Joaquim encerrou o dia de trabalho em uma firma do bairro da Vila Prudente, em São Paulo, feliz da vida. Era fim de ano, e toda vez os funcionários que tinham filhos ganhavam um presentinho para entregar às crianças no Natal. Naquela vez, no começo dos anos 80, o presente para os meninos era top, objeto de desejo de dez entre dez garotos: um autorama cheio de carrinhos e peças. O homem levou o brinquedo para casa com um sorrisão debaixo do bigode e passou horas e horas tentando montar. Quem já montou um autorama sabe do que eu estou falando... Até que na hora da surpresa, a indiferença.
- Ele não deu a menor bola, não quis nem saber. Deu uma dor de cabeça desgraçada para montar e ele não brincou com o autorama. Só queria bola, bola, o negócio dele era futebol. Eu que brinquei de autorama um tempão - diverte-se Joaquim, anos depois, e agora com o bigode branco.
O menino que rejeitou o autorama tem nome duplo e sobrenomes: Fábio Luiz Carille de Araújo. O gosto pela bola virou profissão e ofício: foi jogador profissional por 15 anos, auxiliar por outros nove anos e há pouco mais de quatro meses é técnico do Corinthians, com chances de conquistar o primeiro título neste domingo, quando enfrenta a Ponte Preta na final do Paulistão. Esse Carille você já conhece, mas nosso objetivo é desvendar o Carille que você ainda não conhece.
Mas se você espera polêmicas, inimizades ou algo do gênero, nem precisa continuar lendo. Um amigo de infância do hoje técnico do Corinthians foi curto e grosso quando a reportagem do LANCE! o instigou a contar alguma história escabrosa: "Ele sempre foi o certinho da turma. Nem pra beber essa peste serve".
O menino que gostava de bola e do Corinthians por influência do pai - e não de confusão - jogou em escolinhas da capital paulista, onde nasceu, desde os seis anos. O maior momento de revolta foi quando os pais decidiram se mudar para Sertãozinho por causa de um novo emprego do senhor Joaquim. Mas e o futebol? E os amigos? E o sonho de ser jogador? A contragosto, Fábio se mudou. Formou-se em mecânica industrial, mas nunca sujou a mão de graxa. Trabalhou como office boy de uma loja de materiais de construção, mas nunca quis aquilo para a vida. Isso porque a vida era o futebol.
'O Fábio sempre foi o certinho da turma. Nem pra beber essa peste serve', ironiza amigo
A maioria dos amigos de Carille até hoje em dia é do futebol. E todos carregam histórias sobre a generosidade como um traço de sua personalidade. O técnico do Corinthians largou a formatura da própria filha pela metade para buscar no aeroporto o amigo que se tornaria seu auxiliar no Corinthians, o Cuca. Na escolinha de futebol que tem em Sertãozinho, faz vista grossa para pais com dificuldades de pagar a mensalidade e também colabora com casas de assistência locais doando camisas para sorteios e até próteses e aparelhos de surdez. Fábio também pagou a faculdade das duas irmãs e até hoje financia o convênio médico e o IPTU da casa dos pais. Só não dá mais porque não deixam.
Até nas coisas mais simples, que não envolvem dinheiro, a generosidade aparece. Um dos amigos do mesmo círculo social de Carille em Sertãozinho é desconectado, não tem Whatsapp e nem Facebook. Ou seja, ninguém lembrou do aniversário dele no último dia 25. Ninguém exceto Fábio Carille, que estava trabalhando em São Paulo e preparando o Corinthians para as finais do Paulistão. "Ele que fez todo mundo ligar para dar parabéns. Ninguém tinha lembrado", diz um dos amigos. Não publicaremos o nome do amigo para não machucar corações...
Fato é que Carille mudou pouco desde a efetivação como técnico do Corinthians. Pelo menos é o que dizem todos: pais, amigos, irmãs... A vida dos pais é que sofreu algumas mudanças de rota. Agora eles dão um monte de entrevistas e têm alguns assuntos vetados no contato com o filho. Dona Wanda explica melhor.
- Ele não quer que a gente pergunte as coisas. E a gente quer saber. Não estou nem ligando muito para ele. Ele diz que eu quero escalar o time, que eu quero ser técnica, sou a Zagalla. Mas só fico perguntando quem vai vir pro Corinthians, essas coisas. E conversando com ele você vira e mexe cai nesses assuntos, mas pra ele isso é morte - brinca a mãe do técnico, que enumera até estatísticas do filho nos tempos de jogador: nunca foi expulso.
Fábio é casado desde 1996 com Marina, que conheceu na cidade de Jaú, quando jogava pelo XV. Tem dois filhos: Isabela, que se formou na escola ano passado e tenta a vida de modelo, e Leonardo, de só sete anos, que joga futebol em uma escolinha da capital e tem uma personalidade totalmente oposta à do pai. Em outras palavras, o menino faz todas as travessuras que o pai não fez na infância, inclusive em suas visitas rotineiras ao CT Joaquim Grava.
Por causa da rotina estressante do dia a dia, Fábio não fala diariamente com os pais. As visitas, aliás, estão mais raras. Da última vez em que Joaquim e Wanda estiveram em São Paulo, foi para ouvirem uma notícia que mudaria a vida de todos.
- Estão falando daquele colombiano, o Rueda. Mas acho que vou ser eu o técnico do Corinthians, pai - teria dito Carille, segundo a lembrança de Joaquim. Era ele mesmo.