Aposentado desde março de 2018, quando as dores no joelho o fizeram desistir de jogar pelo Brasiliense, Cicinho se define como um torcedor do São Paulo. Ele fantasiou-se de comentarista durante a estreia da equipe na Libertadores, contra o Binacional (PER), semana passada, mas nesta entrevista ao LANCE! falou como um são-paulino de arquibancada.
A diferença é que, ao contrário da grande maioria das pessoas que estarão no Morumbi às 21h30 desta quarta-feira para o jogo contra a LDU (ECU), o ex-lateral-direito sabe como é estar dentro de campo em noites como essa. Em 2004, inclusive, foi dele a assistência para Luis Fabiano marcar o gol da vitória contra a mesma LDU, em um jogo dramático que acaba de completar 16 anos. O antigo camisa 2 disputou três vezes o torneio: foi campeão uma vez e chegou à semi em duas.
- Eu falo hoje como torcedor. Vejo os caras vestindo a camisa com prazer. Não sei se foi o Daniel Alves que trouxe isso, se é o Hernanes, mas fazia tempo que a gente não via. A gente via pessoas vestindo a camisa do São Paulo e beleza. Perdeu, amém. Ganhou, amém. Hoje o São Paulo ganha de 2 a 1 da Ponte Preta e o treinador cobra, os jogadores se cobram. Para ser campeão tem que ser dessa maneira, honrar a camisa, suar a camisa, e hoje nós estamos vendo isso - diz ele, que promete estar no Morumbi em algum jogo desta campanha tricolor.
- A minha vontade é estar no meio da galera, se for possível vou ao estádio. Lógico que as lembranças vêm à mente, mas minha fase como jogador já passou. Torcedor eu posso ser toda hora. Eu conversei com o Leandro Guerreiro e ele está doido que eu venha, porque sempre que venho fico no camarote dele. Tudo depende da minha programação - disse o ex-atleta de 39 anos, que hoje mora no interior de Goiás, é dono de um centro esportivo e planeja abrir uma empresa para palestrar sobre sua história de vida, que teve momentos de baixa, com depressão e alcoolismo.
A PRIMEIRA LIBERTADORES
Em 2004, seu primeiro ano de clube, Cicinho ajudou o São Paulo a chegar à semifinal da Libertadores, fase em que a equipe foi superada pelo Once Caldas. Apesar de ter servido como aprendizado para o título de 2005, aquela derrocada ainda dói.
- Lembro que voltamos do jogo contra o Once Caldas, paramos em Belém do Pará, perdemos por 1 a 0 para o Paysandu, voltamos para São Paulo e perdemos de 2 a 1 para o Palmeiras no Pacaembu com toda aquela pressão do torcedor - relembra.
Os confrontos com a LDU foram na primeira fase. Em Quito, a altitude fez o nariz de Cicinho sangrar e o São Paulo, até então invicto em nove jogos na temporada, foi derrotado por 3 a 0. A vitória por 1 a 0 no Morumbi foi uma das mais marcantes daquele ano, mas o lateral diz que a apagou da mente.
- Para falar a verdade, esses confrontos não estão tão nítidos na memória. O ano de 2004 foi muito triste para a gente por ter perdido a semifinal. Nós éramos a melhor equipe, o time estava muito bem. Lógico que serviu de experiência para 2005, mas perdemos e o São Paulo tem que entrar para ganhar. Se você me perguntar de 2005 a minha memória vai ser melhor porque eu ganhei. O ano de 2004 eu preferi esquecer.
ENTÃO FALEMOS DE 2005
Cicinho foi um dos destaques do título do ano seguinte: marcou quatro gols, só um a menos que Rogério Ceni e Luizão, os artilheiros do tri. As vítimas foram Universidad de Chile, Quilmes e... Palmeiras, duas vezes.
- Não sei se isso acontecia por causa do meu pai, que é palmeirense (risos). Meu pai falava: “filho, o único time que eu não consigo torcer contra quando vocês jogam é o Palmeiras. Torço para o Palmeiras ganhar, mas para você jogar muito bem”. Meu pai era fanático mesmo. Nem sempre ganhamos, como foi em 2004, mas eu contei com um pouquinho de sorte. Você pega esses gols, principalmente de esquerda, no ângulo... Lógico que se eu não treinasse não teria o pensamento de chutar. Principalmente no Parque Antártica, a primeira coisa que eu pensaria seria tocar de lado. Mas quando você treina tem confiança para fazer. Contei com a bênção de Deus, foram gols marcantes, memoráveis, no último minuto, gols decisivos. Digamos que sou um carrasco, sim - disse ele, que marcou quatro gols em cima do Palmeiras pelo São Paulo.
O gol de falta no último lance do jogo de volta das oitavas da Libertadores de 2005, vencido pelo Tricolor por 2 a 0 no Morumbi, foi histórico: o 10.000º da Libertadores.
