As primeiras movimentações da Eurocopa se estenderam ao pós-jogo, no qual astros indicaram que estavam incomodados com bebidas que estavam à disposição. O português Cristiano Ronaldo rejeitou garrafas de Coca-Cola, pegou outra garrafa e, depois de erguê-la disse "água". O francês Pogba escondeu uma garrafa da cerveja Heineken, pois sua religião não permite o consumo de bebida alcoólica. A "rebelião" contra patrocinadores abre caminhos inusitados e expõe novos desafios ao marketing esportivo.
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Sócio da Sports Value, Amir Somoggi detalha quais são as prioridades contratuais.
- Essas marcas pagam milhões e recebem as propriedades. Têm espaço numa placa, backdrops e vão ter seus produtos expostos na coletiva de imprensa. A Uefa chegou a emitir uma nota recente na qual proibiu mexer nas garrafas - declarou.
Contudo, Somoggi aponta que há um novo olhar sobre o ídolo no contexto de negócio do esporte.
- O jogador está ganhando um status muito grande. O Cristiano Ronaldo não ganha um salário, não tem uma imagem com a seleção de Portugal. Tecnicamente, quem paga o salário é o clube dele, ele tem o marketing e as marcas dele. Por mais que seja passível de punição financeira, será pouco- e destacou:
- Ele pode, sim, ser punido pela seleção de Portugal, pela Uefa, pois a entidade tem um carinho muito especial com seus patrocinadores. Mexer ali nas marcas tem um peso grande. Esta situação mostra que jogadores têm de ter mais controle sobre os aspectos de marketing e eles estão ganhando uma musculatura incontrolável. O Cristiano Ronaldo tem um salário na Juventus menor do que ele ganha por postagens nas redes sociais. O que vale mesmo é contrato publicitário, exploração de redes sociais e oportunidades de marketing - completou.
A Uefa amenizou a situação, dizendo que "sem a Coca-Cola seria impossível organizar um torneio com tanto sucesso para jogadores e torcedores” e “para garantir o desenvolvimento do futebol em toda a Europa”. Além disto, a marca traz um portfólio “para todos os gostos e necessidades, desde água a bebidas isotônicas, sucos, café e chá”.
A Coca-Cola afirmou, por seu porta-voz que "aos jogadores é oferecido água, além de Coca-Cola e Coca-Cola sem açúcar na chegada de nossas entrevistas coletivas. Todos têm direito às suas preferências de bebida".
A situação culminou em reações inusitadas entre os jogadores. O italiano Locatelli também afastou refrigerante. Já autor de um dos gols da vitória da Ucrânia sobre a Macedônia do Norte, Yarmolenko, pegou as garrafas da Coca-Cola e da Heineken e, em tom irreverente, pediu para que ambas entrassem em contato com ele para patrociná-lo.
Professor e especialista em marketing esportivo, Marcelo Palaia crê que a Uefa tem de avaliar o assunto de outro ponto de vista.
- Estão todos falando numa questão de comunicação e marketing, e eu penso numa questão simples, que é uma questão jurídica do assunto. Se a Coca-Cola tem um contrato com a Uefa que possa expor o produto na área de coletiva de imprensa, ela deve ter um documento assinado pelas seleções no qual os atletas são obrigados a participar da coletiva de imprensa e não podem alterar o ambiente dela - e frisou:
- Então, é multa alta em cima de Portugal ou até em cima do Cristiano Ronaldo, e uma aplicação de multa perante um trato jurídico, de compra de direito de imagem e disposição de produto. Se ela tem isso, ótimo, Se ela não tem isso, se não foi amarrada nessas circunstâncias, ela errou juridicamente de não ter um documento. Uma relação dessa, onde existe um patrocínio de uma Eurocopa, tudo tem que ser amarrado com exatidão, com perfeição, nos seus contratos jurídicos. Para mim agora é uma questão jurídica de aplicação de multa, tanto no Cristiano Ronaldo, que tirou a Coca-Cola, quanto no Pogba, que tirou a Heineken - completou.
Especialista em inovação e novos negócios na indústria do esporte, Bruno Maia vê novas frestas abertas em torno de quem é o protagonista de fato do jogo.
