Decreto-Lei que proibiu o futebol feminino completa 80 anos; como foi e as consequências na modalidade
Desenvolvimento das mulheres no esporte foi freado em momento de franca ascensão e até hoje batalha contra o preconceito e a falta de investimento
Está no entendimento popular que o Brasil é o "país do futebol". Entretanto, durante 40 anos, foi negado às mulheres o direito de continuar evoluindo a modalidade. Sob a justificativa de que alguns esportes "eram incompatíveis com a natureza feminina”, neste 14 de abril, em 1941, o presidente Getúlio Vargas baixou o Decreto-Lei 3.199, que estabeleceu as bases de organização do esporte em todo o Brasil e cerceou o direito das mulheres à prática de certas modalidades esportivas. A regulamentação aconteceu apenas em 1983, apesar de oficialmente o fim deste decreto ter sido em 1979.
Embora o decreto não fale explicitamente sobre o futebol, toda a repercussão da época deixava claro que o esporte era o problema. Chegou-se a dizer que a modalidade será “antro de perdição” e de exploração sexual e financeira de meninas. Durante a Ditadura Militar, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos com "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol”.
Aira Bonfim, pesquisadora do Museu do Futebol, explica que, após o decreto, ninguém ficou exatamente sabendo sobre o artigo específico. Ela contextualiza que a regulamentação era apenas mais uma medida do governo para centralizar as decisões no país.
- Hoje, em 2021, nós olhamos para essa regulamentação e identificamos como esse trecho foi prejudicial ao desenvolvimento e a profissionalização do futebol feminino no Brasil. Ainda assim, precisamos pensar que o futebol masculino só crescia. Já estava na moda desde o início do século e passava por uma popularização quando houve o decreto. Já vemos um recorte de classe importante: o futebol saindo da elite, se tornando rentável e profissionalizando homens. Isso acontece com algumas jogadoras, que vão ganhar o bicho, prêmio, fazer exposições e aparecer na mídia, mas esse processo é interrompido - explicou, em entrevista ao LANCE!.
- De alguma forma a imprensa, que estava investindo, fica coagida, como o Jornal dos Sports. Se vai noticiar depois que essa regulamentação existe, está prejudicando esse futebol feminino. O grande problema depois de 1941 não é que as mulheres deixam de jogar, mas sim a dificuldade de continuar desenvolvendo esse futebol. As mulheres não eram oprimidas, mas precisavam usar outros artifícios, seja com jogos beneficentes, que era como se não fossem "de verdade", ou exibir como performance, como com as vedetes em 59 e 60, que lotam os estádios do Maracanã e do Pacaembu com um futebol muito feio, mas que continuam transgredindo essa normatividade desejada - completou.
O decreto teve consequências diversas e extensas. Atrasou o desenvolvimento do futebol feminino, ressaltou a disparidade de salários, cobertura e premiações, escancarou ainda mais o preconceito já embutido na sociedade, reforçando a ideia de que o futebol não é um espaço para mulheres. A decisão tomada por Getúlio Vargas era uma resposta aos apelos de cidadãos preocupados "com os impactos de certas modalidades ao corpo feminino e seus órgãos reprodutivos".
Na época, a maternidade era considerada a principal função da mulher na sociedade. O sucesso de equipes que vinham se formando incomodou os moralistas. Um homem, chamado José Fuzeira, escreveu uma carta a Vargas em 1940, publicada no Diário da Noite em 7 de maio, com o objetivo de alertar sobre "uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil". Poucos meses depois era assinado o decreto de proibição.
“Refiro-me, Sr. Presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a “ser mãe”. (...) dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes...", dizia a carta aberta.
Mesmo com o fim da proibição em 1979, a Seleção Brasileira foi organizada apenas em 1988, composta principalmente por atletas do Radar, do Rio de Janeiro, além do Clube Atlético Juventus de São Paulo. A primeira competição feminina organizada pela FIFA foi o Torneio Internacional de Futebol Feminino em Guangdong, na China, em 1988, preliminar ao primeiro Mundial oficial que aconteceria em 1991. O Brasil ficou em terceiro.
