Corintianos presos no Rio e famílias disputam ‘partida’ comum no Brasil
Mesmo alegando terem provas de inocência, 29 maiores de idade seguem detidos em Bangu por conta de briga em 23 de outubro, no Maracanã. Situação é corriqueira no País
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Com mais de 1,50m, Alice não aparenta ter apenas dez anos. Não só pela altura, mas também pelos modos, mais condizentes com os de uma adolescente do que com os de uma criança. Ao encontrar a reportagem do LANCE! na sala de sua casa, abriu sorriso tímido e, com classe, estendeu a mão como forma de cumprimento. A garota, contudo, também tem inquietações, sonhos e medos infantis.
Foi por isso que minutos depois escutou da avó, Conceição, a ordem para se recolher ao quarto e não ouvir o que os adultos ali falavam. Sem a presença da menina, a família Tavares revelou que, entre as muitas preocupações que tem, a com o próximo dia 24 de dezembro é especial. A data marca não só a véspera do Natal, mas também o aniversário de Alice, que escolheu o presente que deseja: o reencontro com o pai.
Alice é filha de André Luis Tavares da Silva, de 39 anos, que conquistou a guarda dela na Justiça em 2009. Ele é um dos 31 corintianos presos no Rio de Janeiro desde 23 de outubro. Naquele dia, enquanto jogadores de Timão e Flamengo se aqueciam em campo antes de partida da 32ª rodada do Brasileirão, torcedores da equipe visitante agrediam policiais em um dos setores das arquibancadas do Maracanã. Os oficiais estavam em menor número e sofreram com socos, pontapés e objetos jogados.
André tem fotos e outras provas de que não estava dentro do estádio no momento da confusão. Nada disso, porém, foi suficiente para convencer a PM no momento da identificação dos agressores e também a Justiça, que já lhe negou três habeas corpus desde a detenção.
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Segundo relatos, os policiais utilizaram três critérios estéticos para apontar os agressores: usar barba; estar acima do peso e também possuir tatuagens pelo corpo. O pai de Alice se encaixa neste perfil
Segundo relatos, os policiais utilizaram três critérios estéticos para apontar os agressores: usar barba; estar acima do peso e também possuir tatuagens pelo corpo. O pai de Alice se encaixa neste perfil.
A inscrição na pele de André, porém, não tem relação alguma com o Corinthians. Trata-se de um mago, figura que remete a uma de suas paixões, a ufologia. O torcedor, aliás, nem sequer estava com o uniforme do clube do coração no dia da prisão. Aficionado por rock, vestia camiseta da banda Faith No More. Ele não é membro de torcida organizada e naquele dia realizava o sonho de conhecer o Maracanã, onde foi com amigos e Mauricio, o filho de sua namorada.
– O André tem uma empresa, é responsável não só pela filha, mas também por nossa casa, onde moram eu, nossa mãe, nosso irmão, Tiago, e a Alice. No começo tentamos esconder dela, por ser criança, mas ela viu Facebook, ouviu comentários... O difícil é explicar como o pai inocente está preso – conta Janaína Tavares, irmã do corintiano, que já viajou ao Rio de Janeiro para entender melhor o processo e dar entrada em cadastro para poder visitar o presídio.
Como André, outros torcedores detidos alegam inocência no episódio. E também como a família Tavares, outras famílias enfrentam problemas financeiros e emocionais em decorrência das prisões. O caso é complexo e expõe uma face do quadro da segurança pública, do sistema carcerário e da Justiça nacional.
Faltam dados oficiais sobre o tema, mas levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESEC), aponta que 10% das pessoas presas em flagrante no Rio de Janeiro em 2013 foram inocentadas posteriormente.
No caso dos corintianos presos no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu 10), o percentual pode ser ainda maior. Inquérito da Polícia Civil identifica apenas quatro dos 30 presos (os maiores de idade) através de fotografias do confronto. Mesmo assim, diversos habeas corpus foram negados desde que eles foram encarcerados e apenas um dos detidos, Gustavo Inocêncio, conseguiu aguardar o julgamento em liberdade – a decisão foi proferida no dia 30/11.
Segundo estudo, 10% das pessoas presas em flagrante no Rio de Janeiro em 2013 foram inocentadas posteriormente
– Analisar a parcela de encarcerados ainda não julgados é fundamental para melhorar o sistema carcerário brasileiro, que hoje chega a 607 mil pessoas, com um crescimento espantoso de 7% a cada ano – declarou Bruno Langeani, coordenador de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz.
Por outro lado, tanto o Grupamento Especial de Policiamento em Estádios, como a juíza Marcela Caran, responsável pelo caso, defendem a legalidade das identificações e das detenções. Após converter a prisão em flagrante em preventiva, a magistrada declarou o seguinte:
– Audiência de custódia não é para soltar pessoas indiscriminadamente, e sim para soltar quem deve ser solto e prender quem deve ser preso. Eu entendi que, pela violência contra a polícia e resistência, havia necessidade de manutenção e da conversão em preventiva – afirmou.
