Foi por volta de 13h30, em frente a um carro de cachorro quente nos arredores do Parque São Jorge que um senhor de cara um tanto quanto amarrada e cabelo grisalho recebia a reportagem.
Se não fosse um contato anterior a fim de agendar a matéria, onde certificou ótimo humor, talvez o repórter estranhasse o jeito inicialmente fechado de Aguinaldo Moreira. Preparador de goleiros do time feminino do Corinthians, ele ficou imortalizado como o homem que ergueu o Rei Pelé após o camisa 10 marcar o milésimo gol da carreira. O feito, ocorrido em 19 de outubro de 1969, completa nesta sexta-feira 52 anos.
+ O narrador, os torcedores e os jogadores: as várias óticas do milésimo gol
Goleiro santista entre 1969 e o início de 1971, Aguinaldo teve o privilégio de estar na condição de titular no marco histórico do futebol.
Natural de Santos, o goleiro estava no Nacional, da Barra Funda, quando foi contratado pelo Peixe, no ano do milésimo gol do Rei. Logo após o gol histórico, ele ergueu Pelé em suas costas para dar uma volta no Maracanã. Aguinaldo contou ao LANCE! que a atitude foi impensada, algo de moleque, e que nunca imaginou o tamanho da repercussão que geraria ao longo dos anos.
- A única coisa que foi combinada foi que se saísse o pênalti todos os jogadores iriam correr e ficariam no meio-campo, fariam um círculo, ficaríamos em linha e ele (Pelé) vibraria de toda maneira que achava que iria vibrar. Só que chegar e colocar no ombro não tinha nada, não sei o que me deu na cabeça aquele dia, coisa de moleque – relembrou Aguinaldo ao LANCE!
Em meio à invasão de campo de torcedores e a profusão de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas no entorno do Rei, as pernas de Aguinaldo começaram a bambear e Edson ficou com medo de desabar no gramado do Maracanã.
- Antigamente, tinha um trabalho físico bruto, a gente subia escada com peso na cabeça, tinha um trabalho que a gente fazia que entrava debaixo do atleta e corria com ele. E na hora eu não sei o que deu na minha cabeça de dar a volta com o Pelé no Maracanã. Eu era forte, mas o Maracanã era muito grande. Eu comecei a balançar, a minha perna começou a fraquejar e ele (Pelé) começou a falar que iria cair, aí eu tirei ele. Não dei a volta, seguirei ele por uns três minutos. Tinha muita gente, pessoas que invadiram o campo. E isso foi para o mundo inteiro, algo que eu menos esperava repercutiu – relembra o arqueiro.
HISTÓRIAS ANTES DO GOL MIL
Duas partidas antes do milésimo de Pelé, o Santos jogaria na Paraíba, contra o Botafogo. O Rei tinha 998 gols marcados, mas já se pensava na marca histórica. Em João Pessoa, só se falava sobre o privilégio da capital paraibana receber o gol mil do Atleta do Século e até mesmo o governador do Estado interviu para que o feito acontecesse lá.
- O governador da Paraíba tinha dito para o goleiro do Botafogo deixar parar, não sei se iria - conta Aguinaldo.
Como o seguro morreu de velho, o técnico santista à época, Antoninho Fernandes, chamou o goleiro titular na véspera da partida e o sacou. Estratégia para que o Peixe entrasse em campo com o arqueiro reserva e Pelé se tornar "camisa 1" caso abrisse o placar, como aconteceu.
No início do jogo, o Santos teve um pênalti ao seu favor e, ainda que relutante, cobrou e converteu. No momento que a bola cruzou a linha fatal, o goleiro Jair Esteves desabou no gramado simulando uma contusão. Como não havia suplente para a posição, Pelé ocupou o posto para a tristeza do público paraibano.
- A gente foi jogar na Paraíba e quando chegou lá o treinador me chamou e disse que eu não iria jogar. Perguntei o motivo e ele me disse que o Santos iria entrar com o goleiro reserva, já que faltavam dois gols para o milésimo do Pelé e se o Rei fizesse o primeiro o goleiro do Botafogo deixaria uma segunda bola passar para que a festa fosse na Paraíba. Aí, quando Pelé fizesse o primeiro o goleiro cairia, fingiria que estava machucado e o Pelé iria para o gol - contou o titular da meta santista em 1969.
