prata na disputa por equipes no Rio; prata no Pan de Guadalajara (MEX), em 2011, e bronze no Pan de Toronto (CAN), em 2015.