O Brasil é dito como o país do futebol, mas as autoridades não parecem muito preocupadas em preservar essa cultura que nos fez ser o único país pentacampeão mundial. Se não há apoio de quem deveria prover o lazer e o esporte a quem gostaria de praticar, a sociedade civil trata de tentar suprir essa lacuna com projetos que possam incluir crianças que não têm condições de pagar por seu desejo de 'aprender' a jogar bola.
Uma dessas organizações que nascem para tentar difundir o esporte no cotidiano de meninos e meninas é o Clube Pequeninos do Meio Ambiente, que há 23 anos reúne crianças e adolescentes que buscam o futebol como lazer ou até mesmo profissão. Foi nesse projeto, que utiliza o campo de um presídio em São Paulo para os treinamentos, que Gabriel Jesus começou a brilhar e conseguiu chegar ao posto de titular da Seleção Brasileira em uma Copa do Mundo.
Wilson Cabral, conhecido como Vasco, é presidente do clube e um dos cinco fundadores do projeto. Em conjunto com outros pais, levavam seus filhos para jogar bola Clube Atlético Sivicultura, no Horto Florestal, bairro da capital paulista, e que acabaram ficando sem local para a prática depois de um problema com a diretoria do clube.
- A ideia começou a partir do problema que tivemos no Horto Florestal. De lá fomos para o Presídio Romão Gomes, onde estamos até hoje. Sempre trabalhamos com crianças, de oito até 17 anos. Nós não temos a diferenciação se é criança carente ou não. Quem quiser jogar futebol, a gente acolhe e começa o trabalho. Nunca cobramos, sempre tudo gratuito. Nosso intuito foi fazer algo para tirar a molecada da rua, porque aqui na região, desde aquela época, dificilmente você tinha alguma coisa grátis. Então muitas crianças ficavam sem poder praticar um esporte, porque muitos pais não podiam pagar. Por isso tudo decidimos fazer esse trabalho gratuitamente - declarou Vasco, em entrevista ao LANCE!.
Os outros membros fundadores do clube são Carlos Alberto de Britto, diretor financeiro, Maria Francisco Botelho Pereira, diretora de eventos, Daniel Laurentino e José Francisco Taha, conhecido como Mamede, diretor de esportes e o treinador de Jesus. É deles que boa parte dos recursos para o funcionamento do projeto.
- Não tivemos apoio financeiro, sempre saiu do meu bolso, ou do bolso dos diretores. A gente fala diretor, mas na verdade era um grupo de amigos. Eu como presidente, um vice-presidente, um diretor de esportes e um financeiro. Só de nome mesmo, mas era aquele grupinho que tocava o trabalho juntos, sem cobrar. Às vezes a gente pedia, quando ia jogar fora, porque precisava alugar um ônibus, aí a gente pedia uma colaboração simbólica dos pais, mas quem não pudesse, a gente sempre dava um jeito, o importante era a criança estar junto naquele grupo - contou.
Se o apoio financeiro praticamente não existe, o Pequeninos conta há algum tempo com o patrocínio de um Hipermercado, que fornece os uniformes e um lanche após o treino de sábado dos garotos, no último mês outras empresas começaram a colaborar com o projeto, algo que ajuda a sobrevivência do clube.
- Nós temos o Hipermercado Andorinha, que fornece os uniformes para a gente já faz uns 20 anos, também fornece o pão com mortadela, e refrigerante. Todo sábado eles me mandam 180 lanches, que quando acaba o jogo, o garotinho come um e vai embora. E tem muitos que vão lá só para comer o lanche, vai lá sabendo que vai ter aquele pão com mortadela. A gente acaba levando a marca deles para todos os lugares que a gente vai jogar - explicou Vasco.
O projeto, no entanto, precisou passar por alguns ajustes nos últimos tempos. Isso porque o campo do presídio Romão Gomes, local dos treinamentos, passou a limitar as atividades do Pequeninos, que agora acontecem apenas aos sábados em dois locais distintos, sendo que um deles é pago. Dessa forma, é preciso fazer um rateio para arrecadar o valor necessário.
