Tá na Rússia – Uma noite em um hospício na cidade de Saransk

Sem hotel vago em Saransk, o jeito foi apostar num sanatório no qual camareiras e ajudantes se vestem como enfermeiras e pacientes e coisas estranhas rolam na madrugada

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Saransk ( ao pé da letra, Saranski, mas convencionou sem o i). É a cidade da Arena Mordóvia, palco de Portugal x Irã, nesta segunda-feira, pela Copa e a  menor das cidades-sede do Mundial da Rússia. Tem apenas 300 mil habitantes e, apesar de contar com bons hotéis de redes famosas, a rede hoteleira é reduzidíssima. Assim, torcedores e jornalistas que cobrem as seleções que jogam por aqui reservaram quase todos os quartos com antecedência. E ainda rolou uma parada extra: o fim de semana é da festa dos formandos pelo fim das aulas das escolas secundárias. Isso na Rússia é motivo de grande celebração. Ou seja: muitos parentes dos formandos engrossam o volume de hóspedes na cidade.

A hospedagem particular, AirBNB, era uma opção, mas, em cima do jogo, os preços estavam pela hora da morte. Felizmente num site de buscas havia um tal Sanatorium Saranskyi, cotado com três estrelas, localização boa, hall principal bem bacana na foto e de fácil acesso, o ponto final da segunda principal linha de ônibus da cidade. Ex-hospital modernizado e transformado em hotel na Copa e com algumas vagas. Apostei nele.

Capitulo 2

Não era tão perto. Ficava quase no limite da cidade. Cheguei lá no início da noite (em Saransk, diferentemente de São Petersburgo, a noite é escura no verão). Um breu. A entrada também pouco iluminada, exceto por um letreiro verde. Dois homens fumavam. A recepção, com duas moças animadas e uma delas , Iyulia, falava inglês. Tinha também uma senhora, que parecia a dona, só falava russo; e tinha um auxiliar, vestido como se fosse paciente de um hospital.

No que cheguei, o tal que parecia paciente, em inglês razoável, me traduziu o que a dona dizia em russo e o gelo foi quebrado. Seu nome: Zheno.

- O senhor deixa a documentação (passaporte e credencial) aqui e eu vou mostrar seu quarto. Se gostar, você desce e paga – disse.

Isso já não é normal. Mas vamos lá, Mordóvia é república da Rússia, aqui as coisas podem ser diferentes. Peguei o elevador, sempre com Zheno do lado. Elevador de hospital, desses em que cabe maca. Enorme. E com duas portas de correr, não automáticas. Mais parecia um cofre. Vi como ele abriu aquele troço e tentei repetir o que o cara fez para aprender. Logo fui repreendido:

- Somente eu mexo no elevador, tem de me chamar sempre.

Fomos até o segundo andar. Tudo escuro. Zheno me pede para segui-lo, liga a lanterna do celular e vou atrás, como num filme de espionagem. Corredor sem fim. Cerca de 100m e ele chega a um quartinho, mexe aqui e ali e liga as luzes do corredor. Depois de tudo isso, voltamos, pois o meu quarto era colado ao tal elevador .

A porta é um sufoco para abrir e quando Zheno tenta ligar a luz, nada acontece. O jeito é tentar o quarto ao lado. Bingo. A luz funciona. O quarto é gigantesco, um pé direito enorme com duas caminhas e uma pia, sem banheiro. Estilo hostel. Para fazer graça dei um alô bem alto e fez um tremendo eco. Zheno riu. Tentei falar que parecia uma gruta, mas não sabia como era gruta em inglês. deixei pra lá.

- Vou te mostrar o vestiário de banho, só temos um e é compartilhado – disse Zheno, me levando para o outro lado do andar. Interminável. E às escuras. Mais uma vez ele liga interruptores, acende aquele setor do prédio e mostra o local de banho e uma outra porta, o lugar dos sanitários.

Com a luz ligada, vi que tinha  várias entradas com portinhas bem pequenas, uma ao lado da outra, dessas que o Ronaldo Fenômeno com o seu peso de hoje teria dificuldade para passar. Pareciam solitárias. Perguntei o que era.

- Não mexe aí, não pode – disse Zheno, resmungando algo em russo.

Tentei dar uma gorjeta, já que ele foi solícito. Se enfureceu. Esqueci que muitos russos não gostam de receber gorjetas. Mas ele assimilou, sou gringo. 

Desci para fechar a estadia. Depois de meia hora, em que assinei nove papéis diferentes e tentei entender por que o café da manhã era mais caro do que a diária (nada exorbitante, a diária dava 1/3 de um hotel mediano em Moscou), voltei ao quarto, me troquei peguei a toalha (quase de rosto) e fui tomar meu banho quase 200m do meu quarto.  Não passava uma viva alma.

Relaxava na ducha quando comecei a perceber que o chão estava muito quente. Parecia um ferro ligado. Nu e pulando igual a um macaco fechei o chuveiro, saí do recinto e tentei entender o que se passava. Mas perguntar para quem? Parecia que eu era o único hóspede por ali.

Voltei para o quarto. Sem TV, mas com wi-fi voando baixo para o computador. Bati um material para o site do L! e fui dormir, aproveitar aquela escuridão total e silêncio extremo, do jeito que eu gosto, mas tenho de admitir, assusta os mais sensíveis. 

Capitulo 3

Roncava gostoso há algum tempo quando, de repente, escuto um barulho que parecia de bolas de sinuca. Pausa. De novo bolas de sinuca. Pausa mais longa. Olho no relógio do celular. Uma da manhã. Quando estou para pegar no sono de novo, naquele breu todo, um piano começa a ser tocado por um péssimo pianista. Dedilhava o tema do filme "Poderoso Chefão". Definitivamente imaginei que a ala do outro lado, que estava fechada quando cheguei, era para pacientes e devia ter sido aberta, pois comecei a escutar pessoas conversando como se fosse a hora de almoço.

