COB subutiliza máquinas em falta no INCA para pesquisas contra o câncer

Brasil investiu mais de R$ 4 milhões em equipamentos do Laboratório Olímpico que nunca renderam contrapartida científica. Órgão carece de aparelhos para análises e diagnósticos<br>

imagem cameraUm dos quatro aparelhos de espectrometria de massas em posse do COB. Legado não gera ciência (Foto: Reprodução)
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Lance!
Rio de Janeiro (RJ)
Dia 02/12/2019
01:42
Atualizado em 15/12/2019
15:28
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Em uma sala do Laboratório do Comitê Olímpico do Brasil (COB), localizado no Parque Aquático Maria Lenk, no Rio de Janeiro, equipamentos de fazer inveja a cientistas do mundo inteiro são mantidos a portas fechadas. Enquanto isso, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) enfrenta congestionamento de seus aparelhos. 

A entidade esportiva administra um parque de espectrometria de massas, uma das técnicas analíticas mais poderosas da ciência moderna, com valor de mercado estimado entre R$ 6 milhões e R$ 8 milhões. Graças a incentivos fiscais e parcerias com o setor privado, o conjunto custou pouco mais de R$ 4 milhões.

Os recursos saíram da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública de fomento à ciência e à inovação vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), para a aquisição de tecnologias de última geração, com o propósito de alavancar o desempenho dos atletas brasileiros. As máquinas foram compradas da fabricante americana Waters.

A espectrometria de massas consumiu a maior fatia dos R$ 4,9 milhões investidos na montagem do Departamento de Bioquímica, uma das 11 áreas ativas do Laboratório. A Finep aportou diretamente R$ 11,5 milhões no projeto total, aprovado em 2009. As atividades só tiveram início no final de 2016, devido a diversas questões burocráticas.

Espectrômetro XEVO TQS do Laboratório de Bioquímica de Proteínas da UNIRIO já foi usado em testes com atletas (Foto: Cayo Lames)

Para conseguir a aprovação dos recursos, a entidade se comprometeu a entregar resultados científicos e oferecer aos treinadores informações que pudessem melhorar a performance dos atletas de elite do país.

Após três anos de operação do Laboratório, não há um artigo sequer publicado com base no uso de algum dos quatro espectrômetros de massas adquiridos com  verba da Finep. Como comparação, o prazo de defesa de uma tese de mestrado é de dois anos e meio. O de doutorado é de quatro anos.

Em 2018, o COB diz ter realizado 325 atendimentos, a 16 confederações. Até novembro de 2019, a entidade totalizou 478 atendimentos, a 22 confederações, além de 3.589 avaliações, sendo 1.545 dentro do Laboratório, 871 em campo, 209 relacionadas à pesquisa científica e 964 feitas durante os Jogos Pan-Americanos de Lima.

Questionada pelo LANCE! sobre quantos exames foram realizados com espectrometria de massas, a entidade não informou o número e explicou que, em avaliações diárias dos atletas de alto desempenho, são necessários “métodos rápidos de extração, identificação e quantificação”. Apesar disso, o próprio COB adota um procedimento padrão de entrega de relatórios no prazo de sete dias.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que a espectrometria de massas pode gerar resultados em minutos, horas ou poucos dias, e que já se prevê até o uso da técnica em centros cirúrgicos para a tomada de decisão.

Ela permite identificar moléculas em baixas concentrações e determinar caminhos eficazes para combater diversas doenças, como o câncer.

Pesquisadores do Inca sofrem com a falta de mais máquinas idênticas que realizam, por exemplo, a comparação entre tecidos ou fluidos biológicos de pacientes com tumores com tecidos saudáveis. O foco do instituto são casos de câncer de mama e estômago. As pesquisas já avançam para outros tipos da doença. 

Ao identificar proteínas alteradas e compreender quais atividades das células foram modificadas, cientistas podem determinar o tipo de quimioterapia mais adequado para cada caso.

O INCA tem três espectrômetros de massa: um na Farmacologia, um no Laboratório de Patologia Clínica e outro no Centro de Transplante de Medula Óssea. Os aparelhos foram comprados com verbas de pesquisa obtidas de agências de fomento.

– Não tenho dúvidas de que a espectrometria de massas é uma técnica bastante importante e que pode salvar vidas. As pesquisas nos permitem identificar proteínas alteradas que são candidatas a alvos terapêuticos e identificar no plasma do sangue periférico biomarcadores candidatos a serem utilizados para diagnóstico ou acompanhamento da terapia – afirmou Eliana Abdelhay, pesquisadora da Divisão de Laboratórios do Centro de Transplante de Medula Óssea do INCA, que enfrenta congestionamento de sua máquina.

A cientista explica que, em seu setor, o tempo de um experimento é de até dois meses. O único espectrômetro à disposição funciona 24 horas por dia e sete dias por semana. Com um dos modelos do COB, ela conseguiria, por exemplo, quantificar moléculas. Cada espectrômetro do Laboratório Olímpico tem uma função diferente, o que possibilita uma série de ganhos nas investigações.
 
– Como nosso equipamento já tem quase 10 anos, temos de comprar um novo, mas ainda não sei quando isto será possível – disse Eliana.

Espectrômetro Synapt do&nbsp;Laboratório de Bioquímica de Proteínas da UNIRIO similar a uma das máquinas de COB e INCA (Foto: Cayo Lames)

A doença é um desafio nas pesquisas do INCA. O instituto estima 59.700 casos novos de câncer de mama em 2019 no Brasil, com risco estimado de 56 casos a cada 100 mil mulheres.