- As mulheres não demoraram a formar equipes. Na década de 70 já haviam campeonatos regionais acontecendo, mas, de alguma forma, a promoção desse futebol fica em uma esfera amadora. Quando pensamos no futebol de várzea masculino, não ouvimos falar sobre isso, sobre os personagens. E nessa época era bem parecido. Não existiam grandes ofertas de outras possibilidades esportivas em periferias, ambientes distantes de clubes. O futebol só cresceu ao longo dos anos, entra no rádio, na televisão. Não dá para acreditar que as mulheres não foram impactadas por isso. A modalidade se regulamenta em 1983, quando acaba a proibição de fato, pois temos episódios em 1982 de partidas femininas que não puderam acontecer - diz Aira Bonfim.
Aline Pellegrino, ex-jogadora e Coordenadora de Competições Femininas da CBF, analisou o crescimento do futebol feminino ao longo dos últimos anos. Pelle serviu à Seleção durante quase uma década. Ela foi medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de Atenas, campeã dos Jogos Pan-Americanos e vice-campeã da Copa do Mundo, da China, ambos em 2007, além de conquistar a Copa América de 2010 e três edições do Torneio Internacional de São Paulo (2009, 2011 e 2012). Fora dos gramados, ela foi Diretora de Futebol Feminino da Federação Paulista (FPF) antes de chegar à CBF.
- O futebol feminino no Brasil está construindo a sua própria história, de resistência e evolução contínua. Acredito que estamos trilhando o caminho para recuperar o tempo perdido, e, como digo: é importante que cada passo seja dado de forma sólida. Aliás, é sempre importante contextualizar: foram quase quatro décadas de proibição, de 1941 a 1979, com a regulamentação da modalidade a partir de 1983. Se fizermos as contas, em 2022, o futebol feminino vai alcançar a marca de 39 anos de desenvolvimento – o mesmo período em que foi considerado “incompatível com as condições da natureza da mulher” - avaliou.
- Estamos cercadas de movimentos que comprovam a evolução em curso, mas reforço: não podemos nos esquecer de quem pavimentou o caminho até aqui. As gerações passadas construíram esse cenário com muitas barreiras a serem superadas e deixaram um legado histórico para o futebol feminino brasileiro. Esse resgate sobre a importância das pioneiras é uma obrigação e uma fonte de inspiração para todas nós - completou.
PIONEIRAS
Artilheira da Copa do Mundo de 1999, Sisleide do Amor Lima, a Sissi, é uma das pioneiras do futebol no Brasil. Na época, as mulheres sequer tinham uniformes próprios e usavam apenas o que sobrava do time masculino. Naquele momento, a modalidade despontava no mundo após décadas de proibição em vários países (Brasil, Inglaterra, Alemanha). Camisa 10 clássica e com talento único, Sissi era um gênio da bola.
Mesmo com toda habilidade e importância histórica, Sissi nunca foi reconhecida por sua importância. Líder do grupo para buscar melhores condições ao futebol feminino, ela ainda hoje é mais prestigiada fora do país do que em sua casa. A camisa 10 enfrentou muito preconceito dentro e fora das quatro linhas pelo posicionamento e também por conta do cabelo raspado, o qual ela manteve para homenagear uma criança com câncer que havia sofrido bullying. Mas pagou caro pelo gesto.
A ideia de que o futebol feminino servia para satisfazer os homens era tão forte que, em 2001, a organização do Campeonato Paulista impôs uma proibição da participação de mulheres com cabelo curto porque era necessário "enaltecer a beleza das jogadoras para atrair o público masculino".