- Depois do jogo um repórter veio me entrevistar, falou que era um gol histórico na Libertadores, mas não falou que era o gol 10 mil. Aí depois é que eu me aprofundei, os assessores do São Paulo falaram que eu tinha ganhado uma premiação da Conmebol. Eu tenho o quadro até hoje, está no meu escritório. As pessoas falam: “nossa, 10 mil gols?”. E eu respondo: “é, fiz mais gol que o Pelé” (risos). Mas é só uma brincadeira. É uma memória bem bacana. E, lógico, contra o Palmeiras novamente.
O golaço de esquerda que definiu a vitória por 1 a 0 no jogo de ida, no Palestra Itália, é definido por ele como o momento mais especial.
- Sem sombra de dúvida o que ficou na memória foi o 1 a 0 no Parque Antártica, que eu pude fazer o gol. Eu cheguei ao vestiário depois dos 90 minutos e vi o Rogério Ceni tirando a luva e jogando no armário. Todo mundo achando que ele estava nervoso, e ele fala assim: “ganhamos de 1 a 0 do Palmeiras aqui dentro com gol do Cicinho de esquerda? Somos campeões!”. São coisas que ficam na memória. Fiz parte dessa equipe vitoriosa, dei minha contribuição.
- Quando jogava contra o Palmeiras eu pensava que tinha que arrebentar para zoar meu pai depois. Dessa vez que perdemos para o Palmeiras em 2004 ele brincou comigo: “é, seu time não dá, não. Meu Palmeiras é melhor, Vagner Love deitou”. Faz parte, a gente sempre brincava dessa maneira - emendou.
2010: UMA FRUSTRAÇÃO DIFERENTE
Transferido para o Real Madrid após o título mundial de 2005, Cicinho retornou ao Morumbi em 2010 para uma rápida passagem. Na época, estava emprestado pela Roma e, confessa, sem muita vontade de jogar futebol.
- Olha, se eu não estivesse recebendo o carinho que recebo hoje do torcedor, com certeza estaria frustrado por não ter encerrado no São Paulo. Eu tinha esse pensamento porque faltei com respeito ao torcedor, aos diretores, ao treinador e ao Milton Cruz, que ajudou muito na minha volta em 2010. Eu não abri para eles que não estava mais querendo jogar futebol. Vim com o pensamento de encerrar minha carreira no fim daquele ano, eu não tinha mais prazer em jogar e agi com desrespeito. Quando tive uma mudança de vida, voltei a jogar e fiquei apaixonado de novo pelo futebol, eu orava e falava: “Deus, se o Senhor me der uma oportunidade de voltar para o São Paulo, eu quero mudar o conceito que deixei em 2010”. Eu achei que aquilo tinha apagado o que fiz em 2004 e 2005. Quando parei de jogar futebol vi que aquela fase de 2010 não afetou nada e fiquei tranquilo. Sou totalmente grato e feliz porque minha história está lá.
O torcedor são-paulino que via Cicinho se tornando cada vez mais importante para a equipe, que chegou a ser favorita ao título da Libertadores após eliminar o Cruzeiro, nas quartas de final, não imaginava que ele estava passando pelo momento mais difícil da vida fora do campo.
- Eu precisava ficar gastando, precisava ficar comprando roupa, precisava ficar bêbado para esquecer da vida. Eu vivia em uma depressão sem saber. Perdi a vontade de jogar futebol. Eu não queria levantar da cama para treinar, só para beber. Quando você acorda, você fala: “cara, estou me matando”.
Durante a pausa para a Copa do Mundo, a Roma avisou ao São Paulo que não aceitaria renovar o empréstimo de Cicinho e que, consequentemente, ele não disputaria a semifinal da Libertadores contra o Internacional. Enquanto o Tricolor era eliminado pelos gaúchos, ele se decepcionava com a vida na Itália: a diretoria da Roma ofereceu ampliar o seu contrato para cinco anos, mas com uma considerável redução de salário. O lateral não aceitou e foi esquecido pelo técnico Luis Enrique.
- Nós descobrimos a minha dependência de álcool aqui no São Paulo. Cheguei no doutor Sanches e no Marco Aurélio Cunha e falei: “não consigo dormir de noite, não estou feliz”. Eles chamaram uma psicóloga e ela fez uma entrevista comigo. Aí eles detectaram que eu era alcoólatra. Começaram um acompanhamento, mas aí eu voltei para a Roma. Eu estava para disputar uma semi de Libertadores e a Roma me buscou, mas me encostou quando cheguei lá. Queriam renovar meu contrato abaixando o salário e eu recusei, então me encostaram. Aí eu caí de novo na bebida. Meus pais tentaram me ajudar, mas eu não ficava muito aqui. Lá na Itália eu conheci a minha esposa. Costumo falar que ela teve os olhos de Deus, porque viu em mim algo que todo mundo ao redor não via. Viu um cara derrotado, infeliz... Quando ela me conheceu eu estava em uma mesa com cigarro, whisky, vodka, com um monte de amigos. Na hora que ela viu aquela cena, ela saiu e eu fui conversar com ela. Ela disse: “Minha amiga me chamou para vir aqui, mas olha que coisa feia. Sou brasileira, mas não me encaixo nisso, não”. Aí que comecei a mudar - disse Cicinho, que passou a frequentar a igreja e hoje é um cristão convicto.
- Imagina, cara, eu estava na Roma, ganhava rios de dinheiro, morava em casa de três andares, rodeado de pessoas, mas era vazio. Hoje eu sou cristão e costumo dizer por onde passo que existe um vazio dentro do homem que só Deus pode preencher. Eu não era completo porque meu lado espiritual era morto. Você joga futebol, é bem realizado, mas não entende o propósito daquilo. Ok, sou milionário, sou famoso, mas e aí? Você tem que olhar para o lado e saber que tem pessoas precisando de um abraço, que seu pai e sua mãe precisam ouvir você dizendo que ama... Optei por cuidar do meu lado espiritual. Comecei a ir para a igreja, a receber instruções voltadas para a Bíblia, que é meu livro de cabeceira. A alegria voltou. Eu, minha esposa e um casal de amigos estamos abrindo uma empresa e vou começar a viajar o Brasil dando palestras. As pessoas têm que colocar em mente que não adianta dinheiro e sucesso. Se não tiver Deus, estarão vazias. Eu me preparei para atingir o topo, mas quando atingi não sabia o que fazer.
- O sentimento que ficou quando tive que voltar para a Roma foi de que poderia ter ajudado o São Paulo em alguma coisa. Eu queria ficar. O Rogério conversou com o Ricardo Gomes para eu ficar, estava tudo organizado, mas a Roma não me liberou. Nós queríamos estender por mais três meses, mas o Luís Henrique tinha acabado de chegar na Roma e queria contar comigo. Eu voltei muito triste. Quando cheguei, as coisas não mudaram muito e vi que poderia ter batido mais o pé para ficar no São Paulo - lembra.
ESPERANÇOSO PARA 2020
Cicinho diz que Fernando Diniz é "um dos melhores treinadores do Brasil" e confia que o elenco atual tem capacidade de levar o Tricolor até ao título da Libertadores. Mas considera um personagem ainda mais importante: a torcida.
- A torcida do São Paulo é especial, parece que tem algo do torcedor com o time quando se fala de Libertadores, a atmosfera muda completamente. Você pode ver que o torcedor até tem mais paciência. Digamos que o torcedor sabe torcer na Libertadores. Não que não saiba nas outras competições, não é isso, mas ele sabe que se a gente empatou um jogo tem chance de ir lá e ganhar o próximo. O São Paulo vai sofrer para recuperar esses três pontos da estreia, então por isso o torcedor vai ser muito importante - disse.
- Sou muito zoado pelos meus amigos porque sempre expressei minha torcida pelo São Paulo. Vim do Botafogo-SP, as cores da camisa são iguais, Raí saiu de lá, Bordon... São coisas que ficaram na memória. Hoje eu tenho chorado mais do que tenho conseguido rir, porque já faz um bom tempo que o São Paulo não ganha título, mas como torcedor estou bem esperançoso nesse ano.
CAMPEÃO DE NOVO
No fim de 2019, Cicinho sentiu novamente o gostinho de jogar pelo São Paulo no Morumbi e ajudou o time de lendas montado pelo clube a ser campeão da Legends Cup, torneio organizado por Lugano que reuniu figuras históricas também de Barcelona, Bayern e Borussia Dortmund.
- Quando começou a competição, eu olhei para o Denilson e falei: "achei que a gente viria aqui beijar o símbolo e dar tchau para a torcida, mas o negócio está sério, a gente tem que ganhar". Ele falou: "Cicinho, olha para o lado, ninguém veio aqui para perder, não". Aí eu entendi e falei: "cara, isso é São Paulo" - conta ele, satisfeito por ter formado quase toda a equipe de 2005 novamente.
- O bacana daquele time é que foi um dos poucos do futebol que era vitorioso e tinha a simpatia dos outros torcedores. Ali não tinha soberba. A gente pega o São Paulo de 1992 e 1993 e também era assim, não tinha soberba. Nós quebramos paradigmas naquela época, até o Marcão goleiro ia comentar do São Paulo e falava: "o quero-quero passa no CT do São Paulo voando de cabeça alta e no nosso de cabeça baixa". Todo mundo gostava da nossa equipe, não só pelo bom futebol, mas pelo carisma que nós tínhamos.