Bragantino x Novorizontino: há 30 anos, a ‘final caipira’ ajudava a desbravar o futebol brasileiro
Projeção de jogadores e técnicos, classificações acirradas e muitas peculiaridades... Não faltam histórias sobre o momento no qual o interior chamou a atenção em São Paulo
O momento no qual o futebol brasileiro teve de ficar ainda mais atento à força do interior completa 30 anos. No dia 26 de agosto de 1990, Bragantino e Novorizontino protagonizaram o último ato da "final caipira" do Campeonato Paulista, que entrou para a história por apresentar aos torcedores uma série de jogadores marcantes e muita superação.
- Foi um campeonato muito longo, durou sete meses e era disputado em pontos corridos a cada fase. Além disto, teve uma interrupção durante a Copa do Mundo, na qual a gente, que se classificou por antecipação, ficou treinando, enquanto outros clubes lutavam na repescagem. Devido à duração, seria o equivalente ao tamanho de um Campeonato Brasileiro... Exigiu muito preparo físico nosso - afirmou, ao LANCE!, Marcelo, que era o camisa 1 do campeão Bragantino, sobre a competição que tinha 24 clubes.
Zagueiro que era titular absoluto do Novorizontino, Márcio Santos destaca.
- O interior era um celeiro muito grande de craques. Muitos jogadores desta final saíram para clubes de maior projeção. O próprio Vanderlei Luxemburgo (técnico do Bragantino) aprumou sua carreira. O Nelsinho Baptista foi para o Corinthians... Era muito difícil superar a gente aqui em Novo Horizonte, ainda mais pela pré-temporada que fizemos - disse.
A 'LINGUIÇA MECÂNICA' COMEÇA A FICAR NO PONTO
A expectativa de voos mais altos já pairava sobre Bragança Paulista há alguns anos. Porém, o sonho ganhou contornos diferentes graças a uma série de negociações.
- A espinha dorsal já existia deste 1988, do time que subiu para a elite do Paulista, que tinha Nei, Biro Biro, Luis Müller... Depois chegamos Mauro Silva, eu, Mário, que vínhamos do Guarani em troca do Victor Hugo, e fizemos parte da conquista da Série B. Aí em 1990, chegaram o Tiba e o Mazinho (Oliveira)... Mas acho que este entrosamento que já havia foi importante para a gente, pois tínhamos um bom conjunto especialmente na defesa. Degrau a degrau, ficamos confiantes - afirmou o lateral-direito Gil Baiano.
O atacante Tiba contou o que pesou para deixar o Vasco e fazer parte da "Linguiça Mecânica" (apelido em referência à seleção da Holanda de 1974).
- Tinha acabado de subir para a equipe profissional do Vasco e no ataque eu ia disputar titularidade com Roberto Dinamite, Romário, Mauricinho, William e Bismarck... Aí, quando eu ia ter uma chance de enfrentar o Flamengo, me machuquei. O Sorato entrou e marcou dois gols no clássico. Não teria vez, né?! (risos) O Paulo Angioni (então dirigente do Cruz-Maltino) disse que tinha uma proposta do Bragantino e acabei aceitando. Foi a melhor coisa para mim, ganhei espaço no cenário graças ao Bragantino - afirmou.
Também desembarcaram promessas oriundas do Fluminense, como o meia Robert e o centroavante Franklin. Mazinho Oliveira foi outro jogador que chegou em 1990 e ganhou projeção no Massa Bruta.
- Não tive espaço no Santos e fui emprestado para outros clubes. Aí no Bragantino comecei a ganhar meu espaço, com o trabalho forte do Vanderlei Luxemburgo - declarou.
'Vanderlei treinava muito a gente. Cobrava muito a marcação pesada', diz Mazinho Oliveira
Aos olhos do meia, Vanderlei Luxemburgo foi crucial para a "Linguiça Mecânica" se impor até mesmo contra times de ponta e ir subindo de produção.
- Vanderlei treinava muito a gente. Cobrava muito a marcação pesada. Tinham o Mauro Silva e o Ivair para segurar a pressão e também ele (Luxemburgo) fazia com que a gente cercasse e atacasse. Era um time muito compacto - recordou.
