Das ruas do Ferrel aos grandes palcos: como o futebol mudou a vida de Vítor Severino, do Botafogo
De origem humilde e cidade pequena, auxiliar de Luís Castro superou barreiras para conquistar espaço no futebol e chegar no Botafogo<br>
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Um dos fatores que fazem o futebol ser apaixonante é a forma como ele pode ser inclusivo. Apesar do recente avanço elitizado, a raiz do esporte continua sendo de oportunizar pessoas que, teoricamente, não teriam chance de performar em grandes palcos. Esse é o caso de Vítor Severino, principal auxiliar de Luís Castro no Botafogo.
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Há muita história por trás do cômico e bem humorado profissional. O português de 39 anos cresceu no Ferrel, freguesia de Lisboa com menos de 5.000 habitantes. O lugar não carregava nenhuma figura de inspiração para os mais jovens que de lá saiu para brilhar no futebol. Até Vítor Severino.
Ele se apaixonou pelo futebol como qualquer outra criança. De jogar bola na rua com os amigos até gastar as paredes da casa da avó, o futebol era a única forma de lazer de Vítor e dos amigos na pequena província. O português logo carregou a vontade de ser jogador - e tentou levar à frente. Quando cresceu, a razão falou mais alto mesmo que a maré estivesse indo na direção contrária.
- As probabilidades não apontavam para que eu pudesse ter chegado aqui, a ter essa conversa. Eu jogava futebol porque não existiam outras diversões, não tinha internet, videogame, redes sociais... Todo mundo sonhava ser jogador, mas não havia referências onde morávamos. Não havia um jogador ou treinador na cidade. Nós sabíamos que era bem difícil, mas quando somos crianças o sonho comanda a vida. A partir de uma certa altura a consciência fala mais alto. Até passei na primeira peneira e cumpri o sonho de jogar. Eu já era referência para muitos meninos que sequer conseguiam jogar no clube talvez no raio de 50, 100 quilômetros dali. Mas com o crescimento, evolução, eu queria tanto estar no futebol que a razão falou mais alto e eu sabia que não tinha muito futuro como jogador de futebol - contou Vítor Severino, em entrevista exclusiva ao LANCE!.
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Vítor até passou na peneira ainda criança em uma escolinha em uma província perto do Ferrel, mas percebeu que o futuro no futebol não era dentro do campo. Muito disso veio da influência dos pais na vida.
- Fui jogando, jogando, mas estudando. Tinha a pressão dos meus pais, que me deixavam jogar, mas sempre cobravam o estudo. Em Portugal quando chega nos últimos três anos da escola tem que escolher uma vocação e eu fui em Ciências do Esporte. Isso vai com a tomada de consciência aos 16, 17 anos em que eu até podia jogar bola, mas não chegaria à elite, não ouviria o hino da Liga dos Campeões do banco. Era esse o futebol que eu queria tentar, era o sonho que me comandava. Foi essa coincidência que me fez ir para uma vertente dos treinos. Comecei a ficar cada vez mais apaixonado pelo componente mais tático, estratégico e estar do outro lado. Eu jogava futebol e estava no curso de esportes, o meu treinador na altura já dizia para eu dar aquecimento e ajudar. Foi aí que começou a despertar em mim essa ideia - afirmou.
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O FATOR JOSÉ MOURINHO
Talvez uma das únicas características que devem combinar entre os estilos de jogo de José Mourinho com o de Luís Castro/Vítor Severino é que eles querem fazer o gol e saírem vitoriosos. Mas o "Special One", mesmo que de forma indireta, teve uma importância gigantesca para o auxiliar do Botafogo passar a acreditar que poderia ser uma pessoa que iria para além do Ferrel.
- Há uma coincidência maior para mim e para os treinadores da minha geração que é o José Mourinho. Ele aparece tendo sucesso e sem ter sido um craque, um jogador profissional de elite. Todo mundo começou a acreditar que era possível ser treinador sem ter sido jogador. Antes era quase que um clichê em Portugal tentar ensinar algo sem ter pisado nas Liga dos Campeões, reclamavam muito disso - explicou.
Vítor estava decidido: queria ser treinador de futebol. Não aconteceria da noite para o dia. Como uma pessoa sairia de um lugar com menos de 5.000 habitantes apenas com o ensino médio feito, sem conhecer ninguém e sem indicações de terceiros?
