Do Capelinha para a Rússia: a viagem e as táticas do ‘professor’ Fagner
Contestado por suposta deslealdade, lateral gostava de estudar o jogo, e cortou a cidade de São Paulo em um ônibus para brilhar. É o 3º personagem da série 'Homens de Gelo'
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Entre os poucos contestados na lista de 23 convocados do técnico Tite para a Copa do Mundo na Rússia, o lateral-direito Fagner talvez seja o único a ter de lidar com o rótulo de atleta indisciplinado. Quem o critica, muitas vezes se refere como maldoso. Desleal. Não para Tite e seus pares. Na visão da comissão técnica da Seleção Brasileira, Fagner não só não é maldoso, como pode ser considerado um exemplo de disciplina. No caso, a disciplina tática, aspecto que o paulistano de 28 anos aprendeu a cultivar desde cedo, quando ainda cortava a cidade de São Paulo de ponta a ponta para treinar no Corinthians, clube que o revelou. A superação do menino filho de pais separados e sua capacidade de entender as ordens do comandante fizeram de Fagner um dos 23 "Homens de Gelo' de Tite e o terceiro personagem da série produzida pelo LANCE! sobre o grupo que tentará o Hexa a partir do dia 17.
A APROVAÇÃO E O GOL CONTRA O CORINTHIANS: O INÍCIO
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Nascido em São Paulo, Fagner deu os primeiros passos no futebol jogando nos campinhos de terra e quadras do bairro onde morou quando criança na região do Capão Redondo, zona sul da capital, uma das áreas mais carentes da cidade. Como os poucos que vingam no país em que milhões ficam pelo caminho, já mostrava habilidade desde cedo nas peladas com o pai Calixto e o irmão mais velho Fábio. Isso fez com que Calixto o matriculasse em uma escolinha na Vila das Belezas. Lá, encontrou uma pessoa que disse ter conhecimento no Corinthians e poderia conseguir um teste. Fagner tinha nove anos. Começava aí a jornada para tentar realizar o sonho de ser jogador profissional.
No Corinthians, Calixto deu com a porta na cara do Parque São Jorge pelo menos umas quatro vezes. Na quinta, perdeu a paciência.
- Fiquei esperando e, quando o treinador da base saiu, o abordei. Contei a situação e ele disse que não era assim, que tinha de marcar. Então falei que já tinha vindo muitas vezes, saindo do trabalho, de longe, e pedi para ele avaliar o menino. Como insisti, ele disse que não era o correto, mas falou: "Entra aí" - conta o pai de Fagner..
- Era um treino da categoria maior e o técnico disse: "Vou avaliar e falo". Eu nem entrei, fiquei do lado de fora. O Fagner entrou no fim e o técnico me chamou depois e disse: 'Pode trazer todo dia" - completa.
Quem aprovou Fagner foi Edison Rocco, então técnico do time sub-12 e atual supervisor das categorias de base do Corinthians. Edison, 58 anos, não se recorda da insistência de Calixto, mas lembra bem de uma outra passagem que foi determinante para o garoto se tornar jogador do Timão, hoje multicampeão e um dos principais líderes do time. Foi um gol feito por Fagner. Adivinha contra quem? O Corinthians.
Depois de aprovado em meados de 1998, Fagner treinou até o fim do ano, mas acabou fora da lista para disputar um campeonato. Segundo Edison, não houve tempo de inscrevê-lo. Fagner ficou chateado e disse ao pai que não queria mais aquilo. Calixto relutou e, com a anuência do Corinthians levou-o ao Joerg Bruder, um centro educacional em Santo Amaro cujo time de futebol tinha uma certa tradição. Lá, Fagner poderia disputar campeonatos enquanto treinava no Alvinegro. Mais uma dificuldade para conseguir encaixar, até que os responsáveis do Bruder souberam que o menino era do Timão. O garoto foi inscrito e coube ao destino proporcionar o Joerg Bruder x Corinthians que mudaria sua vida.
- Ele queria jogar contra o Corinthians, porque queria mostrar que era bom. Aí se encontraram na semifinal. O jogo foi 2 a 2, Fagner fez um gol e deu um passe para outro. O Corinthians ganhou nos pênaltis. Depois disso, o diretor do Corinthians chamou e falou: "É nosso!" - relembra Calixto, orgulhoso.
Fágner foi peça-chave do esquema do @Corinthians campeão brasileiro e ganhou sua vaga entre os 23 de Tite para vestir a amarelinha na Copa do Mundo ⚽🇧🇷 #GigantesPorNatureza pic.twitter.com/p69vGyt9QA
— CBF Futebol (@CBF_Futebol) 4 de junho de 2018
- A gente fez questão que ele disputasse. Ele não só jogou como fez um gol contra a gente. E acabou sendo decisivo. Foi legal porque premiou um sacrifício enorme que eles faziam, porque moravam muito longe, era uma batalha para chegar na hora do treino - reforça Edison.
O treinador evoca a razão de Fagner ter sido chamado por muito tempo de "Capelinha", uma brincadeira à linha de ônibus que o garoto utilizava para ir aos treinos.
TERMINAL CAPELINHA
Depois do gol que valeu o registro no Corinthians, o pequeno Fagner iniciou as batalhas para conseguir treinar. Ele jogava futsal e campo, portanto precisava estar cedo no Parque São Jorge para as atividades. Sozinho.
- Não vou falar em dificuldade financeira, porque todo mundo tem. A nossa maior dificuldade foi acompanhar ele. A mãe foi embora cedo de casa, então era só eu. E como eu trabalhava, ele passou a ir sozinho para o treino, e nem tinha completado dez anos ainda - relembra Calixto.
