Repórter conta como final ‘exportada’ afeta identidade de argentinos
Jogar a decisão da Libertadores em Madri atinge em cheio o que se chama no país de 'sentimento de pertencimento 'Estão matando a essência', reclama torcedor
- Matéria
- Mais Notícias
Em quase 60 anos de história, nunca a taça da Libertadores foi levantada fora do continente sul-americano. Duro é romper a tradição, e na Argentina a tradição te recorda de onde você vem e para onde você vai. O futebol do continente inicia uma severa luta para recuperar o que deveria ser o mais importante: ser paixão e sentimento.
A grande decisão será disputada em Madrid, no próximo domingo. Haverá uma final e o escândalo dará lugar ao futebol outra vez. Gerou suspeita nos meios de comunicação especializados da Argentina uma escolha pela Espanha que nem estava nos planos - o Catar, sede da próxima Copa, figurou como sede favorita. Ainda mais depois da declaração de Gianni Infantino, presidente da FIFA, dizendo que após a tragedia vivida por Buenos Aires seria difícil que o continente receba a Copa do Mundo de 2030. Mundial que a Espanha briga para hospedar ao lado de Portugal e Marrocos. Depois do acordo entre a Conmebol, FIFA, UEFA, Federação Espanhola e Real Madrid, até mesmo o presidente do país, Pedro Sánchez, confirmou, por meio de suas redes sociais, que a Espanha está pronta para organizar tamanho confronto. Estariam também para o Mundial centenário, algo que a Argentina supostamente "provou" não estar (Uruguai e Argentina pretendem sediar o torneio em conjunto para celebrar os cem anos da primeira edição, disputada em solo uruguaio com final ente os rivais). O futebol se tornou produto para quem pode consumi-lo. Assim pensam os torcedores que respiram o futebol na Argentina.
- Não dormi por três dias. Eu me imaginava na prévia do jogo e a festa que ia ser. No sábado (dia 24 de novembro), cantamos um pouco do lado de fora para baixar a adrenalina e dentro do Monumental foi longa a espera. Fiquei seis horas no estádio e no domingo, antes de suspenderem pela segunda vez, eu já estava na arquibancada. Quando descobri que o jogo foi suspenso, não pude acreditar, tive uma sensação de bronca misturada com tristeza. Mudar para Madri é entrar em um terreno que não tem nada a ver com o futebol, estão matando a essência do futebol argentino - declarou Guillermo, torcedor do River.
Relacionadas
Nos primórdios, o processo de popularização transformou o jogo em uma paixão. Converteu-se de uma prática recreativa em um fenômeno social e cultural, em que os adeptos expressam simbolicamente conflitos, esperanças, frustrações e sonhos. O futebol passou a fazer sentido na busca da vitória, em vez da pura prática. Na cultura argentina, não é importante apenas competir, o auge é a vitória. Isso está relacionado à construção de identidades, reconhecimento e conquista de um espaço ou lugar na sociedade, que tem como raiz e representação seus dois maiores clubes. O triunfo ou a derrota, o brilho ou o fracasso, Boca Juniors ou River Plate.
As relações entre torcedor e esporte estão presentes mesmo no nível mais informal de hábitos ou maneiras, em casa ou no trabalho, na rua e no espetáculo. Em outras palavras, todo amante do futebol tem sido um espectador e participante. Nesse sentido, o futebol como espetáculo não se limita apenas à esfera profissional. Isso na Argentina é chamado de sentido de "pertenencia" (pertencimento), quando um sujeito se sente tão parte daquele ambiente que será capaz de tomar atitudes para modificar o cenário, como o ataque contra o ônibus do Boca Juniors e a grande manifestação dos barrabravas.
- Os grandes problemas do futebol argentino são os grandes problemas do país. Ou seja, o futebol não se separa do que o país é - explicou Alejandro Fabbri, jornalista da TyC Sports.
Hoje, com base na modernização do esporte e na crise financeira do país, o torcedor espectador tem sido questionado ou substituído pelo consumidor. A alta taxa de desemprego desde a última crise auxiliou o trabalho sujo dos barras. Dessa maneira, é possível explicar a busca de espaços de expressão ou identidade, de uma causa para lutar; onde a vida preserva uma parcela de aventura e heroísmo, de entrega gratuita. A violência do barrabrava obedece causas variadas que se localizam em diferentes planos, alguns deles claramente alheios ao futebol. Tudo acima não pretende justificá-lo, mas ajuda a compreendê-lo. É por isso que eles são anjos e demônios ao mesmo tempo, expressando em suas ações algumas das mais cruéis contradições do contexto e alguns dos procedimentos com os quais a modernização da sociedade operou. Sociedade pela qual é representada por River e Boca e teria nesta final o seu auge.
- Ontem eu estava em um bar de Sevilla assistindo Betis x Olympiacos pela Europa League. Um casal de torcedores do Betis comentou sobre a final da Libertadores comigo, me disseram que era uma decisão triste porque uma final tão grande perde o sentido se seus torcedores não tiverem condições de assistir, que o futebol é feito pra eles - contou Joseph, brasileiro que reside na Europa.
O River foi punido com a perda do mando de campo e uma multa financeira. A punição é certa. Mas e o inocente? Que marcas essa final deixou? Onde estaria o olhar humano no futebol/produto? Cerca de 60 mil torcedores estiveram ao Monumental naquele sábado, onde permaneceram seis horas até uma definição. Uma minoria violenta calou um sonho. Sonho daquele torcedor genuíno, que não está lá por negócio e sim por sentimento, que viveu cada classificação esperando por essa final. E os xeneizes (torcedores do Boca)? Talvez pudessem viver a glória de dar a volta olímpica histórica no ambiente mais hostil, o estádio rival. Os inocentes pagam a conta. Inocentes e culpados fazem parte do mesmo quadro social. A identidade argentina se auto-explica e as instituições tomam conta do contexto. Perdemos a Copa sul-americana. É como dizer que amanhã não será possível dançar tango na Avenida Corrientes.
Mais lidas
News Lance!
O melhor do esporte na sua manhã!- Matéria
- Mais Notícias