- A discussão é um pouco mais profunda do que a relação com patrocinadores. Não acho que seja uma questão tão relevante assim, acho mais importante a discussão de espaços no futebol. Quem é o dono do jogo? Quem é o dono daquele espaço ali? É do Cristiano Ronaldo, é da seleção de Portugal que ele está representando ou é do patrocinador que pagou um backdrop para estar no evento e o jogador, em teoria, não ganhou nada para aquilo estar ali - e apontou:
- Essa discussão de espaço é muito importante, contemporânea e complexa. Especialmente porque a gente tem que entender que isso começou no momento em que os canais de transmissão e as licenças de transmissão eram poucas e onde basicamente os atletas se projetavam - completou.
Independentemente de quem dominará as ações, pessoas ligadas ao futebol já cogitam a possibilidade de que as atitudes de CR7 e de Pogba causarem impacto em outros campos. Gerente de marketing do Fortaleza, Márcio Persivo pontua.
- A tendência é que a quantidade de atletas se posicionando cresça, seja por qual causa for. É isso que se pede cada vez mais deles e é natural que isso modifique o “ambiente futebol”. Consequentemente, o que está em volta se molda, se adequa e passa a usufruir das possíveis novas “regras” - declarou.
MARCAÇÃO CERRADA NA AMÉRICA DO SUL
Em território sul-americano, a Conmebol é categórica sobre suas competições: os direitos financeiros, de imagem de todos os clubes e jogadores, direitos de marketing e promocionais, existentes ou em formatos a serem criados são dela. A entidade conta com até dez patrocinadores que aparecem nos backdrops, um provedor de material esportivo e licenças.
Vice-presidente de marketing do Internacional, Jorge Avancini contou como são feitos os acordos.
- Os contratos são feitos pelos organizadores das competições: Conmebol, CBF e, no nosso caso, Federação Gaúcha. Para cada ano, fazem um caderno de encargos, semelhante ao que a Fifa faz na Copa do Mundo, e lá são definidas todas as responsabilidades que os clubes que recebem os jogos têm que cumprir. Principalmente questões de marketing, pois patrocínios, exposições de marca pertencem aos organizadores da competição - e exemplificou:
- Quem coloca patrocinadores, ações, são entidades das competições. Os clubes praticamente não têm autonomia sobre isso. Isso é regrado pelos organizadores da competição. Não pode ser no backdrop do clube, se observar as propagandas que existem dentro estádio são tapadas nos jogos da Libertadores, aonde entram estão patrocinadores que promovem as organizadores. Os jogadores que concederão entrevistas nos gramados são escolhidos por nossa assessoria, aí ela vai indicar e passa para conceder entrevista no backdrop - completou.
Os clubes têm de expor todos os patrocinadores no campo de jogo, na altura das fotografias e também nos bancos de reservas.
- Temos direito apenas às duas placas dos nossos patrocinadores principais, no caso Adidas e Banrisul, uma em cada bandeirinha de escanteio - disse.
Mas a Conmebol tem ido além: há até fiscalização em postagens nas redes sociais de clubes que abordem as competições sul-americanas. Internacional, Flamengo e Palmeiras foram alvos de denúncia. Avancini recorda uma situação em torno do Colorado.
- Aconteceram sanções agora na Libertadores com Inter, São Paulo e Flamengo. Temos parceria com a Konami (empresa de jogos eletrônicos), enquanto o patrocínio da Conmebol é o Fifa. No anúncio das escalações em temos por questão de contrato com a Konami temos de colocar a marca da empresa. Devido a isto, fomos advertidos pela Conmebol por não ser patrocinador dele. Isto pode até posteriormente gerar multas pesadas, na casa dos US$ 50 mil (R$ 250 mil).
A Copa Sul-Americana também trouxe restrições. Gerente de marketing do Bahia, Lênin Franco detalhou a maneira como o clube teve que agir a cada dia de jogo.
