Um sertanejo na Rússia: jogo épico, fome do cão e um homem no chão
Nosso Paraíba arretado desta vez narra as emoções de um dia para lá de agitado em Sochi, que teve virada histórica da Alemanha, mas muito aperreio fora de campo
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"Ontem eu sonhei que estava em Moscou..."
...Que dia foi esse em Sochi, meus compadres!? Aconteceu de tudo com o Paraíba aqui no sábado. Estou contando só hoje no domingão porque nem deu tempo, de tão longa que foi a jornada. E, cá entre nós, você não deve ter coisa melhor pra fazer nesse domingo do que acompanhar a Copa e as peripécias do sertanejo aqui, né? Ok, ok, bora deixar de rasgação de seda e ir ao que interessa.
Rapaz, o dia já prometia pelo jogão que tinha aqui: Alemanha x Suécia. Qualquer tropeço dos alemães era caixão. Acordei pensando: será que eu vou presenciar uma eliminação dos campeões, uma Copa depois do nosso eterno 7 a 1? Danou-se! Eu não perdia por esperar.
Fui tomar um café da manhã no restaurante/bar que tenho frequentado aqui e, como estava sem dinheiro em espécie, tentei passar o cartão. E num é que a maquininha do homem estava quebrada? Num foi golpe, não! Tava mesmo. E agora? Aqueles 20 minutos de comunicação buuuunita (sic) em russo, até que tive de apelar pro fiado. O dono do estabelecimento deixou eu pagar no outro dia, deu uns 500 rublos, mais ou menos R$ 30. Você vem lá de Lagoa de Roça pra pendurar a conta na Rússia! Toma vergonha! Mas que fique registrado: tentei pagar em euros, ele ia aceitar, mas ia dar trabalho, então preferiu que eu voltasse depois. Já, já tô indo lá pagar a conta.
Depois do rango, fui para o hotel da Seleção esperar o treino. Estava marcado para às 16h daqui, 10h do Brasil. Encontrei os colegas de imprensa brasileira e já começamos a bolar o plano pra partir do treino ao estádio de Sochi, que fica afastado, para ver Alemanha x Suécia. Iria ser apertado!
Passou o treino, coletiva do médico Rodrigo Lasmar para falar da lesão de Douglas Costa (coitado), notas enviadas, hora de partir para o estádio. Fomos em grupo, em dois carros divididos entre eu, o colega fera do pingue-pongue Danilo Lavieri, do UOL, e mais três do site da Globo: Tossiro Neto, Alexandre Lozetti e Edgard Maciel de Sá. Partimos em retirada por volta de umas 19h20. O jogo começava às 21h. Trânsito da muléstia até o lugar, que fica longe de onde está a Seleção.
Chegamos perto do estádio por volta das 20h. Ainda tínhamos que pegar nosso ingresso, necessário para poder cobrir o jogo das cabines. Correria nos arredores, até que achamos a entrada de imprensa. Quando fui passar, os russos encanaram no meu aparelho que me roteia a internet 4G. Não vou poder entrar com ele. Danou-se! Aí perdi uns 10 minutos para deixar no guarda-volumes, não sem tentar explicar que dentro do estádio eu não iria fazer uso do aparelho. Bom, mas regras são regras, e ele ficou. Eu fui.
Dentro do estádio, esperamos mais um tempo para conseguir os ingressos, até que a moça nos entregou, faltando menos de meia hora para o jogo. Nesse momento, os companheiros já tinham partido, estava sozinho, e me dirigi ao meu local reservado. Bom, tudo certo, cheguei a tempo de montar meu equipamento e ainda acompanhar os hinos. O jogão você viu, né? Rapaz, que coisa linda. Foi demais presenciar tudo aquilo. E nem liguei que o gol do Kroos, no último minuto, ferrou todo meu texto, que já tava pronto. Todo castigo é pouco pra quem duvida da Alemanha. Eu que achei que poderia ver uma vingança sueca pra gente, dei com os burros n'água.
