Luiz Gomes: ‘Futebol e poder’
Para quem tem mais de cinquenta anos, foi impossível não recordar capítulo da história ao ver o presidente Jair Bolsonaro com a camisa rubro-negra na tribuna do Mané Garrincha'
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No início da década de 1970, o período mais violento e obscuro da ditadura militar, era comum ver-se no Maracanã, em jogos do Flamengo ou da Seleção Brasileira, o general Emílio Garrastazu Médici, ditador de plantão nos Anos de Chumbo. Médici, que tinha sempre um radinho de pilha no ouvido, ocupava um lugar quase cativo na tribuna de honra do estádio e chegou a ser visto ao menos uma vez com a camisa do Flamengo. Mas, enquanto era entusiasticamente saudado pelo público das arquibancadas, nos porões dos quarteis e da polícia política, algumas centenas de brasileiros eram torturados e mortos, muitos desapareciam para sempre, sem deixar rastros.
Para quem tem mais de cinquenta anos, foi impossível não recordar esse capítulo da história ao ver o presidente Jair Bolsonaro com a camisa rubro-negra na tribuna do Mané Garrincha onde assistiu à vitória do Flamengo sobre o CSA, na quarta-feira à noite, tendo ao lado o Ministro Sérgio Moro, torcedor do Athletico Paranaense. Foi a segunda das três vezes em apenas uma semana que o presidente esteve em um jogo de futebol – já assistira com menos estardalhaço à goleada do Brasil sobre Honduras no domingo passado e viu a Seleção vencer a Bolívia na abertura da Copa America, na sexta, em São Paulo.
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Na era dos smartfones, que usa como poucos para alimentar seu twitter, Bolsonaro deixou de lado o radinho de pilha de Médici. Mas essa não é a diferença mais sensível entre os dois casos. Ao contrário do general de 1970, reconhecidamente um flamenguista roxo, embora fosse gaúcho e também torcedor do Grêmio, o capitão de 2019 é palmeirense. E no futebol do Rio, estado onde construiu sua carreira política, se diz simpatizante do Botafogo. Ou seja, não havia razão alguma a não ser a motivação política para Bolsonaro vestir – assim como o ministro Moro -, a camisa do Flamengo. Se isso não se chama demagogia, não sei que nome teria.
Vale lembrar que essa não é a primeira vez, desde que se elegeu presidente, que Bolsonaro procura tirar proveito do futebol, associando sua imagem à bola. Quando o seu Palmeiras conquistou o Brasileirão, em dezembro do ano passado, ele não só esteve no Allianz Parque torcendo como desceu ao gramado e, em meio aos jogadores, à comissão técnica e aos cartolas, teve o privilégio de erguer a taça como se o título tivesse ajudado a ganhar.
O gesto na arena palmeirense dividiu a torcida do clube. Um reflexo do Fla x Flu que opõe por qualquer coisa a sociedade brasileira de hoje em dia. Uma enxurrada de memes invadiu as redes sociais – muitos fazendo referência à camisa pirata que Bolsonaro usava. Sobraram críticas à diretoria alviverde por permitir a presença do então presidente eleito dentro do campo e.com a taça na mão. Assim como, do outro lado, foram muitas também as manifestações de apoio.
O mesmo embate repetiu-se agora, após o jogo do Flamengo. Embora tenha sido aplaudido por boa parte da torcida quando sua presença foi percebida no Mané Garrincha, Bolsonaro apanhou feio exatamente no ambiente em que mais se sente à vontade, desde a época em que era deputado: as redes sociais. Foram largamente desfavoráveis a ele as manifestações de torcedores rubro-negros, não necessariamente por divergências político-ideológicas, mas em grande parte pela absoluta falta de vínculos do presidente com o clube. Tão surrada quanto ele só a diretoria do Flamengo quando o twitter do clube reproduziu a foto de Bolsonaro com a camisa rubro-negra, fosse isso um grande feito. Pelo menos dessa vez, era um modelo oficial para desilusão dos memistas.
Não se trata de ser ou não a favor do governo Jair Bolsonaro, de gostar ou não do presidente, suas ideias, suas práticas. O que fica desse episódio todo é a triste constatação de que, meio século depois da manipulação do governo Médici, o futebol continua a ser um instrumento útil nas mãos dos políticos, um campo aberto à comportamentos demagógicos, seja para desviar as atenções, como em 70, ou, como nos dias de hoje, para afirmar a popularidade de quem governa.
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