O amistoso da Seleção Brasileira no último domingo contra a Croácia deixou uma dúvida no técnico Tite e em quem acompanha a preparação brasileira para a Copa do Mundo. Jogar com Fernandinho ou Philippe Coutinho na condição de meia central? Mais do que a opção por um ou outro jogador, a escolha passa pela forma como a decisão impactará no jogo de Marcelo. Sim, uma das grandes preocupações da comissão técnica brasileira para o Mundial na Rússia é encontrar uma forma de oferecer ao lateral-esquerdo do Real Madrid (ESP) as melhores condições de apresentar seu talento. Porque Tite e seus pares sabem da importância da força ofensiva de Marcelo, principal responsável por fazer dele um dos 23 "Homens de Gelo" da Seleção e o sexto personagem da série do LANCE! sobre o grupo que tentará o hexa.
MARCELO E A BOLA: UMA RELAÇÃO DE DOIS MINUTOS
Alexandre Gama ganhou fama em 2004 quando assumiu o comando do Fluminense de forma interina e barrou ninguém menos que Romário. A resposta do Baixinho ao caso correu o mundo:
- Ele acabou de sentar no ônibus e já quer ir na janela? - disse Romário na ocasião.
Na época, o treinador de fato estava longe de ser badalado e nunca tinha assumido uma equipe principal, mas hoje pode se orgulhar de ter aprovado um dos maiores laterais-esquerdos da história do futebol: Marcelo.
Marcelo chegou ao Fluminense, seu clube formador, no início da década passada. Na época, sabia-se que era um menino muito habilidoso e poderia passar do futsal que praticava no bairro de Botafogo para o futebol de campo. Foi levado pelo então diretor Marcelo Teixeira para um teste supervisionado por Alexandre Gama, então treinador do infantil, categoria de 14 para 15 anos. Mas tinha um problema: o garoto não sabia em que posição jogava. Teixeira sugeriu a meia.
- Eu perguntava a posição que jogava e ele dizia: "Pode ser atacante, lateral, qualquer uma, professor!". Então observei uns jogos dele de camisa 10 e atacante, mas no primeiro torneio acabei colocando de lateral. Nunca mais saiu - conta Gama.
Como lateral, Marcelo disputou seu primeiro torneio pelo Fluminense, a Copa Espírito Santo. Lá, protagonizou uma cena que representa todo a técnica apurada de seu futebol. Foram dois minutos que nunca saíram da cabeça de Alexandre Gama.
- Nesse campeonato jogamos contra o Real Salvador, time da Bahia muito forte. A gente suspeitava que havia jogadores com idade acima do limite, de tão fortes que eram. E o Marcelo ficou uns dois minutos com a bola, no fundo do campo, porque a gente estava ganhando. Ele ficou fazendo várias dessas coisas que a gente vê hoje - relembra o primeiro treinador.
- A gente ficou impressionado. Ele ficou com a bola, era caneta, drible, cada coisa que não era comum, e hoje se vê mais. Faziam falta, a bola voltava nele, e aí outra falta e ele fazia tudo de novo. Segurou o placar sozinho contra os grandes. Depois saiu uma confusão por causa disso. Ali ele tinha dado o start na carreira - completa.
Com esse talento bruto em mãos, Gama não teve outra coisa se não montar um time para aquele lateral-esquerdo brincalhão jogar. Não sem uns puxões de orelha.
- Ele era impressionante, super ofensivo, a gente até pegava no pé dele. Mas a habilidade era muito acima da média. Na época, ele já fazia a diagonal e muitos gols decisivos. Fomos só ajustando o posicionamento - analisa.
Dali em diante foi um pulo para Marcelo chegar às seleções de base e estrear no profissional do Fluminense em 2005, aos 17 anos.
O PRIMEIRO 'GUARDIÃO'
Não é porque Marcelo tinha uma vocação clara para atacar que seus treinadores negligenciaram sua necessidade de marcação. Como já disse Alexandre Gama, o lateral era orientado a cuidar da defesa. Isso também aconteceu na chegada ao profissional. Quem comandava o time era Abel Braga, outro que se impressionou com a qualidade do garoto. Mas Abel admite que não fez muito, para não assumir o risco de podar o talento.
- Não precisei trabalhar ele muito, não. Já mostrava aquilo que se procura em um lateral no futebol brasileiro, já era extremamente ofensivo. Sinceramente, não fui eu que trabalhei, foi ele mesmo. No futebol europeu, passou a marcar muito mais, a ter mais responsabilidades defensivas. Esse foi seu maior desenvolvimento lá fora. Não é à toa toda sua representatividade no Real Madrid. Adoro esse cara. É diferente de tudo - afirma Abel Braga, demonstrando todo o carinho pelo atleta.
Mas foi no Flu de Abel que surgiu uma figura que acompanharia Marcelo na carreira, inclusive hoje no Real e na Seleção Brasileira: o guardião, que também pode ser chamado de forma mais simplória de volante de contenção. Ou seja, aquele jogador que faz o "trabalho sujo" para os outros decidirem lá na frente. Como Marcelo, que hoje tem Casemiro como guardião na Seleção e no Real Madrid. No Flu, ele tinha Marcão.
Marcão foi um volante de Marcão foi um volante de grande poder de marcação, e pouca chegada no ataque. Sabia que dependia do talento de Marcelo, com quem formou uma relação meio de pai para filho, já que tinha 33 anos quando o lateral estreou no profissional. Encerrou a carreira em 2011 no Bangu e iniciou trajetória para ser treinador. Chegou até a assumir o Fluminense em 2016 de forma interina, mas foi dispensado do clube no ano seguinte.
