Ceni conta sua história lendo o L! e enaltece são-paulinos: ‘Maior torcida do mundo’
Goleiro-artilheiro se despediu do futebol em 11/12 e relembra carreira pelas páginas do Diário criado em 1997, mesmo ano em que o Mito virou titular do São Paulo
Rogério Ceni escreveu nesta sexta-feira, no Morumbi, o último capítulo de sua história como jogador de futebol. Ficarão as lembranças de um Mito, um vazio no mundo da bola e nos textos do LANCE!, que tem de vida o mesmo tempo que o capitão teve como titular do São Paulo.
Foram 18 anos desde o nascimento em 1997, quando o diário passou a ser publicado e teve em Ceni, certamente, um de seus maiores personagens. Vitórias épicas, atuações memoráveis, títulos inesquecíveis, 129 gols (dois dos 131 marcados na carreira saíram antes do L!), declarações emblemáticas em entrevistas exclusivas e coletivas. O registro da trajetória do capitão ficará para a posteridade, mas, antes de pendurar as luvas, o maior goleiro-artilheiro da história reviveu as memórias que conferem um toque de mitologia a essas linhas.
Por cerca de meia hora, a convite da reportagem, Rogério Ceni mergulhou em edições passadas do L! no papel em uma sala no CT da Barra Funda para relembrar sua carreira. Foram momentos de alegria, fruto de quem construiu uma história incontestável, amparada em números e feitos de gigante.
Ceni riu ao ler que era chamado de veterano em 1997 (já tinha sete anos de clube, uma Libertadores e um Mundial no currículo), brincou com as notas por atuações e se emocionou mais quando teve em mãos a edição do tri da Libertadores: a manchete “MorumTri" vinha acompanhada de sua foto levantando a taça do torneio sul-americano. Recordar é viver.
O INÍCIO
O primeiro jogo que Rogério Ceni fez com o L! em circulação foi no dia 2 de novembro de 1997. Uma vitória por 3 a 1 sobre o América-RN no Machadão, em Natal. Ceni brinca com a nota, ao folhear a edição do dia seguinte ao confronto.
“Contra o América de Natal, é isso? E tirei seis? Passa de ano, mas não está muito bom, né? (risos)”.
Mais à frente, revê a primeira matéria em que foi personagem. Na legenda da foto, é chamado de veterano por ser o atleta com mais tempo de casa aos 25 anos.
“Eu?! Puta vida! Em 1997 eu era veterano? Pelo amor... Só se fosse pelo tempo de clube, porque hoje, então, nem sei que palavra vocês usariam (risos)”. Ele compreendeu o título.
Sobre o primeiro gol registrado, Ceni é traído pela memória. Foi contra o Paraná, no empate por 4 a 4, em 9 de novembro de 1997, mas o goleiro achava que tinha sido em 1998. Naquele ano, ele marcou mais dois gols, um contra o União São João, o primeiro, e outro contra o Botafogo.
“Um 4 a 4 com o Paraná? Não foi em 98? Olha, muito bem... Tirei seis, mas não posso reclamar, né? Tomei quatro gols em casa! Está ótimo! Jurava que havia feito só dois gols em 1997, não lembrava que haviam sido três”.
Na primeira entrevista exclusiva, o título da matéria é “Estranho no ninho”, detalhando traços do perfil que diferenciavam o capitão dos demais boleiros. Suas opiniões fortes, apreço por rock, pela leitura... Ops, não é bem assim, né, Mito?
“Também foi em 1997? Estranho no ninho? Falava que eu gostava de livro? Ou eu menti ou o L! se enganou na época (risos). Brincadeira, até gosto quando são biografias ou abordam esporte, mas não tenho muita paciência para livros longos. Gosto muito de ler sobre a vida de quem fez sucesso”.
Ainda em 1997, Ceni viveu um momento importante da carreira pela Seleção Brasileira, sendo campeão da Copa das Confederações na Arábia Saudita. Um episódio ficou marcado e incomodou o goleiro. Durante a competição, um liderado pelo hoje palmeirense Zé Roberto teve a ideia de raspar o cabelo de todos os jogadores. Ceni raspou, mas não gostou.
“Putz! Foi uma polêmica danada. Muitos ficaram chateados, mas como eram veteranos, não se manifestaram. O Leonardo ficou bem chateado. Ele era mais experiente e administrou melhor, já eu fiquei mais frustrado. Foi o Zé Roberto? Não lembro... Pode ser... E se for mesmo, vou aproveitar que ele está no muro aqui do lado e pegar ele (risos). Achei uma brincadeira incompatível com a Seleção Brasileira. Isso é coisa de jogos estudantis, e passei muito por isso. Mas para uma competição oficial com a Seleção não era compatível. Para mim não mudou muito, porque raspei, cresceu de novo e já estou sem cabelo”.