E mais gente chegava. E a sinuca começou a rolar solta. Não quis abrir a porta para ver o que era. Lá pelas duas e meia, parou tudo. Não se escutava um pio mais. Sem sono, abro a porta e tudo vazio. Desço – pela escada - para comprar um refrigerante. As recepcionistas e Zheno conversam animadamente com dois policiais e, quando me veem, fecham a cara. As meninas saem, os policiais me fitam com ar de reprovação. Reparo se por acaso meu zíper da calça estava aberto ou não, ou qualquer outra coisa fora da ordem porque aquilo, definitivamente não era normal.  Zheno falava grosso comigo e em russo, não entendia patavinas. Pedi a Coca, a dona me entregou e voltei pra o quarto. Já batia perto de 3h da manhã e nessa hora na Rússia o céu já está claro. Dormi.

Capítulo 4

Acordei às 9h de sobressalto. Afinal, duas mulheres esmurravam a porta do meu quarto pra valer. Com o eco, parecia que alguém tinha invadido a Mordávia. Levantei para abrir, mas elas foram mais rápidas e usaram as suas chaves. Estavam vestidas como enfermeiras. Dava até pra pensar: devem achar que sou paciente e vão me imobilizar.  Me olharam e deram meia volta, já que me pegaram como vim ao mundo. Deu para entender uma unica coisa: breakfast (café da manhã).

Me arrumei como deu e fui para o tal café da manhã. No salão, uns 12 hóspedes, quase todos em duplas, casais ou não, e uma família com três membros. A enfermeira do setor me mandou sentar com cara séria e apontando para uma mesa e reclamando do meu horário (o café se encerrava às 9h30).

Em 30 segundos entendi o porquê de o café ser meio caro para os padrões da Mordóvia (onde o ônibus custa R$ 0,90 e uma Copa R$ 2). Ela foi chegando e colocando omelete, panqueca, queijo, cesta de pão, uma broa gigante, um pacote de algo parecido com rocambole, um bisnagão, garrafa térmica com chá e o açúcar que eles têm na Rússia, em cubinhos. Detalhe: normalmente o meu café da manhã há 30 anos se resume a um dedo de chá ou café. Não tenho a menor fome cedo.

No que eu devolvi o rocambole a senhora me fuzilou com os olhos. Por via das dúvidas fui colocando o restante do oferecido na mochila para não acabar apanhando. Russo falando grosso na língua deles - pode até ser criança - assusta.

Saindo de lá fui até a recepção, pois já tinha de sair para o trabalho. Quase caí duro: o mesmo pessoal que me recepcionou 12 horas antes estava por ali e numa animação total. E, definitivamente, Zheno usava mesmo roupa de paciente.

Fui ate Iulya, a menina que falava inglês, e comecei a perguntar ,na boa:

- Isso aqui ainda é um sanatório com paciente de um lado e hostel do outro?

- Não é mais sanatório e hospital. Aqui agora é um hostel  e  também um SPA muito conceituado e premiadíssimo. Temos toda a infraestrutura de massagens, banhos, relaxamento, mas fica numa  outra ala. Olha os preços - disse, me mostrando um menu. Um banho de sais custava R$100 - era o que tinha de mais caro, tem também uma parada com uso de sanguessugas... (NR: tem um vídeo do local, se estiver curioso, https://www.youtube.com/watch?v=dzdXxAlk7bU).

P - Fui tomar banho e quase virei uma fritada, pois o chão fervia....

R - O banheiro fica em cima da calefação e do outro lado da porta é a sauna Temos um problema de aquecimento. Nos desculpe.

P - O pessoal ficava tocando piano de madrugada, jogando sinuca...

R - Seu quarto ficou perto da área de lazer. Foi um erro. Quer que eu troque para um mais afastado?

P - De noite fui comprar um refrigerante e parecia que estava fazendo algo proibido.

R - Nos assustamos. Três da manhã e você desceu correndo. 

P -  E aquelas salinhas perto do banheiro, uma 50...

R - Hoje servem de consultório ou depósito e alguns são para as massagens.

P - Por que as recepcionistas usam roupas de enfermeira?

R - Aqui é um SPA. Tem mais gente que vem aqui para tratamento do que hóspedes. É roupa de hospital.

P - Zheno é um paciente?

Nessa hora ela riu e comentou qualquer coisa com  Zheno, que soltou uma risada. Na verdade, ele é porteiro, camareiro e faxineiro. Ok, roupa de faxina.  No fim das contas, como em toda a Rússia, muitos risos, ninguém entendendo direito ninguém, eu usando o google tradutor para falar com a funcionária que só falava russo e também com a "dona" (na verdade era uma gerente.

No fim das contas, aquela impressão de chegar num lugar afastado, com ruas mal iluminada (é comum na Rússia, aqui é seguro o suficiente para ninguém ter medo de ser assaltado na escuridão), acabou, pois o local é muito limpo, quem gosta de café da manhã robusto ficará muito feliz,  e tem de relevar não ter banheiro ou sanitário no quarto. Mas uma dica caso alguém um dia se aventure por lá: faça o check-in durante o dia.

Final

Bem, era apenas uma noite. Não deu para descansar muito, mas valeu pelo inusitado. Não é sempre que alguém passa uma madrugada num hospício russo e sai direto para ver o treino do Cristiano Ronaldo numa cidade muito bonita, mas afastada de tudo e que nem o celular pega muito bem. 

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