A fábula "A Cigarra e Formiga", creditada a Esopo e Jean La Fontaine, conta uma história em que a primeira protagonista vive um verão de prazeres, enquanto a segunda trabalha para abastecer o formigueiro pensando no inverno de vacas magras. É deste conto que Amir Somoggi lança mão para fazer o balanço financeiro de 2019 dos clubes brasileiros. Para o sócio da Sports Value, uma das maiores empresas de marketing esportivo do mundo, a última temporada, assim como na fábula milenar, premiou o planejamento. Em especial, o de duas equipes.
-Pela primeira vez no futebol brasileiro a boa gestão venceu a gestão irresponsável. A minha visão de 2019 é essa. No geral, quem ganha? É o Cruzeiro, é o Corinthians, ganhou o Fluminense. No geral, os campeões do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil, são times gastões sem muito controle, que não pagam impostos. Geralmente, as más práticas de gestão levam ao título. Dessa vez, Flamengo e Athletico-PR venceram as duas competições nacionais. Enquanto o Flamengo é o maior do Brasil, o Athletico entre os grandes é o menor, tem apenas 1% de torcida. Mas os dois fecham com superávit, só que um gasta 200 milhões com futebol por ano, e o outro 500, 600 milhões. Porém, na prática, seguem o mesmo modelo de controle orçamentário. Não sonegam impostos e têm uma gestão responsável - comentou o especialista em gestão, com exclusividade ao LANCE!.
- É a fábula da cigarra e a formiga. O Corinthians, por exemplo, estava lá, sonegando, fazendo tudo errado, gastando R$ 300 milhões com futebol e sendo campeão. O Flamengo do Eduardo Bandeira de Mello estava pagando dívida de 30 anos, controlando orçamento e com metade dos gastos de futebol do Corinthians, naquela época. Mas a médio prazo, o Corinthians entrou numa situação financeira terrível, vai fechar 2019 com prejuízo enorme, enquanto o Flamengo está super equilibrado - justificou o empresário.
CONFIRA O BATE-BOLA COM AMIR SOMOGGI
LANCE!: O Palmeiras conseguirá competir com o Flamengo a nível de receita?
Amir Somoggi: O Palmeiras tem que ser analisado separadamente porque ele tem muita ajuda. Começou com o Paulo Nobre e depois com a Crefisa, que não é só patrocínio. A Crefisa tem jogador, pelo que eu entendi banca salário, então você tem um doping financeiro, porque os outros clubes não tem isso. Não considero correto. O cara pode argumentar: 'Mas o Flamengo ganha muito da Globo', mas isso é regra do jogo, foi acordado pelos clubes. No entanto, o Palmeiras merece destaque. Não colocaria no mesmo patamar de Flamengo e Athletico-PR pela ajuda, mas não tiro o mérito. Tem muito clube que recebeu ajuda e está numa situação ruim. O São Paulo, por exemplo, é um clube que gasta muito e está mal das pernas.
L!: Apesar do investimento, o Alviverde teve um 2019 sem conquistas e agora adota uma política de maior austeridade. Qual sua previsão para o 2020 do clube?
AS: O Palmeiras vai ter um ano difícil porque terá o Flamengo à sua frente e tem um dos maiores custos com futebol. Porque em 2018 (último balanço divulgado), fechou com 518 milhões de custos, o maior do Brasil. O Flamengo vinha gastando, há dois anos, 351 milhões. Agora, vai superar 500, pelos meus cálculos, porque o balancete de 2019 aponta para isso. Então o Palmeiras perde o posto de mais "gastão", com a diferença que o Flamengo criou uma base de sustentação. O Bandeira de Mello subsidiou o futuro do clube. Ao invés de hipotecar o futuro. O Flamengo aumentou dívida porque contratou jogador, e essa é a melhor dívida. Você traz os melhores jogadores da América, Gabigol, Bruno Henrique, Rafinha, que fizeram a diferença dentro de campo.
L!: Esta é a principal diferença entre o paulistas e cariocas, apesar da semelhança nos gastos?
AS: É como comparar o Barcelona do Guardiola e o Chelsea do Mourinho. Os dois tinham valores próximos, mas um é o time mais lindo do mundo, com um futebol mais vistoso, e o outro vence por 1 a 0. Acho que o Palmeiras vive essa crise porque tem dinheiro e não joga com tanta qualidade. Assim como Corinthians, São Paulo, o Grêmio, o Cruzeiro e Internacional, que são gastões. O Flamengo está sozinho neste patamar de gastão e bom futebol. Os títulos criam o que o Bandeira de Mello não viu, e que o Landim está colhendo os frutos: o círculo virtuoso. Ele investiu, deu certo e aumentou a receita. É mais venda de camisas, é mais camarote, é mais bilheteria, tudo vai se multiplicando, além da venda de jogador. Hoje o Fla é o maior vendedor de jogadores jovens do Brasil, o que não era. Eu sou contra venda de todos os jovens, mas ao fazer isso, você valoriza sua marca, valoriza o clube.
L!: Na outra ponta da conversa está o Cruzeiro, em crise financeira profunda...