- Acredito que temos mais de 300 crianças, porque no sábado não vão todos, só os que estão nos campeonatos. Nós fazemos o treino de segunda, quarta e sexta, mas nós tivemos que interromper por uma coisa que aconteceu no campo do Romão Gomes, tivemos uns problemas. É um presídio, não pode entrar todo mundo toda hora, tem uma burocracia. Neste momento nós treinamos só de sábado durante o dia, em dois campos: um que a gente aluga na Vila Albertina, que a gente paga R$ 650 por mês e o outro no Romão Gomes, para onde conseguimos voltar. A ideia é retomar os treinamentos durante a semana, porque algumas crianças não podem vir no sábado, mas não faríamos no Romão Gomes, seria no CDM Vila Albertina, porque lá daria para fazer durante a semana à noite. Lá é pago, cada técnico de cada categoria tenta arrecadar cinco ou dez reais dos pais dos atletas para poder pagar essa locação - afirmou o presidente antes de detalhar algumas necessidades do projeto:
- Às vezes um garoto precisa de uma chuteira, a gente precisa ir atrás. Aí um menino que cresceu tem uma chuteira mais apertada, ele passa para a gente e a gente repassa para aquele, mas a gente gostaria muito que alguém pudesse fornecer bolas, coletes. A gente não pede para nós, a gente pede pelas crianças. E não é dinheiro que a gente pede, a gente quer uma coisa boa para eles, um conforto.
A passagem de Gabriel Jesus pelo Pequeninos do Meio Ambiente
Gabriel Jesus estreou pelo Palmeiras como profissional em 2015, no mesmo ano foi campeão da Copa do Brasil e na temporada seguinte levantou a taça do Brasileirão, quando já estava negociado com o Manchester City e havia conquistado o ouro olímpico. Lá na Inglaterra terminou 2017/2018 com dois títulos nacionais e a titularidade na Seleção Brasileira de Tite.
Uma trajetória relâmpago para um garoto de apenas 21 anos, que em 2014 pintava sua rua ao lado de amigos para torcer pelo Brasil na Copa. Mas nada disso surpreende Vasco, que não poupa elogios ao seu pupilo mais famoso.
- Esse menino sempre foi diferenciado mesmo. Quando ele chegou lá tinha oito anos, vinha do Jardim Peri, vinha a pé, porque não tinha ônibus que passava ali na região do Romão Gomes. Vinha ele, o Fabinho e o Igor, esses dois foram para a Inglaterra junto com ele. Quando ele chegou, ele era fraldinha ainda, já dava para ver que ele era e é diferente - relembrou Wilson, antes de completar:
- Quando nós vimos, já colocamos ele no time. Nos primeiros treinos nós já falamos “vamos separar para colocar no time”. O Gabrielzinho era sem medo. Ele nunca teve medo mesmo. Você vê que aquela carinha dele, mas não é de medo, ele ficava muito bravo quando não conseguia sair da marcação dos adversários.
O menino do Jardim Peri sempre foi abusado e nunca teve medo de qualquer adversário, fosse ele maior, menor, pior ou melhor. O futebol era uma diversão, como parece continuar sendo para o camisa 9 da Seleção. No entanto, naquela época Gabriel era conhecido por um apelido peculiar.
- Quando ele chegou nos campeonatos que a gente ia jogar fora, ele dizia “vai ser mó teta”, “vai ser muito fácil, vou fazer uns três ou quatro” e fazia mesmo. Aí começamos a chama-lo de “Tetinha”. Ele era sempre muito divertido, sempre sorrindo, brincando, cutucando alguém, sempre foi assim.
A passagem de Jesus pelo Pequeninos terminou quando ele fez 14 anos, já que naquela época era a idade máxima que o projeto mantinha uma categoria, no entanto o futuro do garoto já estava traçado e não demorou muito para chegar ao Palmeiras, em 2013. Para Vasco, tudo o que ocorreu na carreira de "Tetinha" é merecido.
- Ele ficou dos oito aos 14 anos, porque naquela época a gente não trabalhava com categorias maiores, só até os 14 mesmo, que foi quando ele encerrou o ciclo dele aqui e foi embora. No meio do caminho alguém viu, pegou ele e ele seguiu carreira, mas ele sempre foi diferenciado. Sempre foi muito cabeça boa, a mãe sempre se dedicando muito, ela não podia acompanhar, mas ele ia com mais dois amiguinhos, vinha lá de longe, todos eles de boa índole, sempre foram - concluiu.