O trajeto era longe de ser simples. Do Capão Redondo ao Tatuapé, bairro onde fica o Parque São Jorge, são cerca de 60 quilômetros, distância similar a da capital à Baixada Santista. Todas as madrugadas, Fagner levantava para driblar o frio e chegar aos treinos. Caminhava até o Terminal Capelinha, onde pegava a linha que o levava ao Terminal Bandeira. Mais de uma hora de viagem, a depender do trânsito maluco da maior cidade do país. Descia, e caminhava mais uns minutos até a estação do metrô Anhangabaú, linha 3 vermelha, a mesma da estação Carrão, onde ele descia. Depois, mais uns 15 minutos de caminhada até o clube. Eram cerca de duas horas. Sozinho.
Na volta, Calixto ainda conseguia ir buscar o filho depois da jornada de trabalho, mas nem sempre era possível. Fagner então fazia o mesmo trajeto, agora acompanhado da noite. E da voz do pai, a cada estação até o Capelinha.
- Eu trabalhava na 25 de Março. Na hora que ele estava saindo de casa, me ligava, em cada ponto onde descia até chegar no Corinthians. `À noite, a gente se encontrava no Bandeira e ia embora juntos. Chegávamos mais de meia-noite em casa - afirma Calixto.
A situação ainda se agravou porque Fagner ganhou bolsa de estudos em uma escola particular que tinha convênio com o Corinthians e ficava ao lado do Parque São Jorge. Precisava chegar ainda mais cedo. Sorte que, depois de um tempo, Calixto conseguiu se mudar para o Tatuapé, onde Fagner vive até hoje. Da época de Capelinha, ficaram só as lembranças.
Fala Fagner! 🗣️
— CBF Futebol (@CBF_Futebol) 1 de junho de 2018
Lateral voltou a trabalhar com bola ontem e não conseguiu esconder a alegria: 'É uma felicidade imensa estar com o restante do grupo' #GigantesPorNatureza pic.twitter.com/hJzwCBESVO
O PROFESSORZINHO
Dentre as reminiscências, uma chama a atenção e reza sobre o apreço de Fagner pelos treinamentos, algo exaltado pelos últimos treinadores do Corinthians, de Tite a Fábio Carille. Passou-se quando o lateral já treinava no Timão e jogava bola com os "amigos de prédio" na vizinhança do Capão Redondo. Um certo dia, Calixto recebeu um chamado no condomínio onde o filho se divertia com os colegas. Era a síndica. Fagner tinha aprontado, pensou o pai.
Fagner tinha enchido o condomínio com os amigos da rua para improvisar ali uma escolinha de futebol. Com caneta e papel na mão, fazia todas as anotações de possíveis táticas e treinos, tudo o que aprendia na base do Corinthians. Era um professorzinho, que passava aos demais os ensinamentos dos mestres Edison e cia. Até que a aula teve de ser cancelada por superlotação.
- Tinha amigo e amigo, primo, ficou uns 40 moleques no condomínio. Até que a síndica colocou todo mundo para correr. Ela falou que a atitude dele era bonita, mas não dava. Aí me comprometi a levar os meninos na quadra da escola - conta o pai de Fagner, que hoje em dia é procurado por outros pais no Parque São Jorge na esperança de uma indicação ou qualquer incentivo que seja.
E AS CRÍTICAS?
Calixto diz que ficava muito chateado quando ouvia o filho sendo chamado de maldoso, mas já se acostumou com isso e lembra de um período em que Fagner era criticado por, segundo ele, "ser mole demais".
- Nem cartão amarelo tomava! Era criticado. Aí resolveu jogar mais duro, lá pelos seus 19 anos, 20 anos. Falam que o Fagner é violento, mas ele nunca deu ninguém sem bola. Ele tem divididas fortes, pode até atingir alguém, mas sempre com a bola. As críticas fazem parte, você absorve. Mas no começo falavam para eu tirá-lo do futebol pela estatura - afirma.
- Ele tem o coração bom, nunca pensou em prejudicar ninguém - completa.
Edison concorda que o biotipo físico influenciou na forma de jogo do lateral do Corinthians.
- Dos 12 aos 14 anos, ele não fugia da luta, da briga. Sempre teve a característica de marcar. Mas fisicamente era um dos menores, com o Everton Ribeiro (meia do Flamengo). Ele deve ter tido dificuldade nas categorias maiores, até porque era uma época de sistema de jogo muito de força física, então teve de ir se adaptando - analisa.
Fato é que o estilo de Fagner conquistou Tite, responsável por permitir que o menino do Capelinha alçasse voo para a Rússia. Lá, o lateral poderá provar que as viagens da infância lhe renderam mais frieza do que cartões.
A NOVA GERAÇÃO
Enquanto Fagner está prestes a realizar o sonho de todo jogador com a disputa do Mundial, um novo membro da família começa a seguir os passos do pai. Henrique é o filho mais velho do lateral, tem nove anos e já joga futsal no Corinthians. É presença constantes no treino do profissional e impressiona pela habilidade com os pés. Empolga ainda mais o avô Calixto, mas muita calma nessa hora. Quem passou por tanta dificuldade sabe que há muitos quilômetros a percorrer até a realização do sonho.
- O Henrique é a cópia autenticada do Fagner, ele gosta de jogar. Está treinando salão, de terça e quinta, eu que levo, e sábado ele joga. Muito prematuro para falar alguma coisa, futebol tem uma série de barreiras, não é só saber jogar. Conheço muita gente que era candidato a craque e não vingou. Falo para os colegas que têm filho jogando, tem de ter pés no chão. Não quero atropelar as coisas - analisa, sobre o neto.
Henrique, ao menos, tem a sorte de não precisar cruzar a cidade no terminal Capelinha, graças ao esforço do pai.
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