Mirando ‘competitividade inglesa’, La Liga inicia nova edição e espera por efeitos nas mudanças das cotas de TV
Após anos de disparidade e concentração financeira da dupla Real e Barça, formato de distribuição em vigor desde 2017 é esperança de maior atratividade na luta pelo título<br>
As mudanças na economia global na última década tiveram consequência também no futebol, como não poderia ser diferente. A incessante busca por fontes de receitas transformou a competição das finanças, fora de campo, quase tão importante com a que rola dentro dos gramados. Hoje em dia, clubes da Europa, centro mercadológico do esporte, funcionam como espécies de "seleções multinacionais", capazes de concentrarem os principais craques do mundo e levarem a disputa em âmbito doméstico a patamares inéditos.
Prova disso são as hegemonias de Juventus e Bayern de Munique na Itália e Alemanha, respectivamente. No Calcio, antes do eneacampeonato da Juve, a maior sequência de títulos foram os pentas da própria equipe de Turim, entre 1931 e 1935, do Torino, entre 1943 e 1949, e da Internazionale, entre 2006 e 2010. Disputada desde 1964, a Bundesliga, que sempre teve no Bayern o máximo expoente, só viu um esboço de dominância outrora ao atual em quatro oportunidades: os três tricampeonatos do clube da Baviera, entre 1972 e 1974, 1985 e 1987, 1999 e 2001, e o do Borussia Monchegladbach, de 1975 a 1977.
De uma forma ou outra, a Espanha não foge da previsibilidade, mesmo que na dicotomia Real Madrid-Barcelona. Desde 2005, os gigantes abocanham o troféu nacional, à exceção da temporada 2013/2014, quando o Atlético de Madrid, treinado por Diego Simeone, surpreendeu o mundo e foi campeão triunfando no jogo do título justamente no Camp Nou, no empate por 1 a 1 contra o Barcelona. No século XXI, são dez títulos do Barça, sete do Real Madrid, dois do Valencia e um do Atléti.
Ainda que não tenha uma dinastia, o Campeonato Espanhol não escapa dos apelidos depreciativos. Para muitos, trata-se da "Liga de dois times", desconsiderando que, Real e Barça à parte, os resultados internacionais mostram a força de equipes como Sevilla, seis vezes campeão da Liga Europa, Atlético de Madrid, duas vezes campeão da Liga Europa e finalista da Liga dos Campeões em duas oportunidades, ou Valencia, também campeão da Liga Europa (à época da conquista, chamada de Copa da Uefa) e finalista da Champions em 2001.
Mesmo os mais modestos, como Espanyol, Osasuna e Villarreal, chegaram à semifinal da segunda principal competição da Europa. O Submarino Amarelo, como é conhecido o Villarreal, também ficou entre os quatro melhores da Liga dos Campeões em 2006, quando foi eliminado pelo Arsenal.
- La Liga tem uma forte visão de inovação, buscando valorizar seu produto além da dupla Real/Barça. Para a próxima temporada lançará gráficos novos para comentar e analisar as partidas, e tenta cada vez mais fugir da sobra dos dois gigantes. Mas não é um trabalho fácil, especialmente após a saída de Cristiano Ronaldo e a iminente saída de Messi, mesmo que daqui um ano. Dependem tanto deles que o Javier Tebas, presidente da liga, chegou a dizer que havia multa astronômica no contrato do Messi, se envolvendo num tema que não é dele - afirma ao LANCE! o economista e consultor de gestão e finanças do esporte, Cesar Grafietti.
Como produto, o Campeonato Espanhol tem passado por uma transformação nos últimos anos. As frequentes discussões sobre as cotas de TV, que geravam uma disparidade grande de Real Madrid e Barcelona para os demais, ganhou um novo e importante capítulo em abril de 2015. Foi quando virou, definitivamente, assunto de política no país.
Depois de fortes críticas de boa parte de presidentes e dirigentes dos rivais da dupla, o governo espanhol aprovou um decreto prevendo a centralização dos direitos de transmissão, até então negociados de forma individual, o que causava a desigualdade da distribuição do montante.
Em 2011, no auge da disputa entre Barcelona de Guardiola e Real Madrid de Mourinho, o presidente do Sevilla, Josep Maria Del Nido, afirmou que "a liga espanhola é a maior porcaria do mundo". Em uma outra ocasião, Joan Collet, presidente do Espanyol, manifestou publicamente o desejo de paralisar o campeonato caso não fosse aprovado uma lei obrigando a negociação coletiva dos direitos de televisão. O mandatário do primo pobre de Barcelona, inclusive, confirmou ter tido o apoio de outros dirigentes.