- Na época, era o Lenny (atacante) o menino do momento, fazia o gol, estava sempre na mídia, mas a gente sabia que o Marcelo venceria. Porque era uma habilidade... Com responsabilidade, mas alegria. Já era diferente. Chegou um momento que eu falava: "Filho vai, que eu cubro a tua. Vai lá ajudar os meninos da frente. Exatamente como o Casemiro faz hoje - relembra Marcão, companheiro de Marcelo no Flu até o lateral se transferir para o Real Madrid em 2007.
Com Marcão de cão-de-guarda, Abel Braga e os outros treinadores do Fluminense tiveram mais tranquilidade para liberar o futuro melhor lateral-esquerdo do mundo.
- Ele tinha muito potencial. Se não tivesse, não jogaria da maneira como jogou já na estreia. Disse a ele que ele iria jogar aquela partida e ele, absolutamente tranquilo, foi lá e jogou como já vinha treinando, sem preocupação, pressão ou nervosismo - relembra Abel.
No Real Madrid, Marcelo teve diversos guardiões: o argentino Fernando Gago, o francês Diarra, o espanhol Xabi Alonso, o alemão Khedira, o brasileiro Casemiro. Sorte dos merengues, que conquistaram quatro Liga dos Campeões com o lateral, e da Seleção, que tem um talento para dividir a responsabilidade com Neymar.
MARCELO E REAL MADRID: FEITOS UM PARA O OUTRO
Em meados dos anos 2000, o Real Madrid concentrava seus esforços em encontrar um substituto para Roberto Carlos, uma lenda do clube que se encaminhava para encerrar a carreira. Para sorte do Real, foi novamente no Brasil que encontrariam não só a reposição ideal como aquela que colocaria geraria uma dúvida anos mais tarde. Hoje, o torcedor merengue e muitos outros se pergunta: quem foi melhor, Roberto Carlos ou Marcelo? A discussão é complexa, mas fato é que Marcelo nasceu para ser do clube espanhol.
- Fui eu que cantei a pedra para ele, que ele iria para o Real. A gente sabia que o Roberto (Carlos) iria encerrar a carreira, então era uma leitura de mercado que acabou se confirmando. Eles fatalmente viriam para cima do Marcelo - afirma Josué Teixeira, técnico da base do Fluminense que fixou o lateral como titular em 2006.
E vieram. Mas antes vieram muitos outros. Marcelo que não quis. Queria o Real. Mas não eram poucos no Fluminense que queriam uma negociação seja lá para onde fosse. Afinal, a venda do lateral resolveria muitos problemas.
- Surgiu uma proposta da Rússia, e naquele momento resolvia o problema dele (Marcelo), porque estava dando muita grana. Ele já vinha jogando muito bem, resolveria o problema dele e do clube. Funcionários mandavam ele ir embora, todo mundo com salário atrasado, querendo que ele saísse. Em algum momento perguntamos para ele, se estava à vontade. Ele não se sentiu à vontade e não foi, criando mal estar no clube - relembra Marcão.
- O Fluminense queria forçar ele, pelo que soube ele não quis, e aí quando veio o Real, aceitou. E fez muito bem - completa Alexandre Gama.
Foram menos de dois anos no profissional até que chegou o Real Madrid no fim de 2006. E de uma maneira curiosa.
- O empresário ligou pra mim, dizendo que estava na linha com o presidente do Real Madrid, e pedindo para eu passar o telefone para o Marcelo na concentração. Eu levei o telefone para e ele falava só "sim", sim". Depois da ligação, eu perguntei a ele: "E aí, o que aconteceu?" Ele falou: "Não sei, só falei sim". Eu caí na risada. No fim, ele bancou o Real Madrid, bateu o pé para ir - relembra Marcão, que até hoje é muito próximo do lateral.
A VEZ DE TITE
A comissão técnica da Seleção tem total confiança da importância que Marcelo pode ter no ataque e por isso tenta encontrar a melhor maneira de liberar o craque. O camisa 12 é, ao lado de Neymar, a grande liderança técnica do time, sobretudo com a ausência de Daniel Alves. No próximo domingo, contra a Áustria, será o último teste antes da Copa e a tendência é que jogue Philippe Coutinho como meia caindo pela esquerda. Casemiro terá mais trabalho. Mas Marcelo também não liga se tiver de marcar mais do que no Real.
- É diferente porque o Zidane no Real faz um esquema diferente. Na Seleção, o Danilo sobe e eu tenho que fechar pelo meio perto da área, no Real eu vou como ponta, um volante fica, não tem nenhum problema. Na Seleção a tática é outra. Quando vai o lateral-direito eu tenho que fechar no meio. Eu já pego o último homem (na marcação) - afirmou Marcelo, em entrevista em Londres nesta quinta-feira.
Mas Marcelo, lógico, não abre mão de atacar.
- Sei que posso atacar porque vai estar o Thiago Silva, o Casemiro, o Fernandinho, não tem preocupação quanto a isso. Todo mundo sabe o que tem de fazer - disse.
A decisão está nas mãos da comissão técnica. Fernandinho ou Coutinho? Há de se conscientizar o atleta também. O importante é que o talento de Marcelo esteja livre para voar na Rússia. Com ele, dois minutos podem fazer total diferença. Tite sabe disso.