Usar a palavra ‘mulambo’ é racismo? LANCE! conversa com historiadores e busca o significado
L! falou com André Garone, jornalista e autor de livros sobre a história do Vasco; e com o historiador e ativista David Gomes, consultor oficial do Vasco sobre questões raciais
O termo “mulambo” é historicamente usado por torcidas de Vasco, Fluminense e Botafogo para "inferiorizar" o arquirrival Flamengo, apesar de um contexto de preconceito racial que remete aos tempos da escravidão. O significado ainda é desconhecido por parte do público e gera debate nos dias atuais.
O assunto voltou aos holofotes após o rapper Djonga pedir desculpa por usar a palavra em referência ao clube rubro-negro e, logo depois, por causa do clássico entre Vasco e Flamengo, na semifinal do Cariocão, que tem seu jogo de volta marcado para este domingo.
O LANCE! conversou com dois historiadores especializados em Vasco que concordam que o termo precisa ser revisto pela torcida cruz-maltina. O cântico virou assunto nas redes sociais nestas últimas semanas e trouxe a público o questionamento do significado do termo. De acordo com o dicionário, o vocábulo "molambo" significa: pedaço de pano velho, roto e sujo, roupa esfarrapada. Segundo a especialista Monique Cassiano, mestre em estudos da linguagem pela PUC-RIO, o termo deriva de um pensamento preconceituoso com os povos pobres e negros escravizados.
- Com uma pesquisa um pouco mais apurada, é possível descobrir que “molambo” inseriu-se em nosso vocabulário por meio dos negros escravizados, pois dava nome ao pano que algumas tribos africanas amarravam à cintura. Com o passar do tempo, o termo foi tomando a forma depreciativa e de insulto e passou a ser usado como um adjetivo para caracterizar alguém sujo ou mal arrumado. Com base nos conhecimentos e debates da formação e das dinâmicas raciais da sociedade brasileira, é possível afirmar a relação do uso atual do termo com o fato dele originalmente se referir a uma vestimenta que era uma marca cultural de povos africanos. Com isso, a palavra “molambo” permanece nos dias de hoje com a denotação negativa e de xingamento por conta de suas bases históricas e aos povos aos quais ela remete - explicou a educadora.
A polêmica do termo
Por meio do Twitter, o influencer vascaíno Wallace Neguere contestou o uso de um dos cantos cruz-maltinos que chama os torcedores do Flamengo de "mulambos". A manifestação foi uma maneira de dar um basta no ato:
- Eu não uso mais o termo mulambo, convencido de ser uma palavra racista e nem canto mais as músicas que tem cunho machista e homofóbico, independente da época que ela foi criada. Já chegou a hora da gente se posicionar - escreveu Neguere.
Eu não uso mais o termo mulambo, convencido de ser uma palavra racista e nem canto mais as músicas que tem cunho machista e homofóbico independente da época que ela foi criada. Já chegou a hora da gente se posicionar.
— Wallace Neguere | Te Aperta? 💥 (@feriadooficial) March 10, 2022
A música em questão é uma paródia do cântico dos argentinos na Copa de 2014, “Brasil, decime qué se siente” . A adaptação feita pelos vascaínos e entoada por outros torcedores rivais tem o termo no seu título: “Mulambo, me diz como se sente”. A letra faz menção ao fato do time não ter estádio. Contudo, houve progressões e também a utilização do termo em outras canções dos torcedores do Vasco.
Wallace continua sua explicação sobre a revisão do termo nas torcidas organizadas do clube:
- Eu gostaria de levantar uma questão muito importante para as torcidas organizadas. Será que já não estaria na hora de rever alguns cânticos? Existe um momento diferente hoje na nossa sociedade, que não podemos tratar como fato isolado. Ex: Racismo, homofobia, Machismo e Xenofobia.
Eu gostaria de levantar uma questão muito importante para as torcidas organizadas. Será que já não estaria na hora de rever alguns cânticos? Existe um momento diferente hj na nossa sociedade, que não podemos tratar como fato isolado. Ex: Racismo, homofobia, Machismo e Xenofobia.
