CAMPO NEUTRO: Kipchoge e o ‘homem da garrafa’
José Inácio Werneck fala sobre temas em alta no mundo do esporte
O que é preciso para um recorde mundial? Em primeiro lugar, um ser humano acima do normal. Em segundo, toda uma excepcional organização atrás dele. Você não entra simplesmente em campo ou numa pista de atletismo, não pula em uma piscina, não sobe em sua bicicleta, sem toda uma minuciosa preparação na retaguarda.
Esta particularidade está muito bem ilustrada em um artigo do “New York Times” nesta segunda-feira, onde fala-se sobre um alemão chamado Claus-Henning Schulke, que é figura fundamental nas provas disputadas por Eliud Kipchoge, o recordista mundial da maratona.
Schulke esteve na retaguarda do recorde mundial de Kipchoge, com 2:01:39, conseguido em 2018 na Maratona de Berlim, e também agora em 2022, quando o mesmo Kipchoge, na mesma Maratona de Berlim, melhorou sua marca em 30 segundos. Novo recorde mundial: 2:01:09. Na mesma maratona e com o mesmo “homem da garrafa”.
Aos leigos da Maratona, esclareço que você não pode disputar uma prova de 42.195 metros sem beber água. Isto para começo de conversa. Os humanos comuns bebem água. Os atletas de elite têm, cada um deles, uma preparação especial dos chamados “líquidos de reposição”, ou “energy drinks”. Uns atletas, por exemplo, se dão bem com cafeína. Outros sofrem problemas estomacais se tomarem algum líquido que tenha cafeína.
Alguns pontos são básicos. Se você beber apenas água, especialmente se beber muita água, não estará repondo o sódio que perdeu através do suor e poderá sofrer de hiponatremia, uma
condição que implica desde simples náuseas até ataques cardíacos, por vezes fatais. Basicamente, o maratonista necessita de eletrólitos, proteínas, carboidratos, todos em fórmulas que variam de um para outro corredor e todos sujeitos, é claro, a exames anti-doping. Mas a fórmula certa, individualizada, é apenas o começo.
A Maratona de Berlim este ano teve 45 mil corredores. Sei, por relato de amigos meus que estiveram na prova e de minha própria filha, que dela participou, que, apesar de toda a boa-vontade da organização, era extremamente difícil, caótico mesmo, conseguir líquidos, quaisquer líquidos, nas mesas a eles destinadas ao longo de cada cinco quilômetros do percurso. Menos, é claro, para os “atletas de elite”, os possíveis recordistas mundiais que aumentariam
ainda mais o já imenso prestígio da Maratona de Berlim.
Ela é a única prova do mundo que oferece um serviço especial de “entrega de garrafa” aos corredores de elite. Eles têm direito a “homens da garrafa” especiais, exclusivos, com autorização para se locomoverem pelo percurso (de bicicleta) e estarem nos pontos
estratégicos em que seus atletas precisarão do “líquido de reposição”. A precisão da “entrega da garrafa” é tão importante quanto a da passagem do bastão nas provas de revezamento em atletismo. O “homem da garrafa” treina a execução com seu atleta designado.
É importante estar inteiramente certo de exatamente como ele vai segurar a garrafa e exatamente como seu atleta vai agarrá-la ao passar correndo. Uma pequena imperfeição e, “pluff”, a garrafa vai ao chão e com ela a vitória ou o recorde mundial.
No caso de Kipchoge as duas coisas em geral vêm juntas. Este ano, 13 vezes o “homem da garrafa”, Claus-Henning Schulke, cumpriu sua função com uma coreografia tão perfeita quanto as do Bolshoi Ballet.
No dia seguinte, como já fizera em 2018, Kipchoge lhe entregou seu número de corrida com uma dedicatória: “Mr. Claus, thank you for helping me. My world record wouldn’t have happened without you”.
Sem Claus-Henning Schulte não teria havido recorde mundial.