À frente do Audax, Diniz fala sobre angústias, terapia e explica rigidez
Em entrevista ao L!, treinador justifica as exigências exacerbadas com seus jogadores, revela que fez oito anos de terapia e dá voz aos 'sofrimentos' ao longo da carreira
- Sofrimento sempre me acompanhou. E eu explico: o futebol costuma tratar um grande jogador como uma grande pessoa e um jogador que não está bem, como uma pessoa menor. E com isso eu sofri a vida inteira, essa distorção nunca conseguiu ser digerida por mim. Eu tento fazer no Audax com que a gente tenha aquilo que a pessoa é, antes daquilo que produz, o talento é algo de cada um.
Com olhar distante, mas de respostas precisas e cheias de significado, como a transcrita acima, Fernando Diniz Silva, mineiro de 42 anos, e hoje técnico do Audax, recebeu a reportagem do LANCE! em Sorocaba, antes de mais um treino da equipe no World Sports Center, na manhã desta quinta-feira, local no qual o grupo se concentra para a semifinal do Campeonato Paulista, neste sábado contra o Corinthians. Em uma longa conversa, explica como os 15 anos de carreira como jogador de futebol serviram para que os poucos como treinador já estejam valendo a pena, revela os sofrimentos e angústias pelos quais passou ao longo da vida - e que o impulsionaram a fazer oito anos de terapia - e aponta os motivos que o levam a ser extremamente rígido com seus jogadores.
- Eu cobro mesmo, grito, xingo, mas o pano de fundo de tudo isso é uma preocupação profunda porque eu sei muito bem, pela minha classe social desfavorável na infância, pelo meu sofrimento como jogador, eu sei como é o futebol, como são seus heróis e vilões, o que é preciso para sustentar sua família. Então, quando eu xingo o jogador, quando eu cobro demais o jogador, tem muita preocupação em tirar o melhor dele naquele momento - explica, sem ao menos negar o quão rígido é durante os treinamentos, estes todos fechados à imprensa, até para evitar constrangimentos.
Com passagens por Palmeiras, Corinthians, Fluminense, Flamengo, Cruzeiro e Santos, aprendeu sobre psicologia nas cadeiras da Universidade São Marcos, e não esconde o quando sofria dentro de campo, justamente por ser um cara cerebral, abdicando da espontaneidade.
- Eu tinha uma característica muito pensante, era um cara muito critico. Não de falar, mas de critica interna, elaborar pensamento o tempo todo. Isso, ainda mais na posição que eu jogava, não era um elemento facilitador, porque quando você está no campo, você precisa ser espontâneo. O jogo não tem fluência se você está toda hora pensando, o jogo precede o próprio pensamento, é uma coisa mais inspirada, rápida. Eu costumo dizer que joguei futebol para aprender a ser técnico.
Fala também com propriedade sobre a situação dos técnicos no país e sobre Luiz Felipe Scolrai, a quem considera injustiçado pelo linchamento psicológico que sofreu após o vexame na Copa do Mundo de 2014, diante da Alemanha. Diniz acredita que o futebol está intrinsecamente ligado à formação e caráter das pessoas que o conduzem, e isto está acima de qualquer tipo de tática, modo de treinamento ou resultado.
L!: Como surgiu seu estilo de jogo? De onde veio?
FD: Quando eu estava no final da minha carreira como jogador, eu já tinha claro que iria ser treinador e a ideia central que eu tinha era fazer o time jogar bem, jogar bola e ser competitivo. A ideia central era essa. O que antecedeu isso foi que começaram a me perguntar sobre minhas inspirações, e para mim ficou claro que minha inspiração no futebol eram os jogadores que vi jogar. O que fazemos aqui é tentar resgatar dentro de cada jogador o motivo principal que os fizeram se tornar profissionais. Então, cada um teve um ídolo, cada um carrega um (Lionel) Messi, um Neymar, um Pelé dentro de si. Ninguém vai ser Messi ou Neymar, mas todo mundo pode cultivar esse ídolo que tem dentro e ir no limite.
Quais são as dificuldades para implantar tal esquema?
Em relação aos outros, eu acho que tenho muitas facilidades. Sonho de todo jogador é jogar bem, aparecer, fazer o que tem vontade, isso acaba me facilitando. No começo, o mais difícil é mostrar aos jogadores que isso é possível, que ele pode jogar com prazer, fazer as conexões entre os jogadores, porque o nosso sistema coletivo tem que andar muito afinado para que as coisas possam acontecer.
Quais jogadores te influenciaram?