Sissi foi craque do São Paulo entre 1997 e 2000, ganhou destaque quando foi para os Estados Unidos e esteve no Mundial experimental de 1988, além das Copas de 1995 e 1999. Ela disputou os Jogos Olímpicos de 1996 e 2000. Em 2017, foi considerada a quinta maior jogadora do século pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS) – Pretinha e Roseli são as outras brasileiras da lista de 33 nomes e também pioneiras no desenvolvimento do esporte.
A MODALIDADE SEGUE EM CRESCIMENTO
O futebol feminino brasileiro seguiu e cresceu também graças a três atletas que foram os pilares da Seleção Brasileira ao longo dos últimos anos. Incansável, Formiga é a atleta com maior número de convocações e a única jogadora do mundo a participar de seis Copas do Mundo e seis Jogos Olímpicos. A baiana, natural de Salvador, carrega no currículo a medalha de prata em Atenas (2004) e Pequim (2008), e ouro nos Pan-Americanos de 2003, 2007 e 2015.
Maior jogadora da história, Marta, natural de Dois Riachos, em Alagoas, é a única eleita e melhor do mundo pela Fifa por cinco vezes consecutivas. Ela também coleciona o posto de maior artilheira da história da Seleção Brasileira e da história das Copa do Mundo entre homens e mulheres. Hoje nos Estados Unidos, a brasileira é a única mulher homenageada na calçada da fama do Maracanã.
O terceiro nome é Cristiane. Aos 35 anos, ela voltou ao Brasil e está no Santos. Dona de marcas expressivas, a atacante participou de cinco Mundiais e é a maior artilheira dos Jogos Olímpicos, com 14 gols. A atleta, ao lado de Marta e Formiga, fez parte da geração mais vitoriosa da modalidade.
E AGORA?
A luta vem sendo recompensada. Com mais investimentos em competições no país, transmissões e atenção, a CBF decretou em setembro de 2020 o pagamento igualitário das diárias na Seleção Brasileira a homens e mulheres. Além disso, houve a obrigação no Brasil e pela Conmebol para que os clubes criem times femininos para que possam disputar os torneios masculinos.
- Por um lado, acho que são medidas de recuperação, como cotas de reparação histórica, mas no meu entendimento não existe reparação sobre algo que não pode ser recuperado. Não temos como restituir gerações que deixaram de escolher o futebol como um caminho, diferente do que aconteceu com tantos brasileiros homens. Obviamente que essas ações miram o futuro e isso tem sido comprovadamente qualificado. A qualidade técnica dos campeonatos é superior, os calendários estão mais bem preenchidos, trouxe bons resultados nos clubes - avaliou a pesquisadora do Museu do Futebol.
- Precisamos pensar que é uma quantidade muito pequena de jogadoras que se tornam profissionais. O que fazemos com todo restante das mulheres que querem fazer do futebol seu lazer e não tem um ambiente seguro para isso, com respeito? Como desconstruir esse preconceito das mulheres que querem se envolver em qualquer área relacionada ao futebol? Tem alguns prejuízos simbólicos incalculáveis que precisam de um esforço para desnaturalizar esse afastamento das mulheres com o futebol. Nem imaginamos o que uma mulher levando um currículo para a Seleção masculina ouviria. Em 2021 isso não existe ainda. Uma mulher como a Pia Sundhage não poderia treinar o time masculino, é inconcebível na mente de muitos. Há um longo processo para que nos sintamos confortáveis para perseguir qualquer sonho - concluiu Aira Bonfim.
Agora caberá à nova geração dar continuidade ao processo de crescimento que não tem mais volta.
- Acredito que os próximos desafios envolvem muito além do universo do futebol feminino. É preciso que a sociedade como um todo esteja comprometida em valorizar o espaço conquistado pelas mulheres, e também atuante pela oportunidade dada a elas. É preciso que a mídia, as marcas, o mercado de patrocínios, os clubes, as entidades e as atletas estejam conectadas e dispostas a construir esse futuro juntas - afirmou Aline Pellegrino.