Resistência na elite, Marcão prega: ‘Se alguém for racista, quem estiver em volta não pode mais tolerar isso’
'Uma pessoa pode ser racista e quem está próximo, ao invés de repreender, vai olhar para saber minha reação', diz o técnico do Fluminense ao LANCE! no Dia da Consciência Negra
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Alguns dos maiores jogadores da história do Brasil são negros. Já entre os treinadores, nomes como Carlos Alberto Torres, Andrade, Joel Santana, Vanderlei Luxemburgo, Didi e Celso Roth são exemplos vitoriosos. Entretanto, a realidade é que em times da elite a representatividade ainda é baixa. Liderando o Fluminense, Marcão tem a missão de levar o Tricolor de volta à Libertadores mais uma vez, mas fora das quatro linhas o trabalho é ainda mais árduo. Apenas um dos dois treinadores pretos da Série A ao lado de Jair Ventura, do Juventude, o ex-volante destaca a importância de se posicionar e combater o racismo ainda tão presente na sociedade.
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- Não basta não ser racista, temos que ser antirracista. Isso significa falar com o maior número de pessoas, reeducar para não terem mais esse tipo de comportamento. Se uma pessoa for racista com a outra, quem estiver em volta não pode mais tolerar isso, deve ser repreendido, mostrar que esse racista cometeu um crime. Vivemos em um país onde uma pessoa pode me ofender de alguma forma, mas quem está próximo, ao invés de repreender o racista, vai olhar para saber qual será a minha reação. Racismo é crime e ponto. Sabemos que está em todos os lugares, o futebol não foge à isso. Vamos falar, discutir e cada vez mais expor isso para que a verdade seja absoluta e a gente continue passando para o maior número de pessoas possíveis o que realmente acontece na sociedade brasileira - disse, em entrevista ao LANCE!.
"Vivemos em um país onde uma pessoa pode me ofender de alguma forma, mas quem está próximo, ao invés de repreender o racista, vai olhar para saber qual será a minha reação"
Neste dia 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra, que faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares, em 1695. A data é utilizada para relembrar e reforçar a luta dos pretos contra a opressão no Brasil. De acordo com o IBGE, 56% da população brasileira é negra (preta ou parda). Mesmo sendo maioria, o que se vê no comando dos grandes clubes vai na contramão disso. Apesar deste cenário, Marcão resiste.
- O futebol, por ser uma grande paixão e o esporte mais praticado no nosso país, apenas reflete o que acontece na sociedade. O esporte é uma ferramenta pedagógica e de transformação. Infelizmente reproduz aquilo que a sociedade de modo geral propõe e trata no tema racismo. Tive poucos treinadores negros. O Gilson Paulino na base do Bangu, por exemplo. Mas esse desafio surgiu muito antes de o Marcão ter esse olhar, de reivindicar estrutura, de pedir mais treinadores bons e negros. Para termos o que queremos precisamos discutir cuidadosamente o tema. Já vem de muito tempo, é importante falar.
De acordo com o Relatório da Discriminação feito pelo Observatório Racial do Futebol, o número de atos discriminatórios no esporte em 2020 foi menor do que nos anos anteriores, caindo para 68. Destes, 49% são raciais. Em 2019, foram 136, enquanto em 2018 esse número chegou a 80. Entretanto, vale ressaltar que o ano passado foi vivido praticamente sem público nos estádios.
Por isso, o debate fica: houve melhora na sociedade ou esse dado só diminuiu por conta da ausência de pessoas? Na Europa, ao longo de 2020, jogadores de PSG e Istambul Basaksehir abandonaram uma partida após acusações de injúria racial por parte do quarto árbitro. Há também as manifestações antes de a bola rolar com jogadores ajoelhados e com o pulso erguido.
Em 2019, Marcão participou de uma ação ao lado de Roger Machado, que treinou o Fluminense antes dele nesta temporada e na época estava no Bahia. Os dois entraram em campo com a camisa do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e Roger fez um desabafo sobre racismo no Brasil. Nos últimos dias, uma entrevista do próprio treinador do Flu repercutiu com Tite na Seleção Brasileira, que disse: "Devemos lutar, sim, porque há um preconceito em relação ao técnico negro e, talvez, ampliando, em uma situação generalizada e maior em termos sociais".
- É importante vermos o treinador da Seleção Brasileira falando naturalmente sobre o tema para discutirmos. Tem que ser falado, mostrado. No meu caso, acho importante porque marca o momento não só para dizer que represento e falo por uma boa parte que deveria ocupar a área técnica, mas para mim é simbólico, altruísta. Não posso me sentir só uma referência, mas também uma exceção. Isso só serve para reforçar algo que é preciso desconstruir. Houve mudanças, mas o que mais me entristece é a falta daquele exercício que falamos da empatia, da intolerância das pessoas com um tema que deve ser discutido com muito cuidado - afirmou Marcão.
Marcão diz nunca ter sofrido racismo nos ambientes do futebol, mas entende a importância da manifestação. Nos últimos dias, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) "devolveu" os três pontos perdidos pelo Brusque pela injúria racial contra o jogador Celsinho, do Londrina, em jogo disputado pela Série B do Brasileirão. Na Libertadores feminina, Adriana, do Corinthians, foi vítima de racismo na semifinal contra o Nacional, do Uruguai. Esses foram apenas alguns casos às vésperas do Dia da Consciência Negra.
- Se passei a gente acaba excluindo e deletando. Sempre pautei meu trabalho no meu profissionalismo. Mas claro que as pessoas que se tornam mais intolerantes com a nossa cor não desenvolvem o mesmo olhar que o nosso. As falas têm deliberadamente conotações racistas. Procuro passar da forma mais serena possível, tentando sempre sobrepor sobre a situação - finalizou.
Ainda com um futuro incerto em 2022, Marcão vive no Fluminense sua maior sequência como treinador, somando 20 partidas consecutivas no comando da equipe e superando as 18 da primeira temporada como efetivado. Em 2021 são oito vitórias, quatro empates e oito derrotas. Como jogador, o ex-volante defendeu as cores do Flu de 1999 a 2005 e depois em 2006, após rápida passagem pelo Catar. Ele conquistou a Série C de 1999, os Cariocas de 2002 e 2005 e a Taça Rio de 2005.
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