Nesses tempos de quarentena, o recolhimento é um bom incentivo à reflexão. Não que esteja sobrando tempo. Esse tal de home office - você já sentiu ou deve ter ouvido isso de muitos amigos - acaba levando as pessoas a trabalharem muito mais do que quando estão presencialmente na ativa. Mas o ambiente doméstico, familiar, traz lembranças, permite desfrutar de novas experiências, novas leituras que estimulam a pensar na vida, a interpretar o mundo a nossa volta.
A internet, os sites, os blogs, as redes sociais assumiram definitivamente, com as pessoas mais tempo dentro de casa e cada vez mais conectadas, o papel de uma grande e libertina plenária, um gigantesco e universal fórum de discussão onde o bom senso e a sensatez perdem de goleada para a irracionalidade e a estupidez.
Nada de Covid-19, de pandemia, de crise política, das manifestações de rua, da disputa entre poderes, da questão racial, das discriminações de gênero. Estes são temas habituais sobre os quais lê-se disparates que alimentam diuturnamente o Fla x Flu ideológico em que o país se meteu. É devastador, sem dúvidas. Mas há algo ainda mais cruel e que nos torna descrentes de que haja uma luz no final desse túnel: o absoluto desprezo pela vida.
Alex Zanardi é um herói. Um ser único. Não há na história do esporte - ou da humanidade, diria - outro alguém que desafiasse de forma tão incisiva os limites do corpo e da mente. Ou será que você conhece outro campeão que se arrebenta dentro de um carro de corridas, tem as duas pernas amputadas e renasce no guidom de um triciclo esportivo conquistando quatro medalhas de ouro e duas de prata em duas paralimpíadas seguidas, em Londres e no Rio?
O acidente que mais uma vez leva o piloto lutar contra a morte, comoveu até o papa. Francisco, como se sabe um apaixonado pelo esporte e pela vida, escreveu-lhe exaltando seu exemplo, seus feitos e orando por ele. Estenderia suas preces a toda a humanidade, ou abriria de vez as portas do inferno, se parasse para ler aquelas sessões de comentários que seguem as notícias dos portais de internet. Descobria coisas assim:
A verdade é que passou a vida tentando morrer.
Quem dorme com cobra acaba picado... Quem vive colocando a vida em risco morre mais cedo.
O cara não se emenda, já se lascou uma vez, mas não aprendeu.
Se escapar mais uma vez da Dona Morte, vai jogar futebol de mesa
Batia na fórmula 1, batia na Indy, bate de bicicleta... Vai ser ruim assim na Itália.
Pilotar parece que não é o forte dele
Se fosse aqui seria contato como Covid
A que ponto chegamos. Que mundo é esse em que vivemos? Quem são esses seres - desumanos, animais irracionais - capazes de pensar e agir dessa forma? São, certamente, os mesmos que defendem a supremacia branca, o totalitarismo seja de esquerda ou de direita, a cura gay e o que de mais hediondo o homem é capaz de produzir. Escondem-se por detrás das telas de seus celulares, notebooks e computadores, protegidos pelo anonimato que é próprio dos fracos e covardes. O que só torna ainda mais desprezível a sua existência.
Não dá para acreditar, e lamento pelos otimistas que também gostaria de ser, que o mundo pós-coronavírus terá na solidariedade, no respeito ao próximo e na imposição do ser sobre o ter a essência de um novo normal. A maior das reflexões que essa quarentena pode nos proporcionar é essa: até onde irá a estupidez humana? Haverá algum limite?