- O Bahia fez uma postagem com um card de um dos jogos da competição. Assinamos postagem com os patrocinadores do nossa clube, o que é de costume aqui. O fato de mencionarmos a Copa Sul-Americana nos rendeu uma multa de US$ 50 mil (em torno de R$ 250 mil). A Conmebol é mais dura (citar a competição entra como "marketing de emboscada", expressão que considera aproveitar a visibilidade de um evento). Água mineral não pode ter rótulo, sacola do massagista não pode ter marca. Só podem ser os patrocinadores deles - disse.
No Campeonato Brasileiro, também há algumas restrições.
- Antes do jogo, o treinador tem de dar entrevista logo que desce do ônibus. Isso é obrigatório. Além disto, os jogadores, na saída de campo, têm de conceder entrevista na frente do backdrop do campo. Só quem pode fazer a entrevista é a emissora detentora de transmissão e, logicamente, existem sanções. Como está no regulamento, se a gente não cumprir para o Tribunal, mas nenhum jogador contestou isso até agora - declarou o gerente de marketing do Bahia.
O vice-presidente de marketing do Internacional trouxe outros desdobramentos em torno da competição.
- Temos de respeitar, pois eles já entendem que pagam os clubes através da premiação e dos direitos de televisão os direitos que pagam dos clubes. Ao cederem esses direitos, todos passam que cumprir as regras.
CR7 E A FÁBULA EM TORNO DAS AÇÕES DA COCA-COLA
A ação de Cristiano Ronaldo ganhou uma dimensão ainda maior devido à movimentação do mercado na última segunda-feira. No mesmo dia no qual foi crucial para a vitória por 3 a 0 de Portugal sobre a Hungria e, na entrevista coletiva, demonstrou incômodo ao se deparar com refrigerantes, surgiram notícias de que as ações da Coca-Cola despencaram em US$ 4 bilhões no seu valor no mercado. Mas a saborosa história de que CR7 afetou os humores da Bolsa de Valores de Nova York não passou de um acaso.
A análise comparativa feita pelo portal "Sportico", especializado em mercado de esportes, apontou que as ações da Coca-Cola abriram em já queda de 0,9%. Era 9h30 em Nova York (15h30 em Budapeste, antes de o astro conceder coletiva). Passados 14 minutos, cada ações tinham caído para US$ 55,25, e a companhia tinha perdido valor em US$ 2,1 bilhões.
O valor mínimo, de US$ 55,20 aconteceu às 10h20 na cidade americana. E enquanto viralizavam imagens do atacante afastando as garrafas de refrigerante para optar pela água, a Coca-Cola ainda recuperou seu fôlego, encerrando o dia com as ações cotadas em US$ 55,55.
Há outra questão pontuada pelo site: cotações de ações são enviadas aos portais com atraso de 20 minutos, uma vez que as Bolsas cobram para informá-las em tempo real. Muitos sites preferem aguardar.
Logo, o investidor poderia crer que a queda aconteceu imediatamente antes da Coca-Cola, mas as ações tinham despencado antes de CR7 fazer seu gesto.
Economista e professor do Ibmec, Gilberto Braga avalia o fluxo das ações da empresa.
- Não dá para estimar que atitudes como a de Cristiano Ronaldo ocasionaram diretamente esta queda financeira da Coca-Cola na Bolsa de Valores. As ações têm características de serem rendas variáveis. Há uma série de fatores conjunturais para que o mercado varie. Neste caso, não houve uma correlação entre o episódio do jogador e o que aconteceu no mercado - declarou.
Aos seus olhos, a discussão chega em um momento no qual o mercado tem visto com bons olhos o futebol.
- Existe uma ideia cada vez maior de buscar eventos com grande público, casos dos campeonatos de futebol, devido ao apelo em torno dos espectador. Com isto, se discute alguns padrões de governança. Até que ponto um atleta pode recusar a ficar perto da marca de um campeonato ou onde se configura uma cláusula trabalhista? Há até impasses sobre produtos nocivos - afirmou.
De acordo com estudo divulgado pela Nielsen, o atleta tende a subir (e muito) de valor nos próximos anos. Dos US$ 314 milhões em 2020, eles valerão US$ 1,2 bilhão em 2023, se tornando cada vez mais influenciadores. Suas postagens têm gerado 63% mais engajamento às marcas que os patrocinam do que nos canais oficiais delas nas redes.
