- Ele tinha tendência a ser gordinho e baixinho.
Quem ouve isso hoje não é capaz de imaginar que se trata de uma referência a Alisson, o goleiro de 1,93m, titular da Seleção Brasileira que disputará a Copa do Mundo na Rússia e, neste domingo, às 11h (de Brasília), encara a Croácia em Liverpool. Tampouco sabe que essa característica de infância poderia ter impedido o garoto de manter a sina da família de goleiros oriunda de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. Hoje, Alisson é um dos 23 "Homens de Gelo" de Tite e abre a série produzida pelo LANCE!. Mas por pouco não foi diferente.
Autor da frase acima, Daniel Pavan trabalhou para Alisson não escapar da base do Internacional, na qual Muriel, o irmão mais velho, já despontava. Pavan era preparador de goleiros da equipe sub-13 em 2006 e presenciou o incômodo dos pais Becker com a forma como o mais novo era utilizado.
- Quando ele tinha 13 anos a gente já enxergava essa qualidade técnica dele, que era diferenciada. Mas fisicamente não era menino maturado, era mais baixinho que os outros, e muitas vezes, por causa disso, os treinadores acabavam tirando-o de alguns jogos. Nesse momento, os pais dele queriam tirá-lo do futebol. E falaram isso para mim um dia, porque ele estava na reserva. E eu que tive de convencê-los de que não tinha que fazer assim. expliquei a eles que ele ia evoluir, crescer bastante - conta Pavan, com orgulho.
- Um ano e meio depois, deu um estirão de 1,90m na sub-15 e a partir daí não parou de evoluir. Logo depois, aos 16 anos, começou a namorar a mãe do filho dele hoje. Saiu um homem - completa.
Pavan interferiu porque enxergou em Alisson a frieza peculiar dos grandes goleiros e marca dos profissionais formados no Inter, inclusive Taffarel, atual preparador da Seleção. A aposta deu certo e a trajetória deles acabou se confundindo dentro do clube. Passagem por todas as categorias até que no fim de 2014, o preparador foi convidado para comandar o profissional. Foi o ano de estreia de Alisson no time de cima. No ano seguinte, se firmou como titular, virou capitão, ganhou títulos e só saiu para a Europa. O gelo não tinha derretido.
- Nas duas semifinais da Libertadores em 2015, contra o Tigres, ele fez jogos excepcionais e depois eu falei que ali ele estava pronto, aos 22 anos. A estreia tinha sido contra o Fluminense, depois de a gente levar 5 a 0 da Chapecoense. O Dida tinha sido expulso, uma puta pressão! E a gente segurou aquele jogo. Ele não saiu mais - relembra o preparador.
Pavan e Alisson formaram uma relação para além das quatro linhas, mantida até hoje. Tanto que, no ano passado, o goleiro da Roma (ITA) procurou o mentor para fazer uma carga de treinos extras durante uma passagem pelo Brasil. Conversam praticamente todos os dias. Uma breve passagem pelas redes sociais dos dois é suficiente para comprovar o grau de intimidade. O preparador é uma autoridade, talvez a maior, para se falar do goleiro da Seleção.
Foi ele quem, em agosto de 2015, deu ao pupilo a notícia de sua primeira convocação para a Seleção. Alisson foi chamado pelo técnico Dunga para os amistosos contra Costa Rica e Estados Unidos, os últimos antes das Eliminatórias para a Copa, Mas o arqueiro não parecia muito esperar...
- Eu tinha a expectativa de ele ir para a Seleção, vinha muito bem no Inter, falava-se da convocação dele. Então fiquei esperando, acordei cedo, liguei a TV, e quando saiu o nome dele, foi uma festa bem grande. Daí liguei para ele e ele estava dormindo. Atendeu com aquela voz de sono. Falei: "E aí, está dormindo? O goleiro da Seleção dormindo?" A gente riu e sempre ri disso juntos (risos).
Mês passado, veio a convocação para a Copa, já com Tite. Alisson estava na lista e desta vez acordado.
A FRIEZA EM PESSOA
Não foi só ao preparador-parceiro que Alisson impressionou cedo. Ele chegou ao profissional em 2012, quando o time era dirigido pelo técnico Dorival Júnior. Tinha 19 anos. O preparador de goleiros era Marquinhos Trocourt, velho conhecido no Inter e atualmente no São Paulo. Nas conversas da comissão técnica, uma certeza:
- A gente brincava sempre que ele seria o grande goleiro do Internacional. Esse garoto é impressionante, vai passar na frente de todo mundo. Ele lembra muito o Taffarel - afirma Dorival Júnior.
- A gente já sabia que esse era uma questão de tempo. Eu só falava para ele: "Não se preocupa muito em jogar no profissional logo" - corrobora Marquinhos.