— Wallace Neguere | Te Aperta? 💥 (@feriadooficial) March 10, 2022
Em dois dos seus comentários, Neguere explicou o seu novo posicionamento sobre o assunto:
- Tenho que passar exemplo para meus filhos, se eu luto contra o racismo não posso ser conivente com isso. A mudança tem que começar por mim. Em uma conversa com algumas pessoas. Abre espaço para interpretação, irmão. Isso continua não sendo um termo pejorativo, porém, discriminatório pela forma de se vestir. Por via das dúvidas, é melhor parar - afirmou o influencer.
A atenção ao uso do termo também partiu de torcedores de outras equipes, como do próprio Flamengo. Também pelo Twitter, o flamenguista Antonio Tabet, o "Kibe Loco", humorista do "Porta dos Fundos", tentou explicar aos seus seguidores a origem do termo.
- “Mulambo”, pra quem não sabe, era como os Senhores de Engenho se referiam aos escravos angolanos. Racismo encruado travestido de rivalidade esportiva ainda é racismo - disse o humorista.
“Mulambo”, pra quem não sabe, era como os Senhores de Engenho se referiam aos escravos angolanos. Racismo encruado travestido de rivalidade esportiva ainda é racismo.
— Kibe Loco (@kibeloco) October 13, 2019
Apesar do posicionamento, o debate acabou longo. Nos comentários de Neguere e Kibe Loco, muitas pessoas discordavam da origem etimológica do termo, dizendo que ele apenas reforça o sentido de que o flamenguista "se veste mal" como forma de ironizar o uniforme do adversário.
É necessário mudar
jornalista do LANCE!, especializado em Vasco e autor dos livros sobre o clube "1898 em diante" e "Da Queda ao Bi", André Garone falou sobre a necessidade de rever o cântico:
- A sociedade vem passando por mudanças significativas no combate a discriminação. E o futebol nada mais é um que um reflexo dela. Então, ofensas que antes eram consideradas apenas gritos de torcida, hoje são entendidas como racismo ou homofobia, o que é crime - ressalta o jornalista.
As coisas podem mudar ?
- Infelizmente não será do dia para a noite que isso mudará, exatamente por estar enraizado na sociedade e na cultura da arquibancada, mas é o início de um processo que afetará principalmente as próximas gerações de torcedores. E de maneira positiva - destaca.
Acha que este movimento nas redes é parte dessa mudança ?
- O movimento reafirma o posicionamento de inclusão que sempre marcou a história do clube e de sua torcida. Toda mudança tem, inicialmente, também uma rejeição natural, mas que com o tempo se dissolve. Não é nem uma questão de clube, mas, sim, da sociedade como um todo. É um movimento que todos deveriam aderir, independente de clube que torcem - explica.
Acabar com o cântico enfraquece a rivalidade ?
- Não é acabar com a rivalidade, com a disputa de torcidas, mas, sim, com o preconceito e a discriminação - finalizou André.
Contradição contra a sua própria história
Também em entrevista ao LANCE!, o historiador e ativista David Gomes, que é consultor oficial do Vasco sobre questões raciais e responsabilidade social, deu sua opinião sobre o assunto.
- (Começou) muito tarde (sobre o movimento contra o cântico). Sou a favor de parar. Um clube com a história do Vasco de combate ao racismo não pode compactuar com esse tipo de ofensa racista - destacou David.
- Quem é a favor da continuidade desse xingamento utiliza como argumento o significado duro da palavra no dicionário, mas sabemos bem que a linguagem vai além do que tá no dicionário - alertou.
David usa a música "Camisas Negras", onde é dito que o Vasco já lutou por negros e operários, lutou contra o racismo, como um comparativo ao cântico, ressaltando a incoerência de parte da torcida.
Porque este movimento é necessário?
- Isso (o termo racista) começou a incomodar alguns torcedores negros de esquerda do Vasco, que acharam que é uma contradição. A gente canta camisas negras, né, que fala da história antirracista do Vasco institucional e depois chama os caras de mulambo?
No último dia 16, o Tribunal de Justiça Desportiva instaurou um inquérito após os "cantos discriminatórios" feitos pela torcida do Vasco da Gama, no clássico contra o Flamengo, pela primeira fase do Campeonato Carioca. Em caso de punição, a torcida e o Vasco podem ser penalizados em até 5 jogos.
*Estagiário, sob supervisão de Ricardo Guimarães.