Faltou comunicação? ‘Invasão’ de técnicos estrangeiros no país em 2020 é marcada por decepções
Crença em 'milagre' à la Jorge Jesus, erros de planejamento, pressão por resultados... Jornalistas avaliam desempenho abaixo da média de treinadores de fora que foram mal
A demissão de Ricardo Sá Pinto do comando do Vasco aumentou a série de frustrações que o futebol brasileiro teve com estrangeiros em 2020. O português sucumbiu após dois meses nos quais o Cruz-Maltino vem patinando na zona de rebaixamento do Campeonato Brasileiro e também amargou a eliminação da Copa Sul-Americana. À exceção de Jorge Sampaoli, argentino que comanda o Atlético-MG, e Abel Ferreira, português que assumiu o Palmeiras em outubro, outros profissionais que vieram de longe não tiveram sorte na beira do campo.
Comentarista da Fox Sports e das rádios Globo / CBN, Rafael Marques atribuiu o desembarque de técnicos no início da temporada como "efeito colateral" do que aconteceu em competições nacionais do ano anterior. Especialmente com Jorge Jesus à frente do Flamengo.
- Culturalmente, o brasileiro é fruto das chamadas "modinhas". Esse comportamento social vai além do futebol. A fixação pela contratação de técnicos estrangeiros se deu pelos sucessos concomitantes do Flamengo do Jorge Jesus, principalmente, e do Santos do Sampaoli. Os resultados e a ótima aceitação da opinião pública desenvolveram nos dirigentes a convicção de que contratar um técnico de fora era a melhor forma de satisfazer a torcida, desgastada com a mesmice do mercado nacional, e adquirir maquiagem para a falta de algo efetivamente planejado - afirmou.
Técnicos portugueses foram os primeiros a atravessar fronteiras. Ainda no fim de 2019, o Santos anunciou que depositaria as fichas em Jesualdo Ferreira, veterano que foi tricampeão consecutivo pelo Porto e comandou Sporting e Benfica. Já o Avaí viu a esperança na chegada de Augusto Inácio se esvair após sete jogos, nos quais somou duas vitórias, um empate, quatro derrotas e uma eliminação na Copa do Brasil para a Ferroviária.
Jesualdo, por sua vez, não resistiu à eliminação do Peixe nas quartas de final do Campeonato Paulista. Após 15 partidas, com seis vitórias, quatro empates e cinco derrotas e um aproveitamento de 48,8%, deu lugar a um velho conhecido na Vila Belmiro: Cuca. Comentarista da CBN, Carlos Eduardo Eboli criticou a insegurança que assolou a passagem do luso pelo clube santista.
'Os resultados e a ótima aceitação da opinião pública desenvolveram nos dirigentes a convicção de que contratar um técnico de fora era a melhor forma de satisfazer a torcida, desgastada com a mesmice do mercado nacional', afirma Rafael Marques
- As estruturas são viciadas na maior parte dos clubes. O futebol brasileiro aprendeu que o passaporte sucumbe. O Jesualdo sucumbiu em um Santos que não tinha qualquer convicção sobre o contratação dele. O clube estava uma zona, os jogadores estavam insatisfeitos. Ele chegou sem retaguarda nenhuma! Além da bagunça administrativa e dos problemas financeiros, o português teve de se adaptar ao calendário, ao ritmo de competição e nível de exigência que são bem diferentes do que ele estava acostumado. Acabou não aguentando... - e evidenciou o contraste em relação ao atual comandante do Santos:
- O Cuca chegou pensando em um caráter mais amplo, tentando blindar os jogadores. Só ele conseguiria fazer isso - completou.
DUDAMEL: DUAS ELIMINAÇÕES CAUSAM DEMISSÃO NO INÍCIO DO ANO
O longevo e bem-sucedido trabalho de Rafael Dudamel à frente da seleção da Venezuela (desde a base até o profissional da Vintotinto) fez com que o Atlético-MG trouxesse o treinador sob grande expectativa para a temporada de 2020. Porém, mesmo obtendo quatro vitórias, quatro empates e duas derrotas (média de 53,3% de aproveitamento em dez jogos), o baque que os atleticanos tiveram no início da temporada trouxe sequelas.
Durante live do "De Casa Com o LANCE!" exibida no dia 15 de julho, o ex-diretor de futebol do Galo, Rui Costa, falou sobre o impacto que culminou em uma demissão em massa no clube. Além de Dudamel e de sua comissão técnica, o próprio Rui e o ex-jogador Marques, que era gerente de futebol, saíram.
- É muito difícil ser desclassificado da Sul-Americana, uma competição importante na qual tínhamos condições de irmos mais longe e, com todo respeito, perder para o Afogados na Copa do Brasil logo depois. E tudo isso em um espaço de menos de 15 dias. Entendo que os dirigentes não têm vínculo profissional, são abnegados que estão ali e recebem um tipo de pressão e assédio muito mais impactante do que nós. Olha que recebi muitas mensagens de "carinho" no meu celular... - afirmou.
