Especialista critica protocolo da Ferj que recomenda retorno do futebol: ‘Uma ilusão e total desserviço’
Em entrevista ao LANCE!, pesquisadora em saúde e membro do comitê técnico de combate ao coronavírus da UFRJ, Chrystina Barros, analisou desejo de volta às atividades no Rio
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Com apoio de 14 clubes do Rio de Janeiro, que não incluíam Botafogo e Fluminense, a Ferj publicou, na última sexta-feira, uma nota na qual reforçava o desejo de retorno às atividades "o mais breve possível". Os clubes firmantes se disseram prontos para reiniciar os treinos de "forma responsável, sob vigilância, sem aglomerações ou presença de público". Junto foi apresentado o protocolo médico "Jogo Seguro", com recomendações de segurança para a volta às atividades. O LANCE! conversou com pesquisadora e integrante do comitê técnico de combate ao coronavírus da UFRJ, Chrystina Barros. A especialista fez duras críticas ao documento e afirmou que as medidas propostas não garantem um jogo 100% seguro para os envolvidos.
– Não é possível o retorno de treinamentos e, muito menos, dos jogos, mesmo sem público. Existe uma ilusão de achar que protocolos vão garantir um jogo de futebol 100% seguro. É um total desserviço que o esporte presta. Seria ir na contramão de tudo o que o mundo faz. O Rio de Janeiro trabalha hoje com a possibilidade de lockdown, nós estamos em um número ascendente de óbitos. Quaisquer medidas como as que são propostas, quando aplicadas, podem diminuir riscos, mas é impossível garantir, hoje, que não haja transmissão. Você pode fazer a limpeza a cada uso de banheiro ou vestiário, mas duas pessoas em um mesmo espaço representam um alto risco de contaminação. A proposta é submeter esse jogador a um possível contágio. Nenhum protocolo consegue dar conta ou prever isso – criticou Chrystina, que tem com 25 anos de experiência na área de saúde.
A pesquisadora também destacou a função social do esporte como referência de saúde para a população. Para ela, este é o momento dos clubes reforçarem o exemplo de respeito ao isolamento e medidas de combate ao vírus e não o contrário.
– O esporte precisa inspirar saúde e isso vem, fundamentalmente, pelo exemplo. Qual exemplo o futebol está dando? Futebol é um esporte de contato. Como vamos garantir que pessoas que vivem em comunidades não vão usar seus campos de futebol para replicar o que seus ídolos fazem nos gramados? Estádios no Brasil foram transformados em hospitais de campanha. Como vamos jogar bola entre camas e respiradores? Como os times vão disputar um esporte com uma proposta de saúde tendo ao lado pessoas que enfrentam a morte em condições improvisadas? – questionou a especialista.
Confira as repostas completas de Chrystina Barros ao LANCE!:
A senhora acredita ser possível o retorno dos treinamentos neste momento? E dos jogos sem público?
Não é possível o retorno de treinamentos e muito menos o dos jogos, mesmo sem público. O esporte precisa inspirar saúde e isso vem, fundamentalmente pelo exemplo. Qual exemplo o futebol está dando? Existe uma ilusão de achar que protocolos vão garantir um jogo de futebol 100% seguro. Como vamos garantir que pessoas que vivem em comunidades não vão usar seus campos de futebol para replicar o que seus ídolos fazem nos gramados? É um total desserviço que o esporte presta. Seria ir na contramão de tudo o que o mundo faz. Só para lembrar, o Maracanã, maior símbolo de futebol no Rio de Janeiro, está ocupado por um hospital de campanha. Muitos outros estádios no Brasil também foram transformados em hospitais de campanha. Como vamos jogar bola entre camas e respiradores? Como os times vão disputar um esporte com uma proposta de saúde tendo ao lado pessoas que enfrentam a morte em condições improvisadas. Nossos estádios hoje são hospitais de guerra. Isso é incompatível com qualquer proposta de se tentar retomar um jogo.