Texto enviado, desço para as coletivas. Muito legal ouvir o técnico sueco. Mas peraí, e você fala sueco? Não, calma! Tem um aparelho que faz tradução simultânea para o inglês. Aí a gente se vira, né? Depois dele veio Joachim Löw, o técnico alemão que você já deve ter visto por aí tirando caquinha do nariz (arghhh). O cara é campeão do mundo e eu tava ali debaixo do nariz dele. Opa, mentira! Melhor dizendo, tava perto do nariz, não!
Terminada as coletivas, volto para o centro de mídia para enviar material. Mas antes, já beirando meia-noite, também mereço um ranguinho, né? Na parte da imprensa até que a comida tem saído barata aqui, muito diferente da Copa no Brasil, que era um absurdo. Então aproveitei pra comer. E virei chacota entre os russos porque, digamos assim, a fome tava meio braba. Vocês sabem que o sertanejo tem 500 anos de fome, né? Então fiz uma mistureba com pizza, macarrão e salmão. A moça do atendimento olhou para meu prato inusitado, que você pode ver abaixo no registro do colega Dassler Marques do UOL,, e disse: "Esse povo brasileiro tem muita fome!". Em inglês, eu respondi: "Too much". Rimos juntos.
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Saímos do estádio perto de 1h da madrugada. E para pegar um táxi de volta? Rapaz, e eu ainda não contei da chuva. Depois de duas semanas só de sol forte e calor, caiu o mundo em Sochi. E logo na hora que a gente estava saindo do estádio. Ficamos pelo menos uma meia hora para conseguir um carro que nos levasse pra casa. Dali, mais uns 40 minutos de viagem, passando por alagamentos em pontes, uma batida de carro no caminho. Mas chegamos em paz, no hotel da Seleção, onde também estão os colegas do UOL. Pensa que acabou?
Como vocês já sabem, minha morada aqui fica a uns minutinhos de onde está a Seleção, então ainda tinha uma caminhada. Despedi dos amigos e comecei subir a colina. Era mais ou menos 2h30 da madrugada. Uns passos acima, avistei um carro parada com o pisca-alerta ligado. Fui me aproximando e vi um homem agachado perto da guia. Mais perto e vejo outro homem. O choque: o homem estava com a cabeça ensanguentada. Gelei frio. Eu estava do outro lado da via e parei para tentar entender. No primeiro momento, pensei que ele tinha sido atropelado. Mas pelo homem do carro parado? Ele está prestando socorro ou já chegou com o homem ali, desfalecido? Entrei em choque. Cogitei atravessar a rua para ver se poderia ajudar, visto que o rapaz não estava conseguindo reanimar o senhor. Nesse momento, outro homem que estava chegando fez um gesto como se disse que estava tudo bem e para eu me afastar. Então, entendi que não deveria ir ali. Uma moça passava ao meu lado e, também assustada, apertou o passo. Decidi segui-la. Olho para trás, e os dois homens estão tentando deixar o pobre machucado no banco do ponto de ônibus. Nisso cruzei a esquina e não consegui ver mais, já estava tomado de susto. Subi meu percurso e, quando estava quase chegando, avistei o carro que estava parado em retirada.
Ainda em pavor e extremamente exausto com um dia muito louco, torci para que estivessem levando aquele homem ao hospital e que tudo terminasse bem. Quando cheguei em casa, logo deitei e só pude pensar que tinha sido tão surreal que parecia sonho. Mas não era sonho, não!
"Ontem eu sonhei que estava em Moscou..."
*Marcio Porto é repórter do LANCE! desde 2008 e está em sua segunda cobertura de Copa do Mundo - a primeira foi no Brasil. Paraibano de São Sebastião de Lagoa de Roça, cidade de pouco mais de 11 mil habitantes, irá desbravar as terras russas com a sede e fome do sertanejo. Cabra da peste que é, trará os relatos aqui para você! Simbora!
Glossário do Sertanejo
Fiado = Ato de deixar a conta para pagar depois
Muléstia = Interjeição de espanto ou exagero, derivada de moléstia
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