Amigos e familiares dos corintianos presos acreditam que o caso foi usado como “exemplo” para intimidar torcedores brigões. Eles também fazem a ressalva de que, por conta do apelo midiático do caso, os detidos não estão sendo maltratados na penitenciária. Há controvérsias, porém. Fabio Barbosa Tomé, conhecido como “Okocha”, diretor da sede de Diadema da organizada Estopim da Fiel, alegou não receber os medicamentos necessários para o tratamento de psoríase – uma doença de pele ligada ao sistema imunológico.
O momento mais difícil para os presos e suas famílias foi nos primeiros dias após a prisão. A falta de informações (que chegavam desconexas, quase sempre pelo WhatsApp), a distância e os gastos imprevistos para contratar advogados pesaram.
Mesmo enfrentando problemas parecidos, familiares e advogados dos corintianos não quiseram se unir no processo. Os que se alegam inocentes temem se juntar com culpados e, assim, se complicarem. Já os advogados pedem que os casos sejam julgados individualmente, mas até agora não obtiveram êxito.
Enquanto isso, o Corinthians adota distância. Em meio a uma crise política, que culminou até mesmo na abertura de um processo de impeachment contra o presidente Roberto de Andrade, o clube se pronunciou apenas sobre a postura da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a qual chamou de covarde.
“A fim de capturar 40 torcedores que supostamente se envolveram em briga com policiais, a PM aprisionou 3 mil torcedores do Corinthians no Estádio do Maracanã, fez com que todos eles tirassem a camisa e está liberando a saída de cinco em cinco pessoas. É inaceitável que uma briga aconteça dentro do estádio entre alguns torcedores e a Polícia e a mesma não tenha capacidade de prender em flagrante os envolvidos, fazendo com que todos os outros corintianos que lá estejam sejam agredidos como cidadãos”, disse o clube em nota.
A família Tavares não procurou a diretoria alvinegra, mas a mãe de André, Conceição Carvalho, esperava postura diferente do clube.
"Eles nunca ligaram, nunca deram apoio. É isso que me revolta. Em nome de uma idolatria você se prejudica. Em nome de um time que se compra camiseta, copos, bandeira... Cadê a família corintiana? Não é 'vai, Corinthians'?", afirmou mãe de André
– Eles nunca ligaram, nunca deram apoio. É isso que me revolta. Em nome de uma idolatria você se prejudica. Em nome de um time que se compra camiseta, copos, bandeira... Cadê a família corintiana? Não é “vai, Corinthians”? – diz a auxiliar de saúde, que jogou fora todos os pertences do Timão que André tinha guardado em casa.
Conceição criou os filhos sozinha e fala com orgulho do fato de Janaina e Tiago terem ensino superior. André, por sua vez, não gostava de estudar, mas sempre mostrou apreço pelo trabalho. Aos 12, já entregava pizzas para ajudar na renda familiar. Hoje ele é dono de uma corretora de seguros, localizada em Itaquera, bem próxima da Arena.
A mãe, que hoje faz aniversário, fecha a mão, abaixa a cabeça e aperta os lábios para evitar o choro ao falar do filho preso, mas não consegue. Avessa à ideia de visitá-lo em Bangu, ela ainda tem esperança de vê-lo neste ano. Na última semana, a defesa de André Tavares impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, numa cartada final para libertá-lo antes do Natal. Para dona Conceição, porém, a sentença já foi dada:
– Eu sempre acreditei na Justiça, mas não imaginava que passaria por essa situação. Quem vai pagar por isso? Não tem reparação.
- Famílias apelam a ‘vaquinhas’ e até vendem pertences
Pegas de surpresa com as detenções, as famílias dos corintianos presos têm enfrentado dificuldades financeiras para arcar com as custas do processo e outras despesas.
A família de Gustavo Inocêncio, por exemplo, recorreu a amigos, que doaram dinheiro em solidariedade.
Os parentes de André Tavares também realizaram uma “vaquinha” por meio de um site na internet.
Os gastos são os mais variados. Ana Cristina, namorada há cinco anos de Tavares, teve de viajar ao Rio de Janeiro buscar o carro do corintiano, que estava em um estacionamento. A conta já ultrapassava R$ 800.
Os gastos com advogado são ainda maiores: R$ 5 mil até o momento – mesmo com o defensor cobrando um preço menor que o habitual.
Uma medida adotada para ajudar nos pagamentos foi a venda dos ingressos que André e Ana tinham comprado para o show da banda Black Sabbath. Fãs de rock, o casal pretendia ir junto ao concerto, que foi realizado no último dia 4.
- Situação atual:
Luta contra o tempo
O recesso forense começa no próximo dia 20. Portanto, os corintianos que ainda tentam habeas corpus neste ano tem pouco mais de uma semana para lutar na Justiça. Se não conseguirem, passarão Natal e Réveillon em Bangu 10.
Processo
Após Ministério Público do Rio de Janeiro acatar denúncia e se posicionar de forma favorável à prisão dos torcedores, processo segue tramitando. Não há previsão de audiência. Defesas tentam habeas corpus enquanto isso.
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