'É muito difícil ser desclassificado da Sul-Americana e, com todo respeito ao clube, sair da Copa do Brasil ao perder para o Afogados. E tudo isso em um espaço de menos de 15 dias', recordou Rui Costa
Rui fez uma ressalva em relação ao que era esperado quanto ao comandante.
- O único senão é que fizemos uma entrevista de cinco horas com o Dudamel. Fomos a São Paulo o presidente (Sérgio Sette Câmara), eu, o vice-presidente e se chegou a um consenso que aquele era o profissional apto para fazer o processo de remontagem para o Atlético-MG ser o protagonista. Sabia-se que ali haveria um choque cultural, com práticas novas, por se optar por um profissional de outra origem, outra cultura futebolística. E certamente isso precisa de tempo - destacou.
O executivo de futebol ainda falou sobre as variações que o técnico tentou em seu curto período no Galo (Dudamel foi demitido em 27 de fevereiro).
- Sempre vêm os fatos e as versões. O Dudamel de alguma forma implementou disciplinas? Sim, mas o Marques e eu falávamos: "solta um pouquinho aqui, não dá". E ele foi muito receptivo. Mas quando você perde para o Afogados, novamente falando com todo o respeito ao clube, qualquer coisa que se falar acaba perdendo o sentido. O que muitos não vão entender é que a Copa do Brasil é feita para isso, para ter a batalha do Davi contra o Golias, como acontece em uma competição como a Copa da Inglaterra - e, em seguida, apontou:
- Talvez o grande erro foi assumir um risco que depois não poderíamos suportar. Eu digo no plural porque eu também estava participando do projeto. Caso não tivéssemos condições de sustentar um treinador jovem e desconhecido, o melhor caminho talvez fosse optar por um brasileiro. Sim, mandar um treinador embora após dez jogos é complicado, mas também entendo que foi uma medida extrema diante de uma pressão insuportável. Eu vi a cara das pessoas (após a eliminação para o Afogados, na segunda fase da Copa do Brasil, em jogo no qual houve empate em 2 a 2 no tempo normal e, nos pênaltis, a equipe pernambucana venceu por 7 a 6). É absolutamente compreensível a hecatombe que vem para todos nós - completou.
O Galo abriu os cofres e hoje tem como comandante outro estrangeiro: o argentino Jorge Sampaoli.
DOMÈNEC: AUXILIAR DE GUARDIOLA NÃO 'REPETE' FÓRMULA DE JESUS
Após ter conquistado cinco títulos no intervalo de um ano (entre eles o Campeonato Brasileiro, a Copa Libertadores, a Supercopa do Brasil e a Recopa Sul-Americana), o Flamengo foi buscar no exterior um nome que achava que manteria a equipe em alto patamar. O catalão Domènec Torrent chegou ao Rio de Janeiro com a credencial de ter sido auxiliar de Pep Guardiola e era adepto do "jogo posicional".
Contudo, o estilo de jogo implementado foi marcado pela equipe oscilar entre grandes exibições e derrotas acachapantes. Para culminar, o Rubro-Negro amargou a eliminação da Copa Libertadores nas oitavas de final. Em 26 jogos, a equipe somou 15 vitórias, cinco empates e seis derrotas (a última, uma goleada por 4 a 0 para o Atlético-MG). Seu aproveitamento foi de 63,8%. Rogério Ceni, que tinha trabalho satisfatório no Fortaleza, entrou em seu lugar no comando rubro-negro.
A adaptação a toque de caixa a um treinador com nova cultura trouxe dores de cabeça para o Botafogo. O argentino Ramón Díaz chegou a ser apresentado mas, devido a uma cirurgia à que foi submetido, seu filho e auxiliar Emiliano Díaz comandou a equipe.
Vieram três derrotas em três jogos e a notícia de que Ramón só se restabeleceria em dezembro. Com isso, o Alvinegro optou por dispensar o treinador e recorrer a um velho conhecido como "bombeiro": Eduardo Barroca.
RICARDO SÁ PINTO: PRESSÕES, TRÊS VITÓRIAS E VASCO NO Z4 DO BRASILEIRO
O Vasco foi outro clube que voltou suas atenções para Portugal para definir o sucessor de Ramon Menezes. Treinador com passagens por Sporting, Braga e que no exterior comandou também o Standard de Liège (BEL) e Legia Varsovia (POL), Ricardo Sá Pinto não ficou com boas recordações do Brasil.
Em 15 jogos sob seu comando, o Cruz-Maltino obteve apenas três vitórias, além de seis empates e seis derrotas (um aproveitamento de 33,3%). Carlos Eduardo Eboli crê que Sá Pinto chegou à Colina em meio a uma sucessão de problemas.
