A vida do brasileiro que treina o time do Partido Comunista em Moscou
José Marcelo Gomes, preparador físico, é contratado do KPRF, que joga na elite do futsal na Rússia. Ele conta como é trabalhar no clube de um partido e os desafios de viver no país
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Entre os mais de 12 milhões de habitantes que vivem em Moscou, capital da Rússia e coração da Copa do Mundo de 2018, está o brasileiro José Marcelo Gomes. O ex-atleta de futsal, hoje preparador físico, pisou pela primeira vez em território russo em 2010 e hoje é contratado do KPRF, o time de futsal do Partido Comunista da Federação Russa. Com escritórios em todo o país (e também torcida), o partido, fundado em 1993, investe no esporte.
No Brasil, soa estranho quando se fala em "time de partido político". Na Rússia, o KPRF joga a SuperLiga, principal divisão do futsal, desde 2011 - o time começou suas atividades em 2003. A equipe não tem instalações próprias: treina num ginásio em Reutov, na região metropolitana de Moscou, e joga em Klimovsk, a cerca de 50km da cidade. Ambos alugados, uma prática que também é comum entre os outras equipes do esporte no Rússia.
- É um clube espalhado. A estrutura física é diferente. Nenhum clube da SuperLiga tem ginásio, são todos alugados. A gente treina num ginásio e joga em outro. O carro chefe do KPRF é o futsal, mas é um clube gigante, promove o esporte na Rússia inteira. Tem atletismo, natação, triatlo, patinação... Tem uma campeão olímpica de powerlifting (levantamento de peso) do Partido Comunista. Eles têm escritórios na Rússia toda. Eles se mantém assim, é um clube normal. Como eles têm escritório em toda cidade, temos torcida em todo lugar, pequena ou não, mas sempre tem. Apoiam. A gente dá até autógrafo, isso é bem legal - contou José Marcelo Gomes, de 48 anos, ao LANCE!, que completa dizendo que não há nenhuma "cartilha de conduta" por política.
- Tem a coisa que eu percebo, que é implícito, que sei que estou fazendo propaganda do comunismo, do partido. Mas não é ficar taxando de socialismo e capitalismo como no Brasil. O partido reconhece seus erros do passado, mas são orgulhosos do que fizeram. O dia a dia é normal. Não nos influenciam em nada politicamente, não preciso seguir nada. Inclusive é até engraçado, porque nosso uniforme é Nike. De um lado tem foice e martelo, do outro a Nike. O socialismo e o capitalismo. É como qualquer clube. A torcida, em casa, é mais barulhenta. Criou um vínculo. Há muito respeito, eles esperam o jogo acabar para entrar na quadra. É muito respeitoso, é caloroso. O russo não é frio, eles só precisam te conhecer - declarou.
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O Partido Comunista da Federação Russa é visto como sucessor do Partido Comunista da União Soviética, que foi banido em 1991 com o fim do antigo regime. É o segundo maior do país, mas muito atrás do Rússia Unida, do atual presidente Vladimir Putin. O time de futsal, que trabalha para ser campeão pela primeira vez, tem hoje mais poderio financeiro do que alguns concorrentes.
- Eu estava no Dina (MFK) no ano passado, que é de Moscou. Fomos campeões da Copa da Rússia e da SuperLiga Russa. Fiquei sem receber alguns salários, foi difícil. Jogamos contra o time do Partido Comunista, deixamos uma boa impressão com a direção. Eles sabiam das dificuldades do meu clube na época. Acabou o campeonato e entraram em contato, fizeram uma proposta. Com três meses sem receber salário, o jogador pode rescindir e fica livre. Vários jogadores do Dina fizeram isso. O clube contratou eles, o técnico e negociou comigo. Acabamos acertando. Fiz um contrato de dois anos - disse Gomes.
José Marcelo começou a jogar futsal com 15 anos e parou com 30. Depois, entre idas e vindas, atuou como preparador físico. São 27 anos no esporte. Na visão dele, a SuperLiga Russa está entre as três melhores do mundo, no mesmo nível da Liga Futsal, do Brasil, só abaixo do campeonato da Espanha. Vários jogadores brasileiros atuam na Rússia. O maior desafio é a adaptação, e para falar em adaptação ao país é preciso ir por etapas. A primeira: o clima.
Neste fim de junho, durante a Copa do Mundo, os termômetros chegam a 26 graus: faz calor em Moscou, cidade repleta de parques que agora são tomados por turistas e russos. As noites são curtas no verão: escuridão só das 22h às 3h. Vivendo sozinho na cidade, longe da esposa e filhos, é justamente na época mais agradável do ano, nas férias, que José Marcelo viaja ao Brasil, como fez há poucos dias, para rever a família.
- Eu trabalho das 9h às 15h, quando não tem jogo. Tem jogo toda semana, fim de semana. Faço meu almoço em casa, na maioria dos dias, eu volto a trabalhar em casa de noite, preparando treinos da semana. Dá para sair, agora que está um pouco mais quente. Tem muito parque, é uma cidade com metrô para todo lado, você se desloca fácil. Dá para passear bastante, os parques são de graça, com história, e lindos. Gosto do Parque Zaryadye, do lado da Praça Vermelha, passeio de barco no Rio Moscou. Tem muita coisa para se fazer. Os parques são gigantescos. Em casa, eu estudo, faço aula de russo, vejo TV brasileira, vejo TV russa - contou o brasileiro. Mas e no frio, que chega a quase 30 graus negativos no inverno, com dias claros curtos, como é que se faz?