Ele cursou Ciências do Esporte na Universidade de Coimbra e, por ter se formado com boas notas, já recebeu o diploma tendo um nível suficiente para poder o curso da UEFA B, o segundo no âmbito dos treinadores, de graça. Mesmo sem ter dinheiro suficiente, Vítor recusou o convite... Para pagar pelo conteúdo.
- Fiz o curso B sem precisar fazer. Como é que um cara como eu, que não tem conexões, vai pular uma equivalência? Lá eu poderia conhecer pessoas. Eu posso ser a pessoa mais competente do mundo, mas nunca teria oportunidade se ninguém me conhecesse. Fui fazer o curso com muita dificuldade. Sempre conto essa história porque foi muito importante para mim. Não tinha dinheiro para pagar o curso, ainda estava na faculdade, tinha que pagar o aluguel do quarto, meus pais não eram ricos e os cursos eram caros. Quando chegou lá minha namorada, hoje minha esposa, disse que guardou um dinheiro de presentes de Natal, aniversário e que ia pagar porque sabia que eu queria fazer o curso. Fomos juntos e pagamos o curso em dinheiro, não me esqueço disso. Fiz o curso da Uefa B, foi o primeiro mesmo sem precisar fazer. Depois disso fui trabalhando para pagar os outros - relembrou.
LUÍS CASTRO E TRABALHO
A partir dos cursos, Vítor conseguiu trabalhos. Mesmo ainda não completamente inseridos em um contexto profissional do futebol, o português estava mais próximo do objetivo. O primeiro trabalho foi no Académica ganhando uma ajuda de custo. Ele não abandonou a ideia e fez o mestrado em treinamento esportivo.
Com o avanço, Vítor assumiu o comando do time B e a coordenação da base do Académica. Ele foi convidado para representar a equipe em um seminário organizado pela Uefa em 2015, em Madri. Lá também estava Luís Castro, então diretor das categorias inferiores do Porto. Os dois se conheceram e passaram dias juntos conhecendo estruturas de clubes.
Vítor manteve contatos com o treinador, mas tudo de forma esporádica. Até que uma ligação mudou completamente o rumo de sua vida.
- Ficamos seis dias em uma comitiva da federação portuguesa de futebol com mais pessoas, visitamos CTs e foi assim que nos conhecemos. Trocamos algumas mensagens esporadicamente e ele foi treinar o time A do Porto e pediu para que eu o ligasse. Senti algo ali e foi tudo muito rápido. Ele disse: "Preciso de um auxiliar no time B, se quer trabalhar no Porto tem que ser agora". Tinha tudo montado em Coimbra, tinha alugado casa, estava dando aulas, minha esposa tinha acabado de se mudar, mas prometi que no dia seguinte estaria lá - afirmou.
- Não me arrependo porque era o que eu sempre quis. Queria estar full-time no futebol, foi quando eu olhei para mim mesmo e disse "eu sou um profissional do futebol". Gosto de dar aulas e participar de congressos, mas aquele era o meu sonho. Aquela paixão de jogar nos muros da casa da minha avó era para chegar naquele dia. Deixei tudo para trabalhar no Porto - completou.
Depois, Vítor assumiu o comando do time sub-15 do Porto e agradou Luís Castro, que o convidou para ser membro da comissão técnica nos próximos trabalhos que fez. E assim estão juntos até hoje. O auxiliar garante que ainda tem muito a aprender na posição que está e não pensa em assumir a função principal de uma equipe.
- Já falei sobre esse assunto e não considero isso um tabu. Sou uma pessoa ambiciosa. Esse dia poderá eventualmente acontecer, mas não penso. Gosto de viver intensamente os dias, a minha profissão. Quero ser cada vez mais um melhor auxiliar, o Luís Castro tem noção disso. Já tive possibilidades, não digo para ser mesquinho, de assumir clubes e recusei por dois motivos. O primeiro deles é ser feliz, sou muito feliz fazendo o que eu faço e o outro é porque sei que ainda posso aprender ainda muito mais. Me sinto muito realizado, gosto de trabalhar com o Luís e o resto da comissão. Queremos fazer um grande trabalho no Botafogo - finalizou.
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