Confira a entrevista completa com Wilson Cabral, o Vasco, presidente do Pequeninos do Meio Ambiente
Além do Gabriel Jesus, vocês revelaram mais garotos para o futebol brasileiro?
O Gabriel Xavier, que começou com a gente, foi para o São Paulo, depois foi para o Cruzeiro, e agora está na Ásia. Tivemos o Matheus Pereira, que era do Corinthians, e o Pedrinho, agora, que está no Oeste e que o próprio Corinthians teve interesse. Isso é só uma consequência do trabalho. Se destacou, alguém se interessou? Pode levar, o que importa é o menino ter um futuro.
Tem alguma história em que houve mudança de vida dos garotos após o projeto?
Dois deles, não sei te precisar o ano, com ajuda do Badeco, que jogou na Portuguesa e é delegado federal aposentado, foram para os EUA, ficaram por lá muitos anos e foi o Badeco que ajudou a fazer a documentação, o passaporte. Tinha um pai que ajudou no pagamento para os dois meninos irem. Eles já voltaram para o Brasil, moram aqui na região, um deles fala inglês fluente, mas o outro não. Sempre um se destaca mais. Para você ter uma ideia, um desses meninos era um garoto respondão, você falava como ele e ele não queria obedecer, no fim ele viajou e hoje é um professor de inglês. Esse era para ser um cara que iria dar problemas.
Vocês parecem ter uma relação muito boa com os meninos. Como esse laço é criado?
Essas crianças são tão pequenas quando chegam para nós, com oito anos, às vezes os pais nem sabem quem somos. A gente pega esses meninos, coloca no carro, vai jogar lá longe, às vezes os pais nem sabem para onde foi, com quem foi. A gente tem esse cuidado de ter as pessoas que trabalham com a gente de serem pais ou amigos muito íntimos nossos, para que não tenhamos problemas com outras coisas. Às vezes, aqui na rua, passa alguém e fala “O Vasco”, aí já sei que é um algum menino do projeto, pois me chamam de Vasco por lá. Algumas vezes eu não sei quem são, porque cresceram, já são homens, mas passam muitos por aqui cumprimentado e é uma satisfação muito grande. Alguns meninos que foram nossos jogadores, hoje levam filhos para treinar com a gente. Meu filho, por exemplo, é técnico de uma das categorias. Ele começou lá de baixo e hoje ele faz parte como técnico.
São quantas categorias na escolinha?
Nós temos sete categorias: sub-8, o sub-9 e o sub-10 jogam juntos, que a gente dá o nome de chute inicial, eles ficam lá das 7h às 8h todo sábado. Depois do sub-11 ao sub-17 são os meninos que a gente já tem campeonatos para disputar. Inclusive estamos tendo uma briga com os meninos, porque a gente está querendo criar uma categoria feminina. Eles reclamam que não tem horário, aí a gente acaba tirando um pouquinho do tempo deles e eles ficam muito bravos. São sete categorias mais a das meninas de qualquer idade, a gente está querendo formar e algumas já se sobressaem, outras não sabem jogar muito bem ainda, mas completam as 22. O importante é participar.
Houve algum caso em que o garoto acabou seguindo por um outro caminho?
A gente está falando do Gabriel, mas nós tivemos perdas muito grandes, como um garoto que jogava muita bola mesmo, mas acabou se envolvendo com as drogas, tentou fazer roubos... Se tivesse seguido aqui com a gente, seria um Gabriel, com certeza. Nós não tivemos só alegrias, tivemos muitas tristezas também. A gente cobra muito aqui, bom de bola é bom de escola. Se o garoto não estiver estudando, sinto muito, ou a gente tenta fazer um documento recomendando que ela estude, ou a gente chama os pais para conversar, que é algo que a gente faz muito aqui. A gente cobra muito, por isso que talvez a gente esteja há tanto tempo com o projeto, e os meninos acabam vindo para o nosso lado, porque eles sabem que a gente quer o bem deles.