- É muito diferente do nosso frio. Você passa frio na rua. Dentro do carro e dos lugares é quente, dentro do ginásio é quente. Sofre menos do que no Brasil. Mas na rua o bicho pega, peguei 27 graus negativos. É muita roupa e ir para shopping, tem muito shopping em Moscou, ir a museu. Parque venta muito no inverno, mas tem alguns com pavilhões, aquário fechado. Tem muita coisa para fazer mesmo no inverno, ando de metrô, é van até o metrô. Tem de estar preparado, boa roupa, ficar pouco na rua. Tem pistas de patinação gigantes, curtir o que eles curtem: café, restaurante... - completou José Marcelo.
Aí entra a segunda e mais complicada etapa da adaptação: o idioma. O preparador já consegue se comunicar em russo, principalmente nos treinos. Mas aprender a língua é uma tarefa árdua para um brasileiro no país.
- A língua é a maior dificuldade, você passa perrengues de comprar coisa errada. Ficar sozinho sem a família também. Isso pesa muito, essa solidão. Meu trabalho já é solitário por ser preparador físico, o meu trabalho é estudar. Hoje já consigo ler algumas coisas, mas eu deixo de comer algo por não saber pedir. Ou não consegue comprar uma calça porque a numeração é diferente. No fast food, quem está vendendo te empurra tudo, você não entende nada... Num KFC a menina não parava de perguntar, acabou vindo um frango com muita pimenta e me lasquei - brincou o brasileiro.
Já são duas temporadas seguidas em que o preparador físico mora em Moscou. Entre 2010 e 2016, com trabalhos de consultoria, ele viajou à Rússia e voltou ao Brasil várias vezes. As experiências cultural e esportiva na terra da Copa do Mundo de 2018 fazem com que ele supere qualquer obstáculo para seguir vivendo no país: a meta agora é ter a família mais perto.
Confira um bate-bola com José Marcelo Gomes:
O que te levou ao país? Qual o impacto, a primeira impressão, ao chegar?
O que me trouxe é a oportunidade de trabalhar com esporte num país em que o esporte é levado a sério, investem no esporte. O futsal não é olímpico, passa suas dificuldades, mas no geral o povo gosta de esporte, tem uma cultura esportiva muito boa. O dinheiro vale a pena, mas a chance de conhecer uma cultura diferente me atraiu muito. Em 2010, vi tudo em cirílico, não entendia nada, uma língua totalmente estranha. A gente escuta sempre inglês, espanhol, italiano... O russo nunca. O que impactou na chegada foi me sentir um analfabeto, uma criança, não se comunicar, não conseguir ler, nada. É um país com uma cultura muito mais antiga que a nossa, que respeita muito o passado. Eles comemoraram muito o passado, algo que a gente não tem no Brasil.
Sobre conhecer outra cultura, o que isso já te acrescentou?
Muita coisa. Eles olham muito para o passado para não cometer erros no futuro. Eles passaram por duas grandes guerras, a gente não. É diferente. Mas há muito respeito ao passado. O Dia da Vitória, em 9 de maio, tem uma grande parada, todos se cumprimentam na rua. O sentimento deles é que só podem ter um futuro porque no passado alguns heróis morreram por eles. Fora isso, arte, música, museu, há muito respeito. Esportivamente eles são ecléticos. O primeiro esporte é o hóquei, o segundo é futebol. Mas todos têm mídia e patrocínio. Quando você é profissional do esporte eles respeitam muito, é difícil ver isso no Brasil. A maioria sofre. Aqui é diferente.
Você pensa em voltar ao Brasil de vez?
É difícil voltar. Vendo os problemas do Brasil, um movimento esquisito na sociedade brasileira. Eu vivo com tranquilidade aqui, faço uma coisa que amo, tenho tempo para mim. No Brasil, é loucura. Eu trabalharia das 6h até 22h para ter o mesmo ganho, sem qualidade de vida nenhuma. Aqui não tem violência, dá para andar sossegado de noite sem medo. O grande medo aqui é só perceberem que você é estrangeiro, o cara estar bêbado e querer tirar satisfação. Já bateu vontade de voltar pela solidão, mas não ao extremo.
Já teve problemas com russos por ser estrangeiro?
Eu não passei por isso. Falando português na rua, as pessoas olham porque para eles é diferente. Mas nunca fui abordado. Tiveram alguns casos mais antigos de jogadores que sofreram preconceito, de russo vir tirar satisfação. Mas não tenho escutado mais casos. É uma cidade muito internacional, você ouve muitas línguas na rua. A tolerância aumentou bastante.
Você já fala bem russo?
O idioma está devagar. Estou na fase do cachorro, que entende e não fala nada. Já consigo dirigir boa parte dos treinos em russo, dá para fazer mercado. Não converso muito. Tenho aula uma vez por semana. Estava estudando sozinho, arrumei uma professora. Senti necessidade de aprofundar o diálogo com os atletas, corrigir o trabalho. Com intérprete isso é mais difícil. Abre muitas portas falar russo. Para brasileiro, é difícil aprender. Não tem referência auditiva. É tudo muito estranho. Muitas palavras mudam a pronuncia de acordo com a construção.
Qual a visão deles dos brasileiros?
Eles são curiosos em relação ao Brasil, a gente é bem distante para eles. Gostam muito do Carnaval, admiram muito o futebol, o vôlei tem uma rivalidade gigante, eles carregam. São curiosos. Os mais próximos que converso dizem ter vontade de conhecer, perguntam de política. Perguntam se é calor o ano todo, não tem a noção de que o país é vertical, a Rússia é horizontal. Nosso clima varia. Eles não têm muito essa noção de que o inverno de São Paulo é 10 graus, não acham frio. No mesmo período, no Nordeste, é 28 graus. Eles assustam. Mas não são mal informados como alguns americanos que acham que o Brasil é uma selva.
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