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Lauter Nogueira
Rio de Janeiro (RJ)
Dia 25/03/2025
07:30
Atualizado em 24/03/2025
22:30
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O ano é 1955. O local, Cidade do México. O motivo, disputa dos Jogos Pan-americanos, naquela cidade e naquele ano. Qual a relevância disto, me perguntará um de vocês seis (sim, já chegamos à marca de meia dúzia de penitentes leitores fiéis), de forma ríspida.

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Calma lá, respeitem o nosso maior atleta de esportes individuais de todos os tempos. Ele acaba de ganhar a pista do Estádio Olímpico Universitário, e, como de hábito, é ovacionado pela plateia, afinal Adhemar Ferreira da Silva carrega no peito o ouro conquistado em Helsinque, nos Jogos de 1952. E lá recebeu uma consagração jamais vista, levando-o a retribuir dando uma volta completa na pista, em agradecimento, trotando leve e acenando. Fazendo com que as provas seguintes à sua vitória fossem postergadas por alguns longos e deliciosos minutos. Ali nascia a famosa “Volta Olímpica”. Mas, que vínculos fortes teria Adhemar Ferreira da Silva com a Finlândia, um país nórdico e, notoriamente, frio (em todos os sentidos)? Adhemar, ao longo de sua carreira esportiva, uma de suas várias vertentes de trabalho, além de colecionar recordes e medalhas, colecionava línguas, se expressando bem em sete idiomas, e havia aprendido nos últimos meses “a se defender”, como dizia, em finlandês.

Voltemos ao Estádio Universitário (só seria Olímpico de verdade em 1968), onde daria início o salto triplo, uma sequência de três saltos que, depois da corrida de aproximação à tábua de salto, dá-se o impulso apenas com um pé, e este mesmo (para tornar a brincadeira mais desafiadora) receberá o impacto do chão, iniciando o segundo passo, onde, aí sim (ufa!), será autorizado pelos Deuses do Olimpo a trocar de pé para a finalização na deliciosa piscina de areia.

 Adhemar compete como um dos favoritos, dividindo o favoritismo com Hernandez, de Cuba, que por pressão da presença do brasileiro, seu ídolo, fracassa e fica apenas com um bronze distante. Resumindo, além do ouro (um dos três que conquistou em Pan-americanos), Adhemar sai do Estádio Universitário também com seu último recorde mundial, 16m56, há exatos 70 anos!

O passeio de Adhemar, nosso bailarino dos três passos

Já que citamos Helsinque 1952, podemos lembrar também o passeio do nosso bailarino dos três passos, como dizia o "L’Équipe" (jornal francês de esportes mais famoso na época) em Melbourne, a terra dos cangurus. Adhemar se sentiu “em casa”! Além de fazer a preparação final, o famoso polimento, com esmero, ele ainda tinha tempo de organizar, na vila olímpica, verdadeiros saraus de samba e outros ritmos brasileiros. E para tornar o show completo, ainda traduzia para o finlandês algumas estrofes das músicas que interpretava.

Nesta competição olímpica, ele tinha como adversário incômodo um jovem que veio do frio quase absoluto, um desconhecido islandês de 21 anos, e mais estranho ainda, ninguém tinha ouvido falar: Vilhjálmur Einarsson, que abre a 1ª rodada de saltos com um estupendo 16,26! De quebra, a quebra do recorde olímpico. Adhemar sorriu, retirou o pesado agasalho e foi buscar o começo da reta de aproximação. Mas o danado do “salto-dança” não saia. O estádio olímpico se inquietava. Apenas uma pessoa no estádio se encontrava calma e quase sorridente: ele, Adhemar!

E na quarta tentativa, o salto-dança enfim saiu. Um acachapante 16,36. Nem o abominável Homem das Neves conseguiria reverter este novo recorde olímpico. A festa, regada a café (sua paixão) e boa música podia começar!

Ao desembarcar no Rio, na volta da Finlândia, encontrou pai e mãe, acompanhados de um representante de um jornal paulista, que lhes ofereceu uma casa para morarem, num melhor local e muito mais confortável do que a que viviam. Adhemar agradeceu, mas não pode aceitar, pois poderia perder suas medalhas de ouro e não participar mais de competições oficiais. Afinal, naquela época (até a década de 80!!) o amadorismo tinha que imperar, acompanhado sempre de uma boa dose de cinismo! Pobres, literalmente, atletas que eram os donos do espetáculo, mas não recebiam por isto. Já os dirigentes, em todas as instâncias...

Adhemar se despediu das Olimpíadas em Roma 1960

Sua última experiência olímpica foi em Roma 1960 onde, já debilitado pela tuberculose, pelos ensaios do filme "Orfeu do Carnaval" (que venceu o Oscar de filme estrangeiro de 1960 e a Palma de Ouro de 1959), onde ele era o protagonista. Adhemar teima em se despedir do mundo esportivo, que tanto o aplaudiu, de forma digna, em Roma. E foi lá, no mesmo Estádio Olímpico, onde um etíope descalço chamado Bikila assombra o mundo vencendo a prova da maratona e batendo o recorde mundial, que Adhemar se apresenta para a prova de despedida de sua brilhante carreira esportiva. Não conseguiu, ao final das três primeiras rodadas de saltos, estar entre os oito primeiros, e teve que deixar a prova antes do fim.

Cabisbaixo e triste, Adhemar sai pelo gramado e acena para o público, que sente que aquele deve ser seu último momento olímpico. Os aplausos aumentam, os torcedores ficam de pé, e até uma parte exótica das cadeiras, onde uma multidão de turistas americanos, que talvez nunca tenham estado num estádio de atletismo, que atravessaram o Atlântico em navios enormes, capitaneados por ninguém menos que Bing Crosby, um dos mais famosos músicos e atores de Hollywood, descobre Adhemar, que passa à sua frente, levanta de um salto e grita para seus “convidados” que ali, naquele exato momento, um dos maiores astros do esporte mundial se despedia de uma carreira brilhante. O frenesi aumenta.

Adhemar Ferreira da Silva salta para ganhar o ouro em Melbourne-1956 (Crédito: Reprodução)

Neste momento Adhemar, lembrando de Helsinque, em 1952, busca forças e começa a trotar, ainda que frágil, mas com dignidade, e, segurando suas sapatilhas, mas não as lágrimas, agradece acenando seguindo sua última volta olímpica completa, sob aplausos de pé de todo o estádio, a caminho do fim.

Conheci Adhemar pessoalmente, num congresso técnico, se não me engano da 1ª Maratona Internacional de São Paulo, em 1995. Ao final do congresso, fomos tomar um café, paixão de ambos, e acabamos transformando em rotina, sempre após algum congresso ou reunião, café e prosa! Seja em Sampa, no Rio, BH ou Belém, lá estávamos nós, para prosear (ele) e ouvir (eu). O último café foi, no final de 2000 (ano em que ele, nos Jogos de Sydney, recebeu uma homenagem especial de famílias que conviveram com ele durante sua estada em Melbourne 1956), semanas antes dele partir, em 12 de janeiro de 2001. Ainda tínhamos marcado um café que não aconteceu no dia 30 de dezembro, em SP, por conta da São Silvestre. Ele não pode ir, pois não se sentira bem. Tranquilo, marcamos para março, no Rio. Desta dúzia de cafés, ficam histórias, conselhos e conversas deliciosas, com o maior atleta que este país já teve. Fica a saudade, e também aquele café que não tomamos!

E o Mundial Indoor de Nanquim? Conto tudo na coluna de sexta, inclusive a cassação da medalha do Almir, de lá de cima!

Até lá!
Lauter Nogueira

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