Miro Neto: ‘O moto-contínuo da paixão clubística’
'Dezembro é o mês em que os apaixonados por futebol no país reforçam sua profissão de fé clubística e esperam por boas novas em seus clubes'
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A liturgia do torcer não tem trégua, é um moto-contínuo. Isso faz do futebol um vendedor perpétuo de esperanças. Está nessa engenhoca permanente a chave da paixão arrebatadora que move o esporte. No fato de os frustrados poderem sempre ver no amanhã um novo dia, um novo time, uma nova anima e, claro, um novo bafejo do destino. Não acostuma-te à lama que te espera, Augusto dos Anjos das arquibancadas ou do sofá. Há sempre a possibilidade de um futuro doce, de triunfos e forras. Os campeões, sabedores de que nenhuma vitória é imperecível, já ficam alertas, em expectativa para o que virá. São insaciáveis por natureza os torcedores. O resgate da memória e os signos das conquistas podem até forjar a enganosa sensação de que o passado se eterniza. As maiores façanhas de um clube emergem dos arquivos da memória e da mídia para simular um presente permanente. Mas, na verdade, a expectativa do que virá sobrepõe-se de tal maneira que fortalece o amor no presente, que é tão grande, como no poema "Mãos dadas", de Drummond. Vamos juntos!
Esse prólogo cheio de devaneios sobre a passagem do tempo e a repactuação que ele promove sistematicamente com o sentimento do torcedor vem ao encontro da ocasião. Dezembro é o mês em que os apaixonados reforçam sua profissão de fé clubística e esperam, senhores e senhores, por boas novas. Alguns devem saltar ondas e despejar flores ao mar à meia-noite pensando em campeonatos. Acendem velas por dias melhores ou prolongamento dos tempos gloriosos. Mudanças no elenco, eleições, promessas (vazias ou reais) e outros tantos movimentos abastecem o otimismo dos que viviam com ele represado e inflam ainda mais o ego dos envaidecidos. Qualquer notícia pode abalar ou entusiasmar um coração de torcedor nesse período que antecede um novo calendário de disputas. O gol dá lugar ao anúncio de um reforço e as expectativas ganham corpo de acordo com a projeção do time que entrará em campo em janeiro ou fevereiro. No Brasil, há a peculiaridade dos estaduais, hoje sem a potência antiga, o que acaba estendendo planejamentos e anseios.
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O contrassenso, salgado por elementos culturais do país, é que os clubes utilizam informalmente essa competições como laboratório, mas no agir formal dão a elas condão decisivo. Um grande clube não levanta a taça no seu estado e o técnico é demitido, novos atletas são contratados, a temporada torna por começar em maio. Para o torcedor, no seu tal moto-contínuo de expectativas, isso pode ser agradável, mas para os profissionais, não. É como se houvesse um Carnaval da bola, que interdita o calendário, o força a um recomeço de fachada, um simulacro de terras prometidas.
Na essência do torcedor, a paixão está estabelecida e o porvir trata apenas de reacendê-la, quando assim for necessário. A renovação dos votos é uma tradição de fim de ano em todos os aspectos da vida. No caso do futebol, ela é quase uma razão de ser do torcedor. Ainda bem que existem os recomeços. Brindemos!
("Por seres tão inventivo/ E pareceres contínuo/ Tempo, Tempo, Tempo, Tempo/ És um dos deuses mais lindos/ Tempo, Tempo, Tempo, Tempo" - "Oração ao tempo", música de Caetano Veloso)
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