Ceni foi campeão do mundo com a seleção em 2002.
AS GLÓRIAS DO MITO
A entrevista com Rogério Ceni foi feita pouco depois de o São Paulo perder por 6 a 1 para o Corinthians, jogo do qual o goleiro não participou, por lesão. Mas bastou uma capa do L! de seu período mais vitorioso no clube para ver como o mundo dá voltas. Ceni lê a manchete “Goleácticos“, do dia seguinte à goleada de 5 a 1 sobre o Corinthians, no dia 8 de maio de 2005, pelo Campeonato Brasileiro, no Pacaembu, e volta a brincar com a nota dada a sua atuação: “9”, destacando o gol marcado.
“Natural acontecer uma vez ou outra na história do futebol. E não teve expulsão, foi 11 contra 11. Esse jogo eu deveria ter feito dois gols, mas o Tiago (goleiro do Corinthians), se não me engano, fez uma defesaça em uma falta que bati e o Luizão fez no rebote. Tirei nove? Aí também é exagerado! Tirei alguns dez, não é? Aquele do Cruzeiro (jogo que passa o Chilavert), o do Liverpool (título mundial)... Foram merecidos! E eu tinha mais cabelo há dez anos também (risos)”.
Chegamos à Libertadores e a consagração do goleiro. Rogério recebe a edição do título, com a manchete “MorumTri” e a imagem dele erguendo a taça. Foi a primeira vez que o goleiro venceu a competição como titular e as palavras dele apontam para o título mais marcante de sua carreira no São Paulo.
“Essa Libertadores foi muito bem jogada. E na final, na realidade, tive uma vida tranquila. Foi mais um pênalti no fim do primeiro tempo que foi na trave. Essa (capa do tri, a grande imagem da carreira) é sim. As grandes imagens sempre saem dos títulos. A gente havia sido campeão em 1993 e tinha na minha cabeça que precisava viver aquela emoção de uma forma diferente, jogando, como titular. Por isso para mim foi um ciclo que se completou, 12 após o bicampeonato. É uma imagem muito bacana, tenho uma edição guardada em casa. Foi um prazer, um orgulho de erguer a taça. Só eu e o Raí tivemos essa possibilidade e agora estaremos juntos no dia 11”.
O dia 11 é hoje, quando Ceni entrará em campo para o adeus com os campeões mundiais pelo clube, um combinado de 1992/93 contra os de 2005. Ceni e Raí, que tem presença confirmada, estarão de lados opostos, mas foram os dois únicos capitães a levantar a Libertadores pelo clube.
O título garantiu o São Paulo no Mundial no fim do ano, mas antes Ceni atingiu um dos seus inúmeros recordes. No dia 27 de julho, o goleiro chegou a 618 jogos pelo Tricolor e superou Waldir Peres como quem mais vestiu a camisa do clube. A festa foi atrapalhada pelo São Caetano, que venceu por 1 a 0.
“Lembro! Nós perdemos esse jogo por 1 a 0, um chutaço no ângulo do Canindé, não foi? Foi um dos gols mais bonitos que sofri. E foi o primeiro jogo em que entrei com as meninas (as filhas gêmeas), elas tinham seis para sete meses de idade em julho de 2005, foi muito bacana. Temos algumas histórias em comum, eu e o jornal. São trajetórias parecidas”. Verdade, Ceni!
Ao passar pelo Mundial do Japão, onde foi um monstro na final contra o Liverpool, Ceni brinca com uma coluna de Pedro Henrique Bueno de Toledo, o “Fala, Doente“ do São Paulo. A página do título ainda tem um anúncio com ele como personagem e propaganda de celulares antigos, que traz a noção de como o tempo passa e as coisas se modificam.
“Tenho muita coisa guardada em papel, sempre colecionei os jornais. Vamos ver: Nota dez (balbucia o texto) da atuação... Tem um torcedor ilustre que escreve também, né? O Pedro Henrique (Bueno)? Conheço bem ele! Tem até uma propaganda comigo e eu tinha bastante cabelo! Era um contrato com a Umbro e eu era jovem, bonito... Agora sou velho, careca e feio! Olha aqui esses celulares também (risos). Tive alguns desses! Tive até PT550, internet discada. Nada de Whatsapp!”. Que são-paulino não gostaria de dividir grupo de WhatsApp com o capitão?