Campeão em 2011/2012, o "Real Madrid dos Recordes", que teve o maior número de pontos (100) e o melhor ataque da história da competição (121 gols), colocou 39 pontos de diferença para o terceiro colocado, o Valencia. Um ano antes, os valencianos também terminaram em terceiro lugar, 25 pontos atrás do tricampeão Barcelona. Manuel Llorente Martín, presidente do Valencia, declarou, ironicamente, que se sentia "o campeão dos humanos; de La Liga B".
"Inicia-se um novo campeonato!", disse o presidente da Liga Espanhola, Javier Tebas, após as mudanças na distribuição das cotas de TV
O desafio de La Liga segue sendo repartir o bolo dos acordos televisivos mais igualitariamente. Para isso, a inspiração vem de cima: da Premier League, o Campeonato Inglês.
Desde 2017, o Espanhol divide de forma coletiva a arrecadação vinda das tvs: 50% é compartilhado para todos, sem diferenças, outros 25% variam em torno dos resultados dos times nos anos anteriores e os 25% finais são ordenados em cima de medidas que os clubes precisam tomar para se promover no mercado, como média de público, facilitação do acesso dos torcedores ao estádio, ações de marketing e até a qualidade do gramado e a iluminação dos estádios.
- Ainda vejo uma distância muito grande entre as duas ligas (Inglaterra e Espanha), seja porque na Premier League há pelo menos seis clubes fortes e alguns efetivamente globais, enquanto na La Liga há uma predominância dos gigantes e uma tentativa de Atlético de Madrid de se transformar numa terceira força equivalente. O sucesso de uma liga depende da capacidade de competitividade e força de seus clubes. Na Inglaterra você tem um clássico a cada duas rodadas e mesmo algumas equipes intermediárias despertam interesse, como o Leicester, o Wolverhampton e o Everton. Na Espanha isso é mais limitado - diz Cesar Grafietti.
Na temporada 2018/2019, o faturamento dos participantes de La Liga foi de 4,4 bilhões de euros (cerca de R$ 19,5 bilhões), um acréscimo de 20,6% em relação ao ciclo anterior. No mesmo período, na ilha britânica, as 20 equipes tiveram receitas somadas de 5 bilhões (R$ 22 bilhões). Para efeito de comparação, em 2013/2014, uma temporada antes da intervenção governamental, Barcelona e Real Madrid, sozinhos, receberam quase 80% da grana da TV, o que tornava a disputa desleal. Em 2019, o Atlético de Madrid foi o primeiro dos outros 18 clubes a entrar na casa dos que ganham acima de 100 milhões de euros (119,5 milhões de euros). Mesmo quando foi campeão, o Atléti recebeu, no máximo, 55 milhões de euros.
- Acho que o grande desafio da La Liga será se sustentar como a segunda liga mais relevante do mundo, porque a Serie A italiana está passando por uma grande transformação, com melhora importante na qualidade das equipes e dos jogos, enquanto a Bundesliga tem sempre bons jogos. La Liga faz um grande trabalho, está sempre buscando se tornar mais relevante, mas é inegável que ainda há uma forte dependência da dupla de gigantes - salienta Grafietti.
Dentro das quatro linhas, o campeão da última edição teve mais dificuldades que o usual. Os 87 pontos do Real Madrid foram os menores de um time vencedor desde 2007/2008. Com 70 gols marcados, o time da capital teve seu segundo pior ataque na década, ficando à frente somente da marca de 2018/2019, quando marcou 63 gols e foi o terceiro colocado.
Mesmo o Barcelona de Messi não driblou as adversidades para se impor em campo: em dez anos, o Barça obteve seu pior índice de derrotas no torneio passado. Os seis revezes, somados aos sete empates, evidenciaram a queda dos catalães, mas também a ascensão dos rivais. Na Copa do Rei, Barça e Real não alcançaram nem as semifinais.
O Campeonato Espanhol 2020/2021 começa neste sábado, com a partida entre Eibar x Celta de Vigo, às 11h. O Real Madrid só entra em campo na segunda rodada, uma vez que teve o calendário da temporada 2019/2020 prolongado devido à presença nas oitavas de final da Liga dos Campeões da UEFA no início de agosto. Barcelona e Atlético de Madrid, que foram até às quartas da competição europeia, e Sevilla, campeão da Liga Europa, só debutam na terceira rodada.