'MEXENDO COM O JOGO DO MARKETING'? OS EFEITOS EM TORNO DE CR7
Quem lida com a rotina do marketing dos clubes vê com desconfiança a "reação" de CR7 na entrevista coletiva. Mas vê com ressalvas a conduta do astro português.
- No caso de Cristiano Ronaldo e Pogba, não sei se e trará mudanças. As empresas podem cogitar a multa a confederações em caso de insubordinação, mas não tem como cravar. A pandemia não estava em contrato. A partir da pandemia em 2020, foram previstos nos acordos acontecimentos extraordinários da natureza - afirmou o gerente do Bahia, Lênin Franco, ressaltando:
- Tem um fator grave na atitude deles que é prejudicar o patrocinador como marca. No caso de Cristiano Ronaldo é uma mensagem de que Coca-Cola faz mal. Foi uma atitude que não é positiva. Isso virar moda é problema. Pois se isso reproduz para clubes e seleções afeta ao tentar trazer possíveis investidores em competições - completou.
Já o vice-presidente de marketing do Colorado, Jorge Avancini, crê que foi apenas um caso isolado. E que literalmente pode custar caro.
- Na realidade foi um fato isolado, infringiram as regras da Uefa. A Coca-Cola é um patrocinador de muitos anos de quem organiza competições de muitos anos com a Fifa. A Federação Portuguesa pode ser multada. Por se tratar de Cristiano Ronaldo, virou isso tudo. Mas tem de pensar também o lado do jogador. Sabendo que ele é essa máquina de fazer dinheiro, apesar de não ser garoto-propaganda da Coca-Cola, será que a intenção dele foi só afastar porque não toma refrigerante ou por não ser patrocinador com o qual tem contrato particular com ele? - e alertou:
- Estamos olhando como fantástico, mas tem que olhar também os patrocinadores que organizam o evento, que pagam as premiações e investiram muito dinheiro para colocar suas marcas lá. A atitude do Cristiano Ronaldo não foi profissional, ele extrapolou o limite dele. Claro, como grande ídolo mundial que é, isso ele consegue fazer. Agora, que não tem a fama que ele tem, passaria despercebido e seria punido - completou.
Jorge Avancini também não crê em um impacto a longo prazo do mercado. E reconhece que um novo panorama seria preocupante para quem trabalha com marketing.
- Isso não muda. Se mudar, não haverá mais patrocinadores nas competições, não vai mais viabilizar financeiramente, vai ficar na mão dos patrocinadores pessoais dos jogadores.
Em seguida, apontou o quanto já é desafiador trabalhar no atual cenário oferecido pelas competições esportivas.
- Os clubes são cerceados com seus patrocinadores. A gente não pode divulgar e favorecer as marcas nos patrocinadores nestas competições como no nosso caso o Banrisul no Brasileiro, que é patrocinado pelo Itaú para a CBF. Só é permitido aparecer na camisa. Perdemos chances de trazer mais retorno ainda para os patrocinadores - e é categórico:
- Esta atitude do Cristiano Ronaldo é para ele. Porque ele se permite tudo, mas isso tem que ser coibido, tem que ser chamado, pois ele prejudicou a competição e vem contra os direitos que não são baratos - complementou.
Gerente de marketing do Fortaleza, Márcio Persivo não esconde que vem muita mudança por aí.
- Atitudes de grandes atletas e astros do futebol sempre “mexem com o jogo”. Difícil saber quais mudanças ocorrerão, porém, de imediato. Creio que haverá um aumento na visibilidade dessa propriedade comercial e dos produtos expostos nas coletivas de imprensa, pelo menos até o assunto esfriar - e contou:
- Também acredito numa rigidez maior por parte dos patrocinadores e entidades patrocinadas em relação ao cumprimento dos acordos comerciais e suas contrapartidas. Algo que já ocorre, mas de forma não tão rigorosa - completou.
Até lá, não há dúvidas de que muita água vai rolar.
* Atualizado às 19h57