Alisson de fato passou na frente de todo mundo: Agenor, Renan, Dida e o próprio irmão Muriel. Mas não foi exatamente no tempo que ele desejava, apesar dos conselhos dos mais velhos. Dorival e Trocourt deixaram o time ainda em 2012 e a estreia se deu em 2014 com Dunga, que depois seria o responsável por levá-lo à Seleção. Se fosse por Alisson...
- Ele sempre chamou atenção pela personalidade forte. Quando chegou ao profissional, eu dizia que ele era novo, falava que tinha muito que aprender ainda, e ele sempre dizia que iria jogar muito cedo, que não iria ficar esperando muito tempo. Inclusive, com 21 anos, já foi capitão do time do Inter. No último ano, era o capitão, levantou a taça. Dai você vê o grau de frieza - recorda Daniel Pavan.
E POR QUE NÃO O IRMÃO?
A pergunta não é simples. Muriel também sempre foi visto como grande potencial, tanto que chegou ao profissional e jogou em alto nível. Hoje, aos 31 anos, está no Belenenses de Portugal. São diversos fatores que influenciam na trajetória de um goleiro. Fase do time, a concorrência, número de chances, ocasião. Para quem acompanhou os dois, a síntese é de que Alisson é melhor mesmo tecnicamente e pronto. É provável. Mas eles possuem um aspecto bem distinto: a personalidade.
- Eles têm temperamentos diferentes. O Muriel é mais extrovertido. Já com o Alisson não tinha muita brincadeira. Ele era muito na dele. O Muriel já é mais dado. O Alisson se assemelha muito ao Taffarel nisso. Taffarel era extrovertido fora do futebol, mas dentro muito focado. E o Alisson lida muito bem com o erro. Você não vai ver ele perturbado. Do mesmo jeito que errou, a próxima bola é importante. O Taffarel fazia isso no mesmo sentido - explica Marquinhos Trocourt, que trabalhou com os três citados.
A aversão às brincadeiras era responsável pelos poucos momentos em que Alisson saía do sério no Internacional.
- No aquecimento, nas brincadeiras em que os outros jogadores pegavam no pé dos goleiros, ele ficava bravo, queria brigar, xingar... Ali ele demonstrava o jeito dele, porque era muito sisudo. Eu chamava ele de Urtigão. Muito sério - conta Pavan, lembrando do personagem de Waly Disney.
Alisson também tinha outro apelido, mas esse nunca o incomodou: muso.
- Isso pegou com a mulherada, né? Até o Argel (treinador) quando dirigiu o Inter, chamava ele assim durante os jogos. Mas ele nem sempre foi muso (risos) - brinca o preparador-parceiro, voltando a lembrar da "esticada" dada por Alisson na infância.
SAI QUE É TUA, ALISSON!
Dentre as palavras citadas pelos profissionais ouvidos que trabalharam com Alisson, o nome de Taffarel está entre as mais frequentes, como talvez você tenha se atentado na frase de Dorival Júnior lá atrás. Ao relembrar a trajetória do goleiro atual do Brasil, naturalmente se retorna ao guardião da Amarelinha em três Copas do Mundo, inclusive a do Tetra em 94. São exemplos de sucesso da escola de goleiros do Inter, que encontra em Taffarel um de seus maiores expoentes.
- Não tem nenhum goleiro que jogue na base do Inter que não tem o Taffarel como ídolo. Para qualquer goleiro das categorias de base, o Taffarel sempre é referência. Ele é o modelo a ser seguido. Taffarel foi precursor disso - avalia Pavan.
Marquinhos Trocourt fala com ainda mais propriedade. Foi companheiro de clube de Taffarel no Inter no início da década de 1990, quando o atual preparador da Seleção ainda não era lenda. Três anos mais velho, encerrou a carreira antes e começou a trabalhar na formação dos goleiros. Em 2004, Taffarel foi convidado para ser preparador do Galatasaray, da Turquia, e convidou o amigo das antigas para auxiliá-lo. Deu certo. Assim, Marquinhos conheceu muito bem a escola de onde veio o ídolo de Alisson e o que ele quer transmitir ao seu sucessor.
- O Taffarel nunca foi um cara de valorizar muito a defesa. Foi sempre de fazer o simples, mas bem feito, e essa é a escola do Alisson. Valorizar se posicionar melhor do que estar se atirando em uma defesa. A escola do Taffarel é essa. A biotipia dos dois é diferente, mas a frieza é a mesma - analisa.
Gaúchos, criados no Internacional, de onde saíram para jogar na Itália, parceiros na Seleção. Só um foi reconhecido como muso, mas quando o narrador Galvão Bueno entoar para Alisson aquele famoso bordão que consagrou Taffarel na Copa de 94, duas gerações de gelo estarão unidas. Com sorte, com o mesmo desfecho para o Brasil. Sai que é tua, Alisson!