Ao mesmo tempo, Pelé se saiu bem e mal com os torcedores da Paraíba. Isso porque inicialmente o jogador não gostaria de cobrar o pênalti, tentou transferir a responsabilidade para o lateral-direito Carlos Alberto Torres, mas ao ser aclamado cobrou e converteu a penalidade. Mas contrastou o gol com a ida a meta que fez com que muitos presentes deixasse o estádio, pois foram apenas para ver o Rei jogar, e não no gol.
- Pelé não quis bater (o pênalti) para ficar faltando um gol e chamou o Carlos Alberto para bater, mas a torcida começou a gritar o nome do Pelé. Ninguém quis bater o pênalti, aí ele (Pelé) foi lá, bateu e fez o gol. Assim quando saiu o gol o Jair Esteves caiu, não tinha reserva e o Pelé foi para o gol. A torcida vaiou e começou a sair do estádio, porque não sairia mais o gol mil - conta Aguinaldo.
TESTEMUNHO JUDICIAL
Anos mais tarde, a situação envolvendo o goleiro Jair Esteves foi até os tribunais. Impulsionado por um advogado, o ex-goleiro santista acusou Pelé por uso indevido de imagem, após a história envolvendo a 'falsa lesão' ter circulado em materiais e biografias envolvendo o Rei.
Jair e Aguinaldo eram amigos, mas o segundo contou à reportagem que, quando intimado a testemunhar, contou a versão que tinha do fato, o que corroborou para a vitória de Pelé no Fórum.
- O Manoel Maria me chamou, porque iria ter uma audiência para falar o negócio do gol, e o advogado queria ganhar um dinheiro em cima do Pelé. Aí eu fui ao fórum. O Jair é amigo meu, e o Pelé me chamou para eu falar ao Jair o quanto ele queria para deixar o assunto para lá, isso já no fórum, mas o advogado do Jair não quis deixar para lá. Eu disse para o Jair que era amigo dele, mas deporia contra ele, porque falaria a verdade. Aí o juiz chamou o Pelé, o advogado, o Jair e eu. E eu falei que contaria a história, não aumentaria e nem diminuiria, falaria o que aconteceu. Contei a história, e o juiz deu vitória para o Pelé. O Jair perdeu a amizade com o Pelé e o dinheiro - conta Aguinaldo Moreira.
O ÍDOLO ERA OUTRO
Quando chegou ao Santos, a motivação principal de Aguinaldo não era jogar com o Rei Pelé. Goleiro, o garoto tinha como inspiração Gylmar dos Santos Neves.
Porém, por conta de uma declaração infeliz do seu empresário pouco depois da chegada de Aguinaldo ao Peixe, a relação entre fã e ídolo ficou estremecida, sendo remediada apenas depois do fim da carreira de ambos.
- O meu começo no Santos foi difícil porque eu substituí o melhor goleiro do Brasil e época. E quando eu substituí o Gylmar dos Santos Neves, a gente não se dava muito bem, porque quando eu cheguei no Santos o meu empresário deu uma entrevista, e eu não sabia. O Gylmar ficou sabendo e não gostou, depois o Lima me contou. O empresário chegou no treinador, Antonio Fernandes, e disse que trouxe um goleiro que iria acabar com o Gylmar. O Gylmar ficou sabendo - relata Aguinaldo.
- Eu lia no jornal que eu tinha treinado bem, mas o Gylmar não havia ficado atrás e pensava que aquilo não tinha nada a ver, porque o cara era o melhor do mundo. Quando eu fui para o Santos, a turma de moleques da minha idade falava que eu iria jogar com o Pelé, mas eu não queria sabe do Pelé, eu queria saber do Gylmar. Eu estava no Nacional. Sou de Santos, mas estava morando em São Paulo. Aí o Gylmar, quando eu entrei no lugar, deu uma entrevista que me ferrou, dizendo que goleiro para substituir ele tinha que ser de Seleção, não do Nacional. Então, eu não poderia jogar mal, tomar gol, que comparavam - acrescenta.
AJUDA FINANCEIRA
Durante o curto período de tempo com o Rei do Futebol, Aguinaldo pôde experimentar da humanidade de Pelé.
O salário do goleiro era abaixo do padrão do elenco santista à época. Mesmo assim, ele comprou um apartamento que quitava com as premiações dos jogos, o chamado bicho.
No entanto, o Santos acabou contratando o goleiro argentino Agustín Cejas, figura constante na seleção argentina, que dividiria posição com Aguinaldo. Com isso, ele passou a jogar menos e, consequentemente, receber valores menores de 'bicho'.