O goleiro Marcelo é categórico ao falar sobre a chegada do Bragantino de forma tão forte à decisão.
- Na verdade, não era mais tanta surpresa, pois no ano anterior já tinha sido campeão da Série B e semifinalista do Campeonato Paulista. O que chamou mais a atenção mesmo foi a final caipira, pois o Novorizontino veio em alta - disse.
TIGRE DO VALE AFIA AS GARRAS
Determinação não faltou ao Novorizontino em sua saga no Campeonato Paulista. Comandada pelo então iniciante Nelsinho Baptista, a equipe "deu caldo" em grande estilo.
- A organização do clube foi muito grande, pois trazia uma mescla de jogadores experientes com a equipe do Novorizontino que tinha sido campeã paulista de juniores em 1988. Subimos Márcio Santos, eu, e ainda contávamos com o goleiro Maurício, o Paulo Sérgio, o Edson Pezinho... Foi uma equipe muito competitiva - afirmou o volante Luiz Carlos Goiano.
O zagueiro Márcio Santos detalhou como foi a consolidação do Tigre do Vale como mandante.
- Vínhamos de uma conquista nos juniores sobre o Juventus, que era campeã direto. Além disto, brinco que nossa pré-temporada faz sempre a diferença por conta do forte calor em Novo Horizonte. Sempre foi muito difícil ganhar da gente. Os rivais podiam até sair em vantagem, mas a gente ia e virava no segundo tempo. No máximo, empatávamos - afirmou.
Atacante que desembarcou no clube após ter despontado no Corinthians, Paulo Sérgio contou que Nelsinho Baptista foi importante para o elenco.
- Eu vim de um time grande, aprendi a ser vencedor. Quando o Nelsinho montou o grupo, ele passou para a gente que tínhamos condições de chegar, de vencer, e foi isso que aconteceu, conseguimos chegar até a final - e detalhou:
- Nossa equipe não dava espaço para rivais. O gramado era pesado. E muitos de nós jogávamos visando o futuro, um espaço em um time de ponta - completou.
MASSA BRUTA. E 'PROTEGIDA'!
Não faltam "causos" em torno da "final caipira". Campeão paulista de 1990, o Bragantino teve um ritual de preparação que chamou bastante atenção dos jogadores: ao chegarem no vestiário, eles se depararam com sal grosso espalhado pelo chão.
- Não sei quem fazia isso, mas quando chegávamos, já estava lá. Dizem que é bom, espanta "mau olhado". O Vanderlei era muito amigo do Robério de Ogum (vidente), a gente deixou passar - lembra Mazinho Oliveira.
O goleiro Marcelo também destacou a convivência com o sal grosso nos vestiários.
- Aconteceu algumas vezes. Para a gente, era normal (risos). Mas Robério de Ogum foi reforço nas finais (risos) - disse.
Elenco do Bragantino encontrava sal grosso no vestiário antes de partidas
A concorrência com o Corinthians pela vaga na decisão foi marcada pela tensão até o fim. E a situação do Grupo Preto da terceira fase (a competição tinha dois grupos com sete times cada) mudou nas últimas rodadas.
- Na penúltima rodada, enfrentamos o Botafogo mas, em vez de ser o Ribeirão Preto, o jogo foi em Sertãozinho. Era um campo ruim, jogo às 11h, 40 graus... O Corinthians pegava o Santos à tarde, já sabendo do nosso resultado. Nós vencemos e depois o Corinthians empatou. Ficamos na frente deles e fomos para o confronto direto na última rodada. Aí, garantimos a vaga - lembrou.
O lateral Gil Baiano valoriza a dedicação de Luxa em relação ao elenco.
- -Ele conseguiu extrair o máximo da gente. Mesmo a cada jogo que íamos passando, incentivava para não nos acomodarmos - disse.
NO NOVORIZONTINO, TREINO NO CANAVIAL... E SEM TEMPO RUIM!
