Retomada de nacionalismo, rivalidade aflorada e muita expectativa estarão em campo nesta terça-feira (29), no Estádio Ahmad Bin Ali, às 16h (de Brasília). País de Gales deposita suas últimas fichas para continuar a sonhar na Copa do Mundo de 2022 contra a Inglaterra, que lidera o Grupo B com quatro pontos. O clássico do Reino Unido, inédito na história dos Mundiais, acontece em um momento que vale sonhos além da bola.
REINO UNIDO COM SUAS PECULIARIEDADES
A configuração do Reino Unido e seus desdobramentos atuais deram margem para o surgimento do nacionalismo galês. Professor de História da Uerj e da UFF, Marcus Dezemone explica:
- Este confronto na Copa do Mundo acontece em um contexto muito peculiar. Após a morte da Rainha Elizabeth II, houve uma retomada de um certo nacionalismo galês. A seleção galesa acabou ganhando um papel muito importante nisso - disse ao LANCE!.
O primeiro momento aconteceu em setembro deste ano, em Cardiff. O Rei Charles III visitou o País de Gales e houve protestos contra a continuidade da família real no poder.
- Quem ocupa o trono do Reino Unido anteriormente teve o posto de príncipe de Gales. Foi o que aconteceu recentemente: o príncipe Charles herdou a coroa e passou a ter o título de Rei Charles III. Atualmente, William, filho de Charles e Diana, é o príncipe de Gales - disse.
O Reino Unido começou a ser constituído no século XIII. O destino de ingleses com galeses se cruzou neste momento. A Inglaterra conquistou o território do País de Gales em 1277, com o Rei Eduardo I. Porém, apenas em 1536 houve o decreto de união entre os países.
Em 1707, um Tratado de União uniu Inglaterra e País de Gales à Escócia. Já em 1801, um Ato de União estabeleceu que a região seria formada pela Grã-Bretanha e Irlanda. Após a divisão da Irlanda, o Tratado Anglo-Irlandês de 1922 sacramentou o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Este panorama impõe algumas condições aos galeses (e, mais tarde, também aos escoceses).
- País de Gales tem autonomia, mas não tem independência. Embora tenha aval para um primeiro-ministro próprio (País de Gales tem Mark Drakeford no cargo), a atuação dele é subordinada aos interesses do parlamento britânico. Não há uma independência, apenas uma autonomia para resolver suas questões locais. Todos estão sob a mesma autoridade politica, o Rei Charles III e o primeiro-ministro da Inglaterra, Rishi Sunak, recentemente no cargo (desde 25 de outubro) - disse Marcus Dezemone.
O historiador ainda apontou outros fatores que mostram esta integração.
- A moeda é a mesma de todo o Reino Unido, a libra. As economias são completamente integradas. País de Gales é uma região importante de mineração, local de muitas indústrias siderúrgicas. Mas de certa forma há uma hierarquia da Inglaterra - disse.
O PRÍNCIPE DE GALES VAI TORCER... PELA INGLATERRA?
A atual situação do Reino Unido rendeu uma situação curiosa às vésperas da Copa do Mundo do Qatar. Com a seleção galesa de volta ao Mundial após 64 anos, o príncipe de Gales teve de manifestar pela primeira vez por qual seleção iria torcer.
Em entrevista divulgada pela France Presse, o Príncipe William afirmou:
- Torço pela Inglaterra desde que era muito novo, mas torço para País de Gales no rúgbi. Digo a todos que torço para as duas - frisou.
O professor de História da Uerj e da UFF Marcus Dezemone vê, neste contexto, os ingleses se sobressaindo aos demais países do Reino Unido.
- Por mais que a Inglaterra diga que tem uma relação entre iguais com País de Gales e Escócia, há uma certa dominação britânica. O príncipe de Gales é o herdeiro presuntivo do trono, próximo da linha sucessória do reino. A autoridade é imposta aos galeses - disse.
PAÍS DE GALES: SELEÇÃO QUE RETOMA ORIGENS
O desejo dos galeses retornarem às origens contou com um apoio e tanto.
- Hoje, o nacionalismo vem sendo retomado no País de Gales. A seleção de futebol tem um papel importante nisso, com os jogadores cantando o hino do país na língua galesa, por exemplo - detalhou o professor Marcus Dezemone.
A Federação Galesa de Futebol (FAW) tomou outra iniciativa emblemática neste regresso à Copa do Mundo, feito que não acontecia desde 1958.
Os jogadores da seleção usam em seus casacos o nome "Cymru", a tradução de "Wales" para o dialeto galês. Após o Mundial, o desejo da Federação é o reconhecimento da grafia como original pela Fifa e pela Uefa.
À época, o presidente da Federação Galesa, Noel Mooney, disse que a mudança tinha o intuito de conseguir um reconhecimento internacional.
- Há um renascimento da língua galesa e um sentimento de grande orgulho no que fazemos com a cultura e o patrimônio - afirmou ao "The Sun".
As redes sociais galesas também trazem o nome "Cymru". Além disto, há palavras no dialeto galês.
Marcus Dezemone fez a ressalva de que este resgate linguístico ainda é desafiador.
- Atualmente, 70% dos galeses não falam o idioma, que é muito difícil, e usam a língua inglesa. Apenas 30% dos habitantes falam o dialeto galês - disse.
O historiador traz sua opinião em relação ao que está em jogo nesta terça-feira (29).
- O jogo representa muito para o nacionalismo galês, embora uma separação seja menos provável no momento. Há movimentos nacionalistas, mas não chegam a ser separatistas - projetou.
Aos seus olhos, o clássico do Reino Unido ganha outros contornos.
- Um jogo como esse tem muito significado para o País de Gales. A Copa do Mundo já é uma competição de muita entrega por parte dos jogadores. Espero uma partida de superação pelos galeses. Caso vençam, serão muito exaltados em território galês, em especial pelos grupos nacionalistas locais - disse.
Em campo, há um grande desafio para a seleção de Gareth Bale. Os galeses amargaram derrotas nos dois confrontos das Eliminatórias da Copa do Mundo 2005, eliminação na classificatória para a Euro em 2012 e um revés na Eurocopa de 2016.
Na partida mais recente, disputada na França, o English Team venceu por 2 a 1, com gols de Vardy e Sturridge. Bale marcou para o País de Gales.
O sonho de ser soberano no gramado fica cada vez mais forte neste duelo britânico do Grupo B.