Que eu vi jogar desde criança: Maradona, Romário, Zico, Zidane, Ronaldo, Sócrates, eram jogadores que você ficava vendo... Gostava de ver o Silas também, na época de São Paulo. Todos jogadores eminentemente técnicos. Quando criança, você não tem desejo de jogar em determinada posição, você tem vontade de jogar futebol. Até acho que quando pequeno, mesmo os que hoje são zagueiros, eram os melhores da rua, então devia ser o artilheiro. Cresce, vai para trás, se adapta. Todo mundo quer ser um pouquinho desses gênios e todo mundo pode ser.
E você como jogador foi um pouco desses craques?
Eu acho que fui, poderia ter sido um pouco mais... Certamente, isso de pensar demais me atrapalhou um pouco. Para o que faço hoje, me ajuda muito. Eu tenho mais prazer, tive prazer em jogar por realizar sonho de criança, mas hoje a maior parte do tempo eu estou feliz. Perde, ganha, mas tem uma coisa interna de que perder faz parte do jogo, mas tenho uma coisa de que estou no lugar certo, fazendo aquilo que você veio para fazer.
"Futebol para mim não é obsessivo, o futebol está em mim de uma maneira leve. Estou escutando uma música e surge uma ideia, germina em mim"
Por ter jogado em clubes grandes, diziam querer saber quem era seu empresário. Como recebeu esse tipo de questionamento?
As criticas da imprensa, o que vai vender, tem muito... O jogador que está em time grande precisa fazer malabarismos extremos assim para ser um grande jogador. O Corinthians, por exemplo, que joga muito coletivamente, talvez uma peça ou outra que estivesse em outro time e não rendesse tanto, sofreria com críticas. Como eu fui, no Fluminense, era o motorzinho, fazia o time andar, fui eleito o melhor da posição. Quando está em outro time que não está dando certo e você não é um cara de tanto destaque, no futebol de alto rendimento, se um time está mal, complica...
Vamos supor o São Paulo, se jogar mal, vai livrar o Ganso, o Calleri, mas um cara tipo o Wesley vão dizer que não presta, outro não presta, mas o cara é bom, teve uma boa passagem no Santos, depois uma lesão no joelho, depois foi bem no Palmeiras na Série B, eu acho um grande jogador de futebol. Fica esse negócio, um pouco o que aconteceu comigo... Mas me preparou para hoje, as críticas quando vêm, não tem o efeito que as pessoas pensam ter. O que importa é meu trabalho interno aqui dentro, com o grupo de jogadores.
É paradoxal ter se sentido bem agora em um time não tão grande quanto os que jogou?
Eu sou mais satisfeito, eu tinha um sofrimento que me acompanhava, mas estava ali satisfeito, quando conseguíamos fazer um gol com o estádio cheio, valia muito a pena...
Qual sofrimento?
Eu acho que isso é uma coisa que faz muito mal para o futebol como um todo, porque o cara que é um grande talento vai jogar bem futebol e quando parar, se não for uma grande pessoa, não tiver respeito, ele vai ter dificuldades. Então, a gente acaba produzindo jogadores talentosos sem vínculo social consistente, sem ter um apelo dentro de ética e moral com profundidade. E jogadores que batalham uma vida, porque só para ser jogador profissional o cara já venceu uma enorme batalha, pessoas que estão criticando não valorizam e, às vezes, nem sabem. E se estiver em time grande ainda, esse cara venceu muito, é diferente da norma da sociedade. Às vezes, está ruim e é tratado como uma pessoa pequena, massacrado nas críticas.
Foi por isso que procurou a psicologia?
Não só isso, mas isso certamente faz parte do todo. A vida é muito mais complexa que o futebol. Eu fui fazer terapia primeiro porque eu tinha desconfortos, esse era um, mas tinham outros tantos. Minha vida não se resume ao futebol, mas isso certamente faz parte. Fiz uns oito anos de terapia. Aconselho todo mundo a fazer, todo mundo deve fazer, uns mais e outros menos, todo mundo precisa.
Os técnicos são as grande vítimas desse tipo de crítica e cobrança por resultado imediado? 'Sobra' para vocês?
Recai muito sobre o técnico, a gente teve o exemplo da Ferroviária, Sérgio Vieira trouxe algo novo e foi uma sensação na primeira parte do Paulistão e hoje ninguém fala nada. Conseguiu ganhar do Palmeiras, e quase caiu, mas isso não quer dizer que seja ruim. O treinador acabou sendo demitido, mas tentou trazer algo novo, jogar futebol. Quando não dá resultado imediato, já fica vulnerável. Me causou imensa tristeza e sofrimento também o que fizeram com Felipão depois da Copa do Mundo de 2014, um cara com imensa história, o futebol é muito complexo, as pessoas quiseram etiquetar o fracasso quase que totalmente no Felipão.
