Xhaka e Shaqiri, da Suíça, reencontram Sérvia após polêmica na Copa de 2018
Após comemorações alusivas a elementos nacionais e políticos, discussões sobre conflitos voltam à tona com novo enfrentamento

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O jogo entre Sérvia e Suíça será marcado por lembranças de uma ferida que não cicatriza. As seleções, que tinham se enfrentado na Copa do Mundo de 2018, viram os gestos dos atletas suíços Xhaka e Shaqiri recordarem um dos problemas políticos e religiosos mais conturbados que assolam a região dos Bálcãs.
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A guerra do Kosovo desperta uma sucessão de lembranças nas partes envolvidas. Professor de Relações Internacionais da Uerj, Paulo Velasco detalha um dos aspectos que marcam este conflito.
- É uma disputa étnico-religioso. Há maioria muçulmana sunita no Kosovo, enquanto a Sérvia tem a maioria cristã. Tem um componente étnico, claro, muito forte nos Bálcãs - disse ao LANCE!.
A região do Kosovo é formada por kosovares e albaneses. Os dois povos compartilham suas tradições, costumes e idioma. Os separatistas albaneses entraram em tensão com o governo nacionalista do sérvio Slobodan Milosevic, que foi presidente da Sérvia entre 1989 e 1997 e da extinta Iugoslávia entre 1997 e 2000.

Guerrilheiros do Exército de Libertação Kosovar intensificaram suas ações e tomaram o controle da região do Kosovo. Belgrado (capital da Iugoslávia e, atualmente, da Sérvia) reagiu de maneira forte, o que causou uma reação inclusive de outros países.
- A situação no Kosovo foi uma das mais delicadas, até por conta da violência de toda sorte que se praticou ali por parte dos sérvios contra os kosovares-albaneses. Houve alguns indicativos, inclusive, de "limpeza étnica". Além disto, houve abusos importantes e crimes contra a humanidade - explicou Paulo Velasco.
Mesmo com Milosevic tendo declarado o cessar-fogo em dezembro de 1998, os conflitos prosseguiram. Houve a criação de um grupo formado por sérvios, líderes albaneses e representantes de potências mundiais para a negociação de um acordo de paz. O intuito era acabar com a guerra entre o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) e o governo da Iugoslávia.
O tratado, que daria uma autonomia ao Kosovo e retiraria as tropas sérvias da região, foi feito, e os diplomatas da Sérvia aceitaram a autonomia. Contudo, os independentistas albaneses recusaram. Os sérvios, por sua vez, se recusaram a aceitar a presença da Otan, liderada pelos Estados Unidos, no território kosovar.
Com o fracasso das negociações, a própria organização internacional atacou Belgrado em março de 1999, exigindo que Milosevic aceitasse o que foi estabelecido nos acordos de paz.
- O grande ápice da crise aconteceu no fim da década de 1990, quando houve um esforço da Otan para interromper a violência. O Conselho de Segurança não votou a favor pois a Rússia vetou. A Rússia é uma amiga histórica dos sérvios. Mas a OTAN bombardeou ainda assim, mesmo sem autorização do Conselho - recordou Velasco.
A guerra durou cerca de seis meses. A ofensiva começou com ataques a áreas militares, mas logo depois também ocorreram ataques a estúdios de televisão, fábricas e outras áreas civis.
Após a entrada das tropas da Otan em Kosovo, foi instaurado um governo provisório, sob tutela da ONU. A maioria dos soldados do exército iugoslavo deixou a província. Já refugiados de origem albanesa iniciaram retorno ao território e cerca de 200 mil sérvios fugiram para a Sérvia, pois temiam represálias.
Em 27 de maio de 1999, Slobodan Milosevic foi punido em Haia.
- Milosevic foi julgado e condenado por crimes praticados naquele momento. Tornou-se um dos momentos de maior tensão dos Bálcãs. Posteriormente, o Kosovo se declarou independente nos anos 2000, mas muitos países ainda não o reconhecem com tal autonomia - frisou Velasco.
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O CONFLITO EM COPAS
Na Copa do Mundo de 2018, suíços e sérvios se enfrentaram pela segunda rodada da fase de grupos. A Suíça é uma seleção que conta com descendentes de imigrantes, incluindo famílias sérvias, croatas e kosovares, como é o caso de Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri. Os dois foram titulares naquele confronto em Kaliningrado, na Rússia.
Xhaka nasceu na Basileia, na Suíça, e é filho de um ex-líder kosovar-albanês que foi preso em Belgrado. Já Shaqiri é nascido no Kosovo e se mudou com a família para o país da Europa Central quando criança.
- Eu nunca vou esquecer que nasci no Kosovo. Em um país muito, muito pobre, onde não há muito trabalho e muito dinheiro. Minha família não tinha muito. A casa do meu tio foi queimada e a nossa ficou em pé, mas tudo foi roubado ou quebrado e as paredes foram pichadas - disse Shaqiri em entrevista ao jornal "Stoke Sentinel".
Antes mesmo daquela partida, Shaqiri já fazia sua manifestação política em sua chuteira, que estava personalizada com uma bandeira do Kosovo.
Na ocasião, a Suíça venceu por 2 a 1, com gols marcados por Xhaka e Shaqiri. Nas comemorações, ambos reproduziram com as mãos a águia de duas cabeças. Este é o símbolo presente na bandeira da Albânia.
Os dois foram punidos pela Fifa após um processo disciplinar e multados em R$ 40 mil pelo gesto. A atitude também não foi aprovada pelo treinador da seleção suíça na época, Vladimir Petkovic.
- Quando você marca um gol, sente emoções especiais, mas acho que todos deveríamos deixar a política fora do futebol - disse o treinador em entrevista depois do jogo.
Líderes sérvios se irritaram com a atitude de ambos os atletas. Jovan Surbatovic, secretário-geral da Associação de Futebol da Sérvia, também reclamou das chuteiras usadas por Shaqiri.
- Tentamos fazer com que ele mudasse as chuteiras. Foi uma provocação. Estávamos jogando contra a Suíça, não contra Kosovo.
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TENSÕES EM JOGO EM BELGRADO
Em 2014, pouco antes da Copa, realizada naquele ano no Brasil, a Sérvia enfrentou a Albânia nas Eliminatórias da Euro 2016, em casa. O jogo teve apenas a presença da torcida local. Porém, durante a partida, um drone sobrevoou o estádio com uma bandeira do país rival. Ela foi puxada pelo atacante Mitrovic, o que gerou uma briga generalizada e invasões de campo. O jogo foi suspenso e a vitória foi dada para os albaneses.
PROVOCAÇÕES SÉRVIAS EM 2022
Já neste Mundial, antes da estreia da Sérvia contra o Brasil, circulou uma imagem nas redes sociais com uma bandeira no vestiário sérvio, que tinha um mapa do Kosovo pintado com as cores da bandeira sérvia e a frase "sem rendição" escrita em albanês , o que gerou revolta na imprensa da Albânia e de líderes kosovares.
O Kosovo faz parte da Uefa e da Fifa desde o ano de 2016. Tanto Xhaka quanto Shaqiri cogitaram defender o país de origem, mas decidiram seguir defendendo a Suíça. Os dois jogadores devem estar em campo nesta sexta-feira (2). O jogo já desperta atenção de muitos no sentido extracampo justamente pelo que aconteceu em 2018 e todo o contexto geopolítico envolvido.
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