O Novorizontino também passou por situações curiosas em meio à sua preparação para o Campeonato Paulista. A começar pela exigência de que os jogadores se preparassem desde a madrugada, sem que houvesse espaço para tempo ruim.
- Naquela época, a gente treinava em três períodos: às 6h, 10h e por volta das 15h, 16h... Aí a gente estava no meio da pré-temporada, morto de cansaço. Morávamos no estádio, foi chegando perto das 6h e caía um temporal. A gente chegou a pensar: "pô, vai pular este treino e vamos descansar um pouco mais". Uns minutos depois, chega o (preparador) Flávio Trevisan, que era um louco, acordando a gente: "aí, vamos lá!". A gente ia, saía da cidade, ia para o meio de um canavial e corria 15km, com tempo cronometrado - recordou o zagueiro Márcio Santos, que brincou:
- Cara, Deus deve ter visto aquilo e falou: "olha, pelo que esse time aí está passando na pré-temporada, vou fazer de tudo para ajudar os caras" (risos). A gente tinha a melhor preparação física possível! - completou.
Capitão da equipe, Márcio detalhou que havia outra preocupação com as corridas em meio às fazendas.
- Tinham alguns momentos que a gente revezava. Só corriam os zagueiros, ou os meias, os atacantes... Aí botavam colete vermelho e tinham as vacas pelo caminho. Aquilo era só para piorar as coisas (risos) - disse.
O atacante Paulo Sérgio recordou um dia no qual os atletas tiveram o fôlego testado em grande estilo.
- Corríamos as trilhas de Novo Horizonte na preparação física. Um dia estávamos numa subida, aí uma vaca passou pela cerca e disparou na nossa direção. Só vi o pessoal pulando as cercas, fugindo desesperado... - recordou.
'Estávamos numa subida, aí uma vaca passou pela cerca e disparou na nossa direção. Só vi o pessoal fugindo desesperado', lembra-se Paulo Sérgio
Após a longa caminhada da equipe em campo no Campeonato Paulista, o Novorizontino também lidou com a expectativa por outros resultados na reta final da terceira fase. Luiz Carlos Goiano relembrou como foi a ansiedade para saber quem seria o finalista do Grupo Vermelho.
- A gente precisava só de uma vitória simples sobre a Portuguesa, mas empatamos. Ficou todo mundo no vestiário com ouvido atento ao jogo do Palmeiras com a Ferroviária. Passaram dez minutos e aí a gente se classificou com o empate deles. Foi muita alegria - disse.
O zagueiro Márcio Santos detalhou o clima em torno do desfecho do grupo.
- Parecia que o juiz não ia apitar mais o fim do jogo. Quando acabou, a festa foi muito grande em Novo Horizonte. E virou uma referência essa final histórica - declarou.
UM HERÓI PREDESTINADO NO BRAGA E A VITÓRIA DE TODO O INTERIOR
Passados 30 anos da "final caipira", a sensação entre jogadores de Bragantino e Novorizontino é que quem ganhou, de fato, foi o interior. Luiz Carlos Goiano, que atuava no Tigre do Vale é categórico.
- Não houve vencedor nas duas partidas. O empate prevaleceu e o Bragantino ganhou o título por ter a melhor campanha. Mas as duas cidades fizeram o papel delas. O Massa Bruta tem sua torcida apaixonada e o Novorizontino também tem uma paixão que segue de pai para filho. Isto é mais fundo em clubes do interior - destacou.
Responsável por arrancar o empate do Bragantino em 1 a 1 no jogo de ida (com Edson), Gil Baiano falou sobre o duelo.
- Sabíamos que jogar lá seria difícil, não poderíamos vir para casa com a derrota. Além disso, o Novorizontino tinha um time forte, com Odair, Márcio Santos, Luiz Carlos Goiano, Tiãozinho, Edson Pezinho. Fiquei muito realizado de contribuir, marcando o gol em uma jogada ensaiada nossa - afirmou.
No jogo de volta, o roteiro se repetiu. A equipe de Novo Horizonte saiu na frente com Fernando. Contudo, coube a Tiba se desvencilhar da marcação para tocar na saída de Maurício e definir o empate, em um gol profetizado.
