Líria Lúcia, 61 anos, foi a primeira goleira do Internacional nas décadas de 1980 e 1990, pouco após a regulamentação do futebol feminino no Brasil, em 1983, pelo Conselho Nacional dos Desportos (CND). Naquela época, as atletas contavam apenas com ajudas de custo e muita vontade de jogar. Ser jogadora sequer era considerado uma profissão. Para uma mulher negra e de baixa estatura, ainda mais difícil.
— Eu não tive incentivador. Meu pai era pugilista e preferia que eu aprendesse boxe como ele, em vez de jogar futebol. Muitas vezes, treinava escondida. Quando ele descobriu, me chamou e disse que não me incentivaria em nada, nem mesmo com passagem para treinar. Então, tive que fazer tudo por mim mesma — lamenta Líria.
Antes do futebol, ainda na escola, ela se dedicou ao handebol, sempre atuando no gol. A paixão pelo esporte com os pés surgiu ao observar os irmãos, também atletas. Um dia, ao ser convidada para defender o gol em um jogo de futsal, impressionou pela habilidade.
— Descobri que o Inter tinha futebol feminino, fiz um teste, fui aprovada e comecei a jogar com as gurias — relembra.
Com uma bicicleta e passando por baixo das roletas dos ônibus, Líria saía da escola direto para o Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre. Logo uniu a paixão pelo esporte ao amor pelo clube do coração, numa época em que ser jogadora significava disputar campeonatos com "camisetas emprestadas".
Parte da história de Líria está registrada no Museu do Inter, fruto da pesquisa sobre o futebol feminino do clube, conduzida pela pesquisadora Anna Laura Chepp.
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Foto: Divulgação/Museu do Inter
O presente de Taffarel à primeira goleira do futebol feminino do Internacional
Líria guarda com carinho uma lembrança com Taffarel, ídolo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1994 e goleiro do Inter entre 1985 e 1990.
— Ele me viu treinando e perguntou ao treinador por que eu estava sem luvas — conta. Foi então que ganhou de Taffarel sua primeira luva "Palma Chiclete", famosa por melhorar a aderência e evitar que a bola escorregue.
No time profissional do Inter, viu novas mulheres negras chegarem. Se, no início, eram duas, o número aumentava a cada ano. "Pelézinho", "Michael Jackson" e "Neguinha", elas eram todas renomeadas, em uma convivência marcada por companheirismo e apoio mútuo.
Sobram memórias de viagens pelo Brasil. Em uma delas, no interior gaúcho, o ônibus colorado ficou preso em uma barreira de caminhões, sob risco de perderem um jogo por WO. Surgiu, então, o desafio: se vencessem o time de caminhoneiros, poderiam cortar o engarrafamento e seguir caminho. Não deu outra: as atletas do Inter triunfaram e seguiram viagem.
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Debaixo das traves
Líria Lúcia recusa o título de referência no futebol feminino. Prefere sempre destacar suas colegas de time. Com 1,55m de altura — baixa para os padrões da posição —, a "Neguinha", como era conhecida, precisava se superar.
— A única coisa que me tirava da titularidade era minha altura, mas eu treinava muito para mostrar ao treinador e à equipe que tamanho, naquela época, não era documento — reforça a ex-goleira.
Com a camisa colorada, conquistou quatro títulos do Campeonato Gaúcho (1985, 1986, 1996 e 1997) e também brilhou no futsal. Foi vice-campeã brasileira em 1987 pelo futebol de campo. Atualmente, continua frequentando o Beira-Rio, seja nas arquibancadas ou em comemorações, como a promovida pelo clube na última sexta-feira (25), em alusão ao Dia do Goleiro.
Foto: Divulgação/Museu do Inter
Futebol feminino em novo momento
Em 2024, Líria, moradora do bairro Farrapos, em Porto Alegre, foi uma das vítimas das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, perdendo todos os seus pertences. Mais uma vez, o futebol entrou em cena: através de campanhas de solidariedade, recebeu apoio de torcedores e atletas.
A ex-goleira celebra a expansão do futebol feminino no Brasil, que, para ela, está mais descentralizado e acessível do que nas décadas passadas. Líria também destaca a importância da renovação na Seleção Brasileira.
— A Seleção não pode ficar só nos nomes antigos. É preciso dar mais oportunidades para as novas atletas, porque muitas jovens estão indo jogar fora do Brasil — afirma.
Atualmente, Líria trabalha como auxiliar de serviços gerais e realiza entregas pelas ruas de Porto Alegre. Vez ou outra, é convidada para treinar jovens goleiras no bairro onde vive. Sobre sua ligação com o futebol, é categórica: pretende mantê-la “até quando tiver forças”.