Já em relação ao câncer de estômago, são previstos 13.540 casos novos entre homens e 7.750 nas mulheres para cada ano do biênio 2018-2019. Entre homens, é o quarto mais incidente e o sexto entre as mulheres. Os números correspondem a um risco estimado de 13,11 casos novos a cada 100 mil homens e 7,32 para cada 100 mil mulheres.

Signatário do projeto vê ‘milhões de reais’ parados

Embora o Laboratório Olímpico do COB funcione efetivamente, com avaliações frequentes de atletas em busca da melhor performance, a manutenção dos equipamentos subutilizados de espectrometria de massas gera um custo de R$ 700 mil por ano. Além disso, a desvalorização, em razão do avanço tecnológico e do desgaste natural, é estimada entre R$ 600 mil e R$ 800 mil por ano.

Os números são calculados por L.C. Cameron, um dos signatários do projeto original e chefe do Laboratório de Bioquímica de Proteínas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

– A maioria dos equipamentos comprados para a bioquímica está sem uso por falta de recursos humanos para operar e analisar os resultados. Isto equivale a algo em torno de vários milhões de dólares parados – afirmou o cientista, que move uma ação cível contra o COB por remuneração referente a serviços prestados entre 2017 e 2018, além de danos morais.

Espectrômetro XEVO QTof do Laboratório de Bioquímica de Proteínas da UNIRIO foi usado em testes de atletas olímpicos (Foto: Cayo Lames)

– Além do financiamento do projeto por parte da Finep e do COB, houve um significativo investimento por parte da Waters, devido ao uso inovador da espectrometria de massas no esporte. Foi negociado um pacote que proporcionou enorme economia de recursos ao COB. Não posso falar de valores por questões de conduta pessoal – completou o bioquímico.

Os espectrômetros eram parte central do plano do cientista para colocar em prática o conceito de “Esportômica” criado por ele, que consiste no controle do desempenho esportivo por meio da análise de diferentes modificações no organismo do atleta, com impacto em fatores como nutrição, consumo de água, recuperação, reabilitação e treinamento, específicos para cada atleta em situações de exercício físico e de stress.

No espectrômetro, amostras de sangue, urina, suor, cabelo ou hálito podem ser usadas para entender o que faz o atleta render mais ou menos.  

– Em meu laboratório, estamos procurando estudar o metabolismo de substâncias naturais presentes em alimentos e que podem ser consideradas doping. Este estudo tem o apoio de diferentes cientistas mundiais ligados ao estudo do doping – explicou Cameron.

Técnica dominou o mundo, do esporte ao consultório

Segundo o professor Marcos Eberlin, diretor-presidente da Sociedade Brasileira de Espectrometria de Massas (BRMASS), um conjunto de equipamentos como o que o país adquiriu tem grande potencial científico em várias áreas. 

– É um pacote perfeito, que quantifica e mede massas com rapidez, sensibilidade e seletividade. Se você quer respostas rápidas, usa um. Caso queira seletividade, usa outro. Um canivete suíço da espectrometria de massas, com ferramentas para diferentes aplicações – avaliou o pesquisador.

Ele explica que a espectrometria de massas nasceu detectando pequenas moléculas, como no caso de poluentes, mas hoje é uma técnica que "investiga a vida". As aplicações são em análise clínica, diagnóstico de patologias, como no exame de papanicolau, análise de desempenho de atletas e medicina personalizada. 

Também há utilização na ciência forense, no controle de qualidade e adulteração de combustíveis, perfumes e medicamentos. Máquinas do tipo ainda são capazes de verificar se documentos são autênticos e, em caso contrário, determinar sua autoria.

– Já existe até uma caneta do câncer, desenvolvida por uma brasileira. Nela, você tem um mundo em suas mãos, capaz de realizar análises clínicas com muitos recursos. O desempenho é altíssimo. É uma técnica que dominou o mundo, do esporte ao consultório médico. Da refinaria à perfumaria. Ela está em todos os cantos – completou Marcos.

O LABORATÓRIO OLÍMPICO

A proposta
Inaugurado em 2016 com o objetivo de ser referência em Ciências do Esporte da América Latina, o Laboratório Olímpico contou com o aporte de R$ 13 milhões do governo federal, por meio de um convênio de fomento à ciência e à inovação.

O financiamento
Os recursos vieram da Finep, empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que ofereceu os recursos para a Fundação Coppetec, que adquiriu os equipamentos da fabricante Waters. O projeto custou R$ 13.014.925,55, sendo R$ 11.500.000,00 em aporte direto e R$ 1.514.925,50 destinados a bolsas de pesquisas científicas e transferidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A produção científica era uma contrapartida essencial para que o dinheiro fosse disponibilizado.

Os atrasos
As conversas se arrastavam desde 2006, mas o acordo foi celebrado no dia 23 de dezembro de 2009, quase três meses após o Rio de Janeiro ter sido eleito sede dos Jogos de 2016. O Laboratório só ficou pronto no final de 2016. Os testes tiveram início em 2017.

Orçamento
As despesas para a operação do Laboratório Olímpico são pagas com recursos oriundos da Lei Agnelo/Piva. Em 2019, até o dia 21 de novembro, a área gastou R$ 5.642.272,37, sendo R$ 4.114.793,62 em despesas com pessoal e R$ 1.527.478,75 em manutenção e atendimento a atletas.

Outras áreas
Além da bioquímica, o Laboratório Olímpico tem ativas as áreas de fisiologia, biomecânica, preparação física, fisioterapia, medicina, nutrição, preparação mental, análise de desempenho, gestão do conhecimento e tecnologia.

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