'Em alguns casos, fica evidente que o problema está na falta de planejamento e estrutura que sucumbem o trabalho', diz Carlos Eduardo Eboli
- Ele não fez um grande trabalho, mas em dois meses encarou um processo eleitoral no Vasco, que sempre é conturbado. Além disso, teve total falta de retaguarda, pressão para fugir de rebaixamento, comandou um elenco que é fraco, além de lidar com a adaptação natural - e emendou:
- Em alguns casos, fica evidente que o problema está na falta de planejamento e estrutura, que acabam sucumbindo o trabalho - completou.
SAÍDAS DE COUDET E JESUS: UM RECADO PARA O MERCADO BRASILEIRO?
Estrangeiros que saíram dos seus respectivos clubes por opção, Jorge Jesus e Eduardo Coudet são vistos como sinais para a imagem do futebol nacional no exterior. Carlos Eduardo Eboli opina sobre o argentino, que fez as malas rumo ao Celta de Vigo (ESP) após ter deixado o Internacional na liderança do Brasileirão e em um total de 46 jogos conseguir desempenho de 24 vitórias, 13 empates, nove derrotas e 61,5% de aproveitamento.
- A situação do Coudet fugiu ao controle do Internacional mas é um sinal de descrença com a nossa estrutura. Ele percebeu que passou um cavalo selado para trabalhar em uma liga mais organizada, uma liga internacional, que pode dar projeção de trabalho diferente. Enquanto aqui no Brasil, se a situação está fugindo do controle e se não conseguir um título, que é a expectativa, vão dispensá-lo - disse.
'Os estrangeiros perceberam a instabilidade crônica do futebol brasileiro no cargo de treinador não alimenta mais a expectativa de longevidade', afirmou Eboli sobre Coudet e Jesus partirem para o mercado europeu
A opção de Jorge Jesus por deixar o Flamengo e partir para o Benfica é vista também como um reflexo disto.
- Os estrangeiros perceberam a instabilidade crônica do futebol brasileiro no cargo de treinador. Ela não alimenta mais a expectativa de longevidade. A saída do Jorge Jesus do Flamengo para o Benfica foi um bom exemplo disso. Infelizmente, muitos dos técnicos que "batem" e vão embora são mais uma consequência de uma estrutura viciada, com total falta de planejamento, que se apegam ao imediatismo, sem conceito técnico na contratação de treinadores e acreditam numa química de vestiário - reforçou.
À ESPERA DE UM 'NOVO' JORGE JESUS E COM RESULTADOS RÁPIDOS
A maneira como o técnico Jorge Jesus tornou o Flamengo mais vibrante a ponto de ser uma máquina de títulos e recordes em 2019 aumentou a responsabilidade de técnicos de diversas nacionalidades. Carlos Eduardo Eboli reconhece que há uma visão messiânica em torno dos imigrantes.
- O que aconteceu entre o Jorge Jesus e o Flamengo, por mais que o elenco seja de alta qualidade, foi um ponto fora da curva em qualquer situação, em qualquer liga. Só que a partir daí, o futebol brasileiro passou a se apegar na exceção para transformar isso em regra. Passa a ser aquela história de acreditar na varinha de condão. O clube e o torcedor sempre ficam à espera de um milagre! E isso reflete nos técnicos. O mais recente deles foi o Ricardo Sá Pinto. Agora sem ele, o Vasco vai atrás de um bombeiro tradicional - e é taxativo:
'Técnicos estrangeiros, assim como os brasileiros, podem ser bons e ruins. E técnicos estrangeiros, assim como os brasileiros, precisam de bons jogadores para desenvolverem bons trabalho', disse Rafael Marques
- Morre em uma total falta de planejamento. Uma cultura que não é alimentada só pela gestão. É alimentada pelos técnicos, por parte da imprensa e por boa parte da torcida. Uma cultura da qual não vejo sinal de ruptura nem a longo prazo. Essa relação com treinador tende a ser algo descartável, movido por crenças e planejamento - completou.
Rafael Marques avaliou o desempenho de técnicos que foram mal sucedidos em território brasileiro.
- Cada clube tem as suas características. Mas acho que todos tiveram um tempo mínimo satisfatório para mostrarem as suas condições. E, por razões diferentes, todos caíram porque tinham mesmo que cair. As atuações de Jesualdo e Dudamel foram aquém, Dome foi um mal gestor de grupo e Sá Pinto piorou a qualidade de jogo do Vasco em comparação ao ciclo de Ramon - disse.
O comentarista da Fox Sports também crê que as mudanças vão muito além de contratar treinadores estrangeiros. É necessário ter olho clínico em diversos setores antes trazer o profissional.
- Técnicos estrangeiros, assim como os brasileiros, podem ser bons e ruins. E técnicos estrangeiros, assim como os brasileiros, precisam de bons jogadores para desenvolverem bons trabalhos. Para mim, essa "onda" de estrangeiros serviu para provar que protótipos, no futebol, não passam de ficção científica ou lenda urbana - declarou.