Qual sua opinião sobre Felipão e o 7 x 1?
É claro que ele tem responsabilidade muito grande, mas não tem exclusividade. Do jeito que foi feito, me senti extremamente incomodado, ele tem história, deu um título para o Brasil. Depois, não foi tão bem no Grêmio quanto o esperado, mas saiu daqui e foi campeão da Liga dos Campeões da Ásia, as pessoas podem falar que é fácil, mas não é, tem caras da Inglaterra lá, Marcelo Lippi, e ele conseguiu, levou Portugal a se sair bem em outra Copa do Mundo, vice-campeão da Europa, treinou o Chelsea... Então, eu acho que é jogar uma história no lixo, Felipão influenciou uma geração de treinadores, um cara muito sincero, coisas que eu valorizo muito mais que a parte tática, metodologia de treino que as pessoas ficaram debatendo tanto, não que não seja importante, mas tem coisas no futebol que eu valorizo mais, são mais importantes.
O que conta mais?
Eu acho que esse lado humano, preocupado com jogadores, é exemplar, sempre gostei. Uma pena que não joguei com ele, isso é algo negativo na minha carreira. Às vezes, recai e recai dessa forma Jamais repensei minha carreira, é algo que pode acontecer com todo mundo, mas é trabalhar, trabalhar e trabalhar. Isso me dá mais ânimo para trabalhar, o cara tem que gostar do que faz, saber lidar com a pressão e sentir vocacionado para isso, faz parte do jogo. Me estimulou ainda mais a ser técnico, estar preparado para as consequências do que você faz. Dá certo, dá errado, é importante saber dançar dos dois lados.
Nessa linha, o certo, então, é seguir com o Dunga à frente da Seleção?
O Dunga como liderança e personalidade eu acho que é super firme, as histórias que sei é que é honesto e procura promover um ambiente justo. Se tem convicção que tem que ser o Dunga, é ele e ponto. Agora isso não quer dizer que você não pode mudar se acha que está errado, mas não por conta de resultado. Se estivesse em primeiro, tinha que mudar por convicção. Eu não acredito em resultado pelo resultado. Se você acha que não está bom, mas o resultado está vindo, aquilo ali na frente vai te dar problema e não consegue mudar mais. Se as pessoas que estão lá dirigindo acham que é o Dunga, é ele. É difícil treinar seleção, eu acho, pegar dois ou três dias e treinar os caras que já vem cansado, tem lá suas dificuldades. Em 2010, fez um trabalho muito bom, principalmente nos resultados. Gosto da personalidade, vejo com bons olhos.
O que pode dizer de um técnico como Pep Guardiola? Quais as diferenças do seu jogo para o tiki-taka?
Nossa grande diferença é que temos uma migração maior nas posições. Jogadores flutuam mais no campo e usamos mais o goleiro, principalmente na construção das jogadas. Guardiola é um cara que temos que admirar, o que ele fez é para se admirar. Não tem nada que tenha pescado, eu leio muito pouco no que diz respeito a estudar, eu gosto do processo criativo, criar junto com os jogadores as coisas em meio às dificuldades, tentamos criar soluções, é um modelo muito voltado internamente.
Você vive o futebol 24 horas por dia?
Futebol para mim não é obsessivo, o futebol está em mim de uma maneira leve. Estou escutando uma música e surge uma ideia, germina em mim com facilidade, mas não é obsessão, ele que vem atrás de mim de uma maneira natural. É bom distrair, sou pai de quatro crianças. Quando estou com eles, estou com eles. Mas é bom quando consigo me desligar um pouco, ai que surgem ideias novas. Obsessão, cíclica dificilmente aparece algo novo.
Qual tipo de música ouve?
Eu gosto de samba desde criança, devo ter algo de africano, porque eu realmente adoro. Gosto de MPB e de qualquer estilo. Sou fã do Fundo de Quintal, desde os oito ou nove anos, Zeca Pagodinho. Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, alguns menos conhecidos, como Paula Lima, Roberta Sá, Leila Pinheiro, 14 Bis.
Se considera um cara exigente demais?