- O Vanderlei, antes do jogo, me disse que eu ia fazer o gol do título. Foi um dos momentos de maior alegria que tive na minha vida - e emendou:
- Aquele jogo foi uma emoção muito grande tanto para mim quanto para minha mãe, que vendia caldo de cana e desde que comecei a jogar, passei a carregá-la comigo. No dia do jogo, ela ficou na dúvida se assistia ou não à partida, estava muito apreensiva. Foi bom dar essa alegria para ela antes que ela morresse - completou.
Após Tiba decretar o empate em 1 a 1, o jogo teve uma prorrogação de 30 minutos. A permanência da igualdade deixaria o troféu em Bragança Paulista. A sequência de jogos quase custou caro.
- Só joguei o primeiro tempo, pois acabei me machucando. Tive que ouvir o segundo tempo e a prorrogação no vestiário. O Robert entrou no meu lugar. Foi aquele sofrimento até sairmos de campo com o título - lembrou-se Mazinho Oliveira.
O goleiro Marcelo destacou como estava a equipe naquela altura.
- Perdemos o Mazinho Oliveira durante o jogo, o Pintado também não atuou na final. E se estávamos desgastados, os 120 minutos trouxeram tensão. Mesmo assim, no primeiro tempo da prorrogação, tivemos chances de resolver o campeonato. Foi muito gol perdido. Depois é que virou um drama, pois da mesma forma que podíamos marcar e definir, com o Novorizontino fazendo um gol, as coisas iriam ficar muito complicadas - afirmou, ressaltando:
- O (Vanderlei) Luxemburgo foi muito importante. O departamento médico foi estruturado, tinha o Marco Aurélio Cunha na fisioterapia. Vínhamos em um desgaste muito grande, muitos jogadores se recuperaram para a final - completou.
Após o título ficar garantido em Bragança Paulista, o atacante Tiba hoje exalta.
- Eu me sinto um privilegiado de ter participado deste time que fez história, tão bem montado pelo professor Vanderlei (Luxemburgo).
O LEGADO DA 'FINAL CAIPIRA'
A "final caipira" trouxe um marco para diversas carreiras e ajudou a dar novos caminhos em campo para o futebol brasileiro. O atacante do Novorizontino, Paulo Sérgio, detalhou.
- Eu já tinha sido campeão paulista em 1988, quando subi para os profissionais. Voltei para o Corinthians, fui para outra final (do Brasileiro) com o Nelsinho Baptista como técnico,desta vez fui campeão e tive uma carreira marcada como jogador vitorioso e com passagem pela Europa - afirmou Paulo Sérgio, do Novorizontino, ressaltando:
- Mauro Silva, eu, Márcio Santos fomos nos encontrar na disputa da Copa de 1994 depois. Maurício foi titular no Corinthians, Luiz Carlos Goiano jogou bem no Grêmio, tantos foram para clubes grandes. Mazinho Oliveira e o Mauro foram para a Europa... - completou.
O técnico Vanderlei Luxemburgo também seguiu sua caminhada e já fez história na beira do gramado a partir da década de 1990.
Com a Seleção Brasileira passando por um período de mudança de safra sob o comando de Paulo Roberto Falcão, outros jogadores tiveram espaço.
- Foi na época de uma Seleção mais jovem, mas foi um prêmio para mim - disse Gil Baiano.
Além do lateral-direito, o volante Mauro Silva e meia Mazinho Oliveira também receberam oportunidades no Bragantino. E um dos titulares da "final caipira" esteve ao lado de Mauro Silva na final do tetracampeonato.
- Minha primeira chance na Seleção veio quando eu estava no Novorizontino. Lá no clube, cheguei a ser considerado melhor zagueiro do Paulista. Fui eleito o melhor em campo da decisão de 1990. Mesmo depois da saída do Falcão, segui tendo chances na Seleção com o Carlos Alberto Parreira. Não estive na Copa de 1994 por acaso - disse Márcio Santos.
Dos recantos do interior paulista, a "final caipira" ajudou a desbravar novos caminhos para o futebol brasileiro.