AS: O Cruzeiro não é o culpado, o Cruzeiro é apenas o símbolo do futebol brasileiro. Porque o Corinthians é igual, o São Paulo é igual, o Inter, o Atlético-MG, o Santos...O Santos vai fechar 2019 com 70, 80 milhões de prejuízo. Foi vice-campeão (brasileiro) com 70 milhões de prejuízo. Não teve um ano que o Cruzeiro foi campeão e fechou com lucro. Na minha opinião, o Cruzeiro é aquele típico clube que ganha 250 e gasta 300. E com 300, ele só fica atrás de Palmeiras, Corinthians e Flamengo entre os mais gastões. Na ordem, vêm São Paulo, Grêmio, Inter, Atlético-MG, Santos, Fluminense e Athletico-PR. Porque o Athletico-PR é eficiente? Porque ele gasta menos que o Fluminense e é campeão da Copa do Brasil, por isso o títulos títulos de Athletico-PR e Flamengo são tão importantes.
L!: E como o Athletico-PR consegue ter sucesso sendo apenas o 11º em gastos com futebol?
AS: O Athletico é um caso à parte. Mesmo não sendo um clube de massa, é um dos maiores do Brasil em ativos - tem um estádio impressionante e um CT. Recebeu ajuda do Governo para terminar a Arena para a Copa, mas até aí, fez tudo sozinho. Além disso, sempre foi um grande vendedor de jogadores. Vende e reinveste. O Athletico-PR gasta R$ 150 milhões com futebol. Vai aumentar no balanço de 2019. Chegou a 197 milhões de faturamento. O Coritiba, por exemplo, fatura 100, recebendo o mesmo de TV que o rival.
L!: O Bahia também tem sido apontado como símbolo de boa gestão.
AS: O Bahia cresceu. Cresceu em faturamento, em sócio, em venda de jogador também, e tem um gasto de R$ 94 milhões. O Botafogo, por exemplo, gastou R$ 112 milhões. Em 2015, o Bahia gastava R$ 47 milhões. Ou seja, ele dobrou de tamanho em quatro anos, e isso é um ótimo número. Ele saiu de um faturamento de R$ 84 milhões para R$ 136 milhões neste mesmo período. Então o Bahia investiu no departamento de futebol visando a conquista de títulos. O Brasileirão, gastando em torno de 100 milhões, fica impossível. Está faltando para o Bahia criar um ciclo de investimento. Para mim, o Bahia deveria focar 100% de seus esforços na conquista da Sul-Americana, porque seria o engate para novos valores de patrocínio, retorno de mídia…O clube está tentando se estabelecer entre os 10 do Brasil, e isso é ótimo. O exemplo é o Athletico-OR. O problema é que o Bahia tem uma dívida monstruosa, enquanto estão em uma situação confortável.
L!: Cariocas como Fluminense e Botafogo, por exemplo, deveriam seguir o modelo do Furacão?
AS: Em relação a Botafogo e Fluminense, eles são pequenos em tamanho de torcida, mas são mal explorados. Porque além do Rio de Janeiro, eles têm torcida espalhada por todas regiões do Brasil. Então, é preciso analisar estratégias de marketing para aproveitar essa característica. Para sobreviver neste mundo de Palmeiras, Flamengo, Flu e Bota terão de ser muito eficientes na maximização de receitas. Poucos clubes crescem na parte social como o Fluminense, e isso pode atrair investimentos, mas é algo que o clube nunca explorou, na minha opinião. E o Botafogo precisa rejuvenescer a torcida e utilizar melhor o estádio. O Botafogo precisa fazer um projeto para atrair mais público para o Engenhão, é lá que está a receita do clube.
L!: Falando o Botafogo, como você enxerga a mudança geracional do clube para o modelo S/A?
AS: O cara que botar dinheiro no Botafogo é um herói, porque ele estaria comprando um clube numa situação financeira dramática, com uma dívida astronômica, uma receita baixíssima, num ambiente de negócio que poucos sabem fazer crescer. Quem gerir o Botafogo tem que ser de Marketing, que entenda como atrair público para o estádio, como vender camisa, que consiga transformar o Botafogo em um produto de alto nível. Não adianta virar clube empresa se não tiver receita entrando dentro da firma.
L!: No Rio, surpreendeu a adesão da torcida do Vasco ao programa de sócio-torcedor do Cruz-maltino, após uma promoção. Este é o caminho?
AS: O sócio-torcedor tem um viés. Se você é bom de bilheteria, você pode fazer o ST bem baratinho e viver da bilheteria. Não é o caso do Vasco. Se você tem bilheteria baixa, você tem que fazer um programa rentável. Os gaúchos, por exemplos, ganham pouco em bilheteria e muito em sócio-torcedor. O ST do Vasco deve dobrar de faturamento, de R$14 milhões para R$ 28 milhões, vai ser ótimo. O trabalho é rentabilizar, fazer campanha o ano todo. O Vasco fatura muito pouco, a diferença para o Flamengo é absurda, não poderia ser tão grande. O Vasco é como o Palmeiras. Este cresceu para se tornar outro nível de clube, e o Cruz-maltino precisa passar por este processo. Assim como Santos, que é um clube histórico, mas que não alavanca suas receitas, é o antepenúltimo na média de público, não dá. O Vasco vai ter que repensar seu futuro. Pode ser jogar no Maracanã, pode ser explorar sua força fora do Rio de Janeiro, entender que tem que modernizar sua gestão após um período de terra arrasada.
L!: Voltando ao Flamengo, qual seria o próximo passo para um clube que já tem sobrado financeiramente no Brasil?
AS: Para atingir o próximo patamar, o Flamengo precisa de um ídolo mundial. Mantendo as contas equilibradas, sem sonegar, o clube pode trazer um ídolo de ponta para alavancar no marketing. É isso que falta, o que o Gabigol não está conseguindo, porque ainda é um ídolo nacional, não deu certo duas vezes na Europa, ele não é esse cara. Mas o clube vai criando caixa para um dia poder