No fim de um dos meses, o goleiro não teve dinheiro para pagar o apartamento e precisou recorrer a uma a uma 'ajuda Real'.
- Antigamente, o salário era padrão, todo mundo ganhava igual. Mas para ganhar esse teto tinha que fazer dez jogos seguidos como titular. Quebrou, não ganhava. E o meu salário era baixo. Se o salário dos profissionais era 1.500 (reais), eu recebia 200 (reais) por mês. Não estava no primeiro escalão mesmo assim comprei um apartamento e pagava ao banco com os bichos que eu recebia. Aí comprara o Cejas, goleiro argentino, cheio de moral, e começou a revesar no banco. Chegou no dia de pagar o apartamento e eu não tinha o dinheiro. Aí a minha cabeça ficou um trevo. Falei para o Rildo (ex-lateral-esquerdo) e ele disse para eu falar com o Pelé. A gente estava viajando para o Rio de janeiro para jogar contra o Botafogo. Expliquei mais ou menos para ele, e ele disse para eu passar no escritório dele para conversar - relembra Aguinaldo.
Depois da partida, o goleiro foi até o escritório de Pelé, em Santos, e recebeu uma ajuda financeira para não perder o apartamento, com o combinado de ressarcir o Rei adequadamente.
- Jogamos, depois fui ao escritório, ele me perguntou quando era, eu respondi que era 200 (reais), ele pegou e me deu 1.000 (reais). Ele me disse pra eu pagar 50, 70 (reais) por mês, o que desse, mas para não falar para ninguém - relembra o arqueiro.
Quando chegou na época do pagamento, Pelé estava com a Seleção Brasileira e Aguinaldo pagou parte da parcela para a então cunhada do Rei, que administrava o escritório de Edson Arantes do Nascimento. Contudo, o goleiro não se atentou na ausência de um comprovante de pagamento.
A sua consciência, que estava tranquila, pesou quando Pelé voltou ao Santos e logo de cara o chamou no vestiário para conversar. Aguinaldo logo imaginou que o repasse financeiro não havia sido feito e que não teria como comprovar o repasse. Mas a realidade mostrou totalmente o contrário.
- Na sequência, ele (Pelé) foi convocado para a Seleção, para as Eliminatórias, e ficou quase um mês fora. Aí venceu (o apartamento) e eu paguei para a cunhada dele no escritório, ma não peguei recibo, nem nada, dei o dinheiro e fui embora. Passou o tempo, o Pelé chegou no vestiário, me chamou e disse que queria falar comigo. Pensei que a mulher não havia pago ele, fiquei cabreiro e não tinha como provar.Entrei no campo, ele veio, colocou a mão nas minhas costas, dito que ela havia me pago, que eu era um cara honesto e não precisava pagar mais o que restava, para ficar de presente - conta Aguinaldo com emoção.
Durante 40 minutos de entrevista, Aguinaldo Moreira, hoje com 78 anos foi parado diversas vezes, principalmente por crianças, de menos de 15 anos, que reconheceram o ídolo e foram cumprimenta-lo.
A entrevista também teve o auxílio de condução do casal Edu e Renata Macedo, que estavam aguardando o filho, Yan, que treinava pelo sub-14 corintiano. Assim que a reportagem chegou ao local combinado, a dupla conversava com Aguinaldo. Ex-zagueiro, Edu era mais um que tinha no goleiro uma referência.
Tudo isso apenas reforça que a história é atemporal. E a resistência do tempo é a força de momentos imortalizados, como em que Aguinaldo ergueu o Rei Pelé e até hoje abre precedentes para que o arqueiro conte muito mais histórias sobre o lado o humano de Majestade.
- Quando você começa a conviver com o ídolo ele se torna uma pessoa simples perto de você ,e você só vai perceber quando está em uma algum lugar diferente, em que todo mundo fica em cima dele, mas ali no dia a dia é igual. O Pelé era simples, me dei muito bem com ele que ele me ajudou muito - conta o goleiro.
Hoje preparador de goleiros do time feminino, Aguinaldo vive na Grande São Paulo, na região do Tucuruvi e afirma que desde que assumiu a função se esmera para ser o melhor, e que mesmo perto dos 80 anos ainda tem forças na perna para chutar.
Uma força que sempre esteve presente, a ponto de carregar o Atleta do Século da história nas costas em um dos momentos mais emblemáticos do futebol.