"Tenho muita coisa guardada em papel, sempre colecionei os jornais. Vamos ver: Nota dez (balbucia o texto) da atuação... Tem um torcedor ilustre que escreve também, né? O Pedro Henrique (Bueno)? Conheço bem ele!"
Ceni chega à manchete que ele mesmo “deu”. Sobre a imagem da multidão que recepcionou o time após o tri Mundial, em São Paulo, a frase do capitão: “A maior torcida do mundo”. Ceni mantém a declaração e relembra o dia histórico.
“Foi a maior festa que eu vi de um clube, exceto à Seleção em 2002 em Brasília. E olha que eu estive presente em 1993 quando chegamos. Não foi nem 1% da festa com o tri em 2005. Essa festa vai ficar sempre na memória. Foi muito legal, 11 horas no caminhão. Mas os caras ficaram tão preocupados em fazer propaganda no caminhão que passamos todo esse tempo sem água praticamente! Foi mais difícil do que ganhar o jogo, mas valeu a pena. Ver as ruas da cidade como estavam me deixou impressionado. Eu não esperava! A chegada ao aeroporto de Guarulhos já foi muito legal, a minha declaração se justifica”.
Passado o ano de 2006, Ceni depara com a capa “El Vingador”, da vitória de 1 a 0 sobre o Chivas (MEX) no primeiro jogo da semifinal da Libertadores. O goleiro marcou de pênalti e igualou Chilavert como o maior goleiro-artilheiro da história. O triunfo representou uma vingança porque o São Paulo tinha perdido duas vezes para os mexicanos na primeira fase. Ceni foi protagonista, mas outro grande personagem foi de suma importância para o resultado positivo.
“Esse jogo tem uma história muito legal com o Lugano. Tinha o Bautista (atacante do Chivas), que jogava com uma chuteira de cada cor, não é? Olha ele aqui, foi só falar! O que o Lugano falou para esse Bautista foi brincadeira! Quando deu o pênalti, que o gol saiu aos 39 minutos, deixei o tempo passar bastante. Ele vinha falar comigo e eu deixava. Cada minuto que passasse com ele falando comigo, era um minuto a menos de jogo. No pênalti, o juiz já não poderia terminar o jogo. E, nisso, o Lugano pegou ele na orelha e... Nem vou falar, porque vai virar uma situação embaraçosa. Em jogo é algo completamente aceitável, mas o Lugano falou tanto para esse cara... Quando acabou o jogo continuou! Eles escolheram rival na última rodada da fase de grupos para poder pegar um adversário mais fraco e nós pegamos o Palmeiras nas oitavas. Aí nos encontramos na semifinal e nos vingamos com essa vitória”.
O São Paulo se classificou para a final com vitória na volta por 3 a 0, mas perdeu o título para o Internacional com falha do goleiro no último jogo. Foi a maior derrota da carreira, mas Rogério se levantou rápido. No jogo seguinte, contra o Cruzeiro, no Mineirão, ele fez história no empate por 2 a 2, pelo Campeonato Brasileiro que abriu a série do tricampeonato para o Tricolor. Com dois gols, chegou a 64, superou Chilavert como maior goleiro-artilheiro e ainda defendeu um pênalti. A atuação e o recorde renderam um pôster do capitão, que relembra o dia ao ter em mãos a publicação especial.
“Estávamos perdendo e tínhamos acabado de perder a decisão para o Inter. Pego um pênalti, faço o gol e não lembrei que dava o recorde mundial. Só lembrei quando cheguei no gol, porque estava muito abalado ainda pelo meu erro. O futebol muda muito rápido. Na quarta eu era uma coisa e no domingo fui outra. Essa tem que ser nota 10 mesmo! Principalmente pela vitória psicológica, muito maior do que a técnica”.
Ceni chega à edição do tetracampeonato brasileiro, o primeiro dele pelo clube. Ao folhear as páginas, revê ex-companheiros e lembra com carinho do jogo que deu o título, contra o Atlético-PR, no dia 19 de novembro de 2006. Com gol de Fabão, o Tricolor empatou por 1 a 1, mas teve de aguardar para comemorar. Ceni se confundiu e achou que o time tivesse vencido naquele dia. Mas de fato venceu.
"Tive uma lesão na panturrilha e voltei em 12 dias para poder jogar. O Bosco faz dois jogos anteriores, mas eu consegui voltar com dor. A gente ganha, mas fica dentro do campo esperando acabar o jogo entre Inter e Paraná. Esse outro é da festa, no dia seguinte (folheia a edição que mostra os bastidores da comemoração). Olha o Josuca, ele vem! (sobre o volante Josué, que estará na despedida no Morumbi). Mineiro também, Lugano também, Souza, Muricy... O Kevin, filho do Souza, deve estar mais velho que o pai (risos)".
O título abriu a trilogia do Nacional, que tornou o Tricolor o primeiro hexa brasileiro. Foi fechada em 2008, depois de o São Paulo ter ficado com apenas 1% de chances de conquista, segundo os matemáticos. Foi contra a previsão, na última rodada, vitória por 1 a 0 sobre o Goiás.
"Lá em Gama! Foi o mais legal e mais difícil dos três títulos, porque o time não era mais tão forte, tão numeroso... Foram 11 pontos na virada de turno, 1% de chance, por isso levo que temos que acreditar sempre".
A partir de 2008, o São Paulo inicia um jejum de títulos, mas nem por isso Ceni parou de escrever capítulos memoráveis. Em 2010, foi do inferno ao céu nas oitavas de final da Libertadores, contra o Universitario (PER). No Morumbi, após dois 0 a 0, a decisão foi para os pênaltis e o capitão desperdiçou sua cobrança, pela primeira vez na história. Só que depois ele se redimiu em alto estilo. Ceni lembra do feito com a capa do dia seguinte, que rendeu a manchete "Só nós temos Rogério".
"Foi o único jogo em que perdi pênalti em decisão. Se não foi o único, tem só mais um. Eu perco o primeiro, mas pego o segundo e o terceiro. Aí vamos para as quartas de final. Sofremos só quatro gols nessa Libertadores".
O Tricolor cai nas semifinais para o Internacional e o jejum persiste. Só é quebrado em 2012, na final contra o Tigre (ARG), que não voltou para o segundo tempo após briga no intervalo quando o São Paulo já vencia por 2 a 0. Na edição do título, Ceni revê a imagem dele entregando a taça para o jovem Lucas erguer. O meia estava de partida para o PSG (FRA), onde está atualmente, e foi fundamental na campanha.
"Aah! Esse foi muito legal! Poder levantar a taça com o Luquinhas foi muito bom! Ele mereceu, foi o grande jogador do São Paulo naquela conquista, era a despedida dele. Aí imaginei que ele não seria capitão no PSG, não é?(risos), então decidi deixá-lo levantar a taça. Foi uma alegria que eu imagino ele levará para o resto da vida. É um menino muito bom, muito bacana e que ajudou a gente demais".
O CENTÉSIMO
Rogério pega a edição de 28 de março de 2011 e abre o sorriso. Também pudera: trata-se do registro do seu centésimo gol na carreira, justamente contra o Corinthians, o maior rival. O São Paulo venceu por 2 a 1 e fala de Ceni dá a dimensão. O goleiro fala enquanto folheia saborosamente um dia histórico. O goleiro fala enquanto folheia o jornal, cuja capa foi “M1TO”.
“Um gol super bacana, bonito. A bola entra na gaveta... Foi o único gol em que tirei a camisa em toda minha carreira. Primeiro por ser uma marca importante e segundo porque era o único clássico dentro de um espaço de tempo contra times menores no Paulistão. Uma única falta, uma única chance... O 99 foi na quarta-feira anterior em uma derrota por 3 a 2 para o Paulista em Jundiai, então foi muito rápido, numa chance só, em um lugar nem tão favorável. A bola estava passando muito pelo lado esquerdo, por isso pedi ao Carlinhos Paraíba que batesse. Ele olhou, viu que estava passando, mas falou: “Vai você mesmo, vai”. Os são-paulinos agradecem Paraíba.
O FIM
Desde 2013, Ceni vem adiando a aposentadoria. Hoje chegou o dia. Ele vai subir pela última vez ao Morumbi como jogador do São Paulo. Mas vai mesmo, Ceni? Não há nenhuma esperança de termos mais histórias para contar?
“No dia 11 (hoje), vou parar com certeza. Jogar no gol ou na linha é mistério até para mim, porque preciso melhorar do tornozelo. Que tenham outros capítulos! Depois que para, dá para falar mais vezes (risos). Eu devo ter, senão 100%, uns 90% de todas essas edições guardadas”.
Ainda tentamos, mas chegou o dia. Resta dizer obrigado ao Mito Rogério Ceni. O futebol ficará perderá uma lenda.