Análise: ‘MP 984 estimula o individualismo e a lei do mais forte’

Para advogado, nova Medida Provisória pode promover insegurança jurídica no mercado e evidencia que futebol no Brasil é regido por interesses individuais e circunstanciais

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O futebol é uma caixinha de surpresas, já dizia o lendário radialista Luiz Mendes. A célebre frase descreve a natureza imprevisível dessa disputa esportiva, em que o time mais poderoso pode muito bem perder para o azarão. O problema é quando a surpresa tem origem não no campo de jogo, mas nos bastidores do poder.

A MP 984 pegou (quase) todo o futebol brasileiro de surpresa ao conciliar dois interesses particulares: o do Flamengo, de ter no direito do mandante a oportunidade de exibir seus jogos e cobrar seu preço sem ter que negociar com outros clubes; e o do Presidente Jair Bolsonaro, de criar embaraços à Globo, detentora de direitos já negociados.

A repentina mudança promoveu enorme insegurança jurídica no mercado e colocou em xeque o devido cumprimento dos contratos já firmados e em vigor – no caso do Brasileirão, até 2024.

Ainda assim, alguns clubes demonstraram apoio à mudança, pensando em formar blocos para negociar seus direitos. O coro a favor da MP aumentou quando os oito clubes em litígio com a Turner viram na nova regra uma oportunidade de renegociar os contratos que a companhia norte-americana parece não querer manter.

O presidente do Bahia disse que o direito de arena compartilhado é uma jabuticaba brasileira, pois na Europa o direito é do mandante. Só faltou um importante esclarecimento: lá, os direitos de arena são negociados coletivamente e de forma centralizada pela liga, que distribui os recursos de maneira equilibrada entre os clubes. Nesse caso, que diferença faz se o direito é ou não do mandante?

José Bulhões: 'A repentina mudança promoveu enorme insegurança jurídica no mercado'

O Presidente Bolsonaro exaltou a transmissão de Flamengo x Boavista no canal FlaTV, exagerou o valor arrecadado e defendeu o livre mercado no futebol. Não mencionou, contudo, que a exibição do jogo levou a Globo a rescindir o contrato de transmissão do Carioca por quebra de exclusividade, afetando os 11 clubes que haviam negociado seus direitos no estadual até 2024, muitos dos quais têm nessa receita sua principal fonte de renda. Será que algum deles – ainda que em bloco – conseguirá valor próximo ao que receberiam da Globo ou àquele obtido pelo Flamengo?

O presidente do Flamengo disse que a liga nascerá naturalmente após 2024, com o vencimento dos contratos de transmissão do Brasileirão – mas não antes disso. Por que não antes? Pretende ele primeiro consolidar o seu preço e a enorme diferença entre as receitas de TV do seu clube e as dos outros? Isso vai torná-lo inalcançável quando a aguardada versão brasileira do Fair Play Financeiro finalmente entrar em vigor?

Globo rescindiu contrato do Carioca após transmissão de partida do Flamengo no Youtube (Foto: Arte/Lance!)

Para coroar o enredo, no dia da final da Taça Rio o TJD-RJ decidiu, a pedido de sua Procuradoria, conceder mando de campo compartilhado ao Flamengo para permitir a transmissão do jogo pela FlaTV, apesar de o Fluminense ter sido sorteado como mandante pela FERJ poucos dias antes. O STJD precisou intervir para evitar o descalabro.

Esses fatos evidenciam que, no Brasil, o futebol é regido por interesses individuais e circunstanciais, sem unidade de propósito que beneficie o desenvolvimento do mercado como um todo. A MP estimula o individualismo e a lei do mais forte em meio à pior pandemia dos últimos 100 anos, justamente quando devemos pensar em medidas estruturais que assegurem a viabilidade da atividade econômica dos clubes.

O esporte tem uma peculiaridade que a mentalidade monopolista não consegue compreender: os clubes dependem uns dos outros para oferecer seus produtos e serviços ao consumidor e alimentar a rivalidade que gera demanda. Nenhum clube joga sozinho. Quando um clube tradicional fecha as portas, o mercado encolhe. A clientela órfã não é simplesmente realocada à loja da concorrência. A paixão deixa de ser transmitida de uma geração à próxima.

Os EUA sabem muito bem que o esporte é um mercado sui generis, pois requer a competitividade de todos os agentes econômicos para funcionar. Da mesma forma que a riqueza de um ecossistema é diretamente relacionada à sua biodiversidade, o valor comercial e esportivo de um campeonato é tão maior quanto maior for a competitividade e a força dos times que o compõe.

O produto vendido às emissoras e torcedores do mundo todo é um só: o campeonato. Sem todos os times ele não funciona. Sem competitividade ele não vende. A pandemia comprovou que um jogo não vale nada se o campeonato não for concluído.

Sem uma liga, transparente e competitiva, a caixinha de surpresas do futebol brasileiro deixará definitivamente o campo de jogo e fixará residência nos bastidores do poder de diversos blocos de interesses que, pelo visto, não têm compromisso com o futuro desse mercado que é patrimônio cultural nacional.

*José Cândido Bulhões Pedreira é advogado (FIFA Master. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/RJ. Sócio do escritório Trengrouse, Gonçalves Advogados).

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