No protocolo conjunto ficou determinado, entre outras medidas, a instalação de dispensers com álcool em gel, que cada jogador vá sozinho em seu carro já vestido para a prática de atividades, a realização de treinos que busquem isolar ao máximo os envolvidos e a aplicação de testes Rápido em todos os jogadores e seus contactantes domiciliares. Essas ações são suficientes para garantir a volta às atividades com segurança?
As medidas técnicas propostas tentam contemplar ao máximo a transmissão do vírus. É óbvio que a gente preconiza o álcool em gel, cita-se a desinfecção de vestiários, que as roupas sejam levadas pelos próprios atletas para casa, mas isso tudo significa que pessoas serão colocadas circulando no mesmo espaço. O Rio de Janeiro trabalha hoje com a possibilidade de lockdown, nós estamos em um número ascendente de óbitos. Mesmo que a gente não tenha testagem suficiente para toda a população, o Rio tem praticamente a metade da população de São Paulo quando comparamos as duas capitais e, apesar disso, já tivemos mais óbitos por dia do que lá. O Rio de Janeiro vive um franco processo de subida dessa curva. Qualquer deslocamento torna-se um risco. O futebol é um esporte de contato. Não consigo imaginar que eles entrem em campo de máscara. Não consigo ver em uma falta em que dois jogadores se chocam ou situações em faem muito próximos, que antes peçam licença para a máscara. É um esporte de contato inevitável que não deve acontecer agora. O COI adiou a Olimpíada, exatamente dando o exemplo que a gente precisa neste momento. Por mais que se recomendem testes rápidos, que inclusive, podem dar falso negativo, significa expor pessoas. Para além do aspecto técnico está o exemplo. Essas medidas não são suficientes para garantir a volta do futebol com segurança. Precisamos fazer o isolamento total e evitar qualquer tipo de aglomeração.
Para os integrantes da comissão técnica e do staff que pertencem ao grupo de risco em função de idade e comorbidades foram recomendadas medidas como distanciamento, participação por vídeo, ou mesmo troca por funcionários mais jovens de outros departamentos. Essas são medidas suficientes para impedir o contágio dessas pessoas?
É claro que pensar em destacar integrantes da comissão técnica que façam parte do grupo de risco é uma tentativa, mas é preciso ter o serviço de fisioterapia, como é considerado no próprio protocolo, o serviço médico. Imagina que durante uma partida um jogador tenha algum tipo de lesão que precise ir ao hospital. Ele vai ocupar uma ambulância, que vai estar à disposição dele, quando deveria estar servindo à população. Vamos travar um recurso de saúde para 22 jogadores. Esses jogadores serão atendidos em hospitais com muitos pacientes internados com COVID-19. A proposta é submeter esse jogador a uma possível contaminação em nome de se retomar o futebol. Nenhum protocolo consegue dar conta ou prever isso.
A senhora leu o protocolo "Jogo Seguro"? Algum ponto ficou contraditório ou causou dúvidas? Considera um protocolo adequado de acordo com as recomendações da comunidade médica e científica?
Qualquer medida como as que são propostas, quando aplicadas, podem diminuir riscos, mas é impossível garantir, hoje, que não haja transmissão. Você pode fazer a limpeza a cada uso de banheiro ou vestiário, mas duas pessoas em um mesmo espaço representam um alto risco de contaminação. Futebol é um esporte de contato e precisa dar o exemplo. Campos de futebol são hospitais de campanha. O Rio de Janeiro caminha para o lockdown. Mesmo que não haja público, haverá mobilização de pessoas em uma atividade que não é essencial. Não existe nenhum argumento consistente para esse retorno. Como o próprio protocolo diz, é preciso autorização das autoridades competentes. Neste momento, as autoridades recomendam que toda atividade que não é essencial não retorne. O futebol é importante para que sirva de exemplo. Que os clubes sigam promovendo ações sociais, estimulem seus atletas a seguir com os treinamentos de casa. Em definitivo, não há a menor condição para o retorno aos campos de futebol seja em treinos ou jogos.
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