Sou pra caramba mesmo, não sei se demais (risos), quero que os jogadores façam o máximo, fica uma vidraça muito grande pela maneira que exijo do jogador. Quero que ele tenha as melhores oportunidades para ter uma chance maior de ajudar a sua mãe, seu pai e a família que ele vai constituir. Eu só não cobro mais, não xingo mais, porque não sei, se eu soubesse...
É a solução que encontrou?
É uma das maneiras que eu tenho para ajudar os jogadores, é importante que saia a possibilidade de sucesso, o talento, todo mundo tem mundo medo de algo, algum receio, comportamentos que estão te levando ao insucesso. Alguém que está de fora, se olhar de uma maneira superficial, jamais vai entender aquilo que faço com os jogadores. Eu tenho uma preocupação que poucas pessoas terão com os jogadores, para me entender, é preciso ter um pouco isso também, talvez assim soubessem a razão de tanta cobrança. Eu acredito, às vezes, muito mais do que o próprio jogador está acreditando. Minha esposa costuma dizer que cuido mais deles do que dos meus filhos, e isso não deixa de ser verdade.
Mas há uma linha tênue, talvez não sejam todos jogadores capazes de entender esse seu temperamento...
É tênue mesmo, mas as coisas difíceis são assim mesmo, é um risco que costo de correr. Alguns não avançaram em outros lugares e avançaram aqui, vale muito a pena. E é ai também que as pessoas se enganam, já cheguei a ficar três horas embaixo de chuva conversando com jogador em pé. Então isso aqui que vocês vêem é 5% da relação que eu tenho com o jogador, se eu fosse só isso aqui ninguém iria suportar, mas ninguém quer saber o que acontece fora do ambiente de treino. Uma hora, duas horas, três por dia de treino, mais depois temos mais de 20 horas para convivermos fora daqui. Uma relação humana, ter interesse, se preocupar, como vou mostrar isso para vocês? Tem jogador aqui que nunca tomou uma bronca em campo, porque não precisa. Tem jogador que se eu der bronca, afunda...
E o que acontece a partir de então?
Daqueles que eu dou bronca, tenho sensibilidade e conheço o suficiente do cara para saber que vai andar e lá na frente vai agradecer. É claro que dá para errar, mas na maioria das vezes acertamos. Ninguém suportaria meu jeito assim o tempo todo. As pessoas não fazem associação. Camacho foi para o Botafogo, mas voltou para cá para ganhar menos que em outros clubes, isso
porque o time tinha calendário o ano todo. Ítalo teve propostas, tava no Atlético-PR, quis voltar. Rafael Longuine, do Santos, pergunta o que aconteceu depois que chegou aqui... Dá para falar de quase todos, aqui vai ser tratado como estou falando. Temos uma intenção profunda de ajudá-los como pessoa, mais do que jogador, o resultado vem dentro de campo.
Acredita que seu estilo de jogo, seu temperamento, tudo se encaixaria em um time grande? Pensando ainda na pressão por resultados...
O que mais tem aqui é resultado. Resultado tem bastante no Audax. Ano passado foi um dos times que mais finalizou, tem uma folha salarial que fica entre as quatro menores do campeonato. É preciso ter resultado porque a crítica vai ser contundente. Não fazemos porque é bonito, fazemos porque dá resultado, a beleza faz parte do nosso jogo. É preciso ser competitivo.
O que de fato aconteceu para Rodrigo Andrade ter rescindido o contrato com o Audax?
Eu acho que oferecemos muita coisa boa para ele e ele para nós. Houve uma hora que a cissão foi necessária. Melhor para as duas partes.
Você parece entender futebol como sacrifício...
É paradoxal. Sacrifício e prazer. É preciso ter dedicação, todo mundo quer a mesma coisa, ser jogador, ganhar, sem sacrifício é impossível e sem prazer fica insuportável.
Acha que como na política, você é um 'candidato' de um 'partido' menos expressivo que propõe uma mudanças e ainda atrai 'poucos votos'?
Acho que não tem como comparar política com futebol, não dá para equiparar o presidente da CBF com o presidente da República, nem um treinador com o Ministro da Fazenda. Em todo caso, não estou em time grande, mas acho que vem uma leva de treinadores disposto a mudar. Doriva foi campeão, foi para o Vasco, tem alguns na Série B. Se olharmos para a Europa, não há mudanças rápidas, são lentas. No Brasil, um pouco mais. Acho que a chance vai surgir na hora certa. O Aduax é meu Barcelona, não fico me projetando para o futuro, porque o futuro vai acontecer de qualquer forma. Se eu tiver que sair daqui, eu vou sair com o sentimento que tenho hoje, para fazer algo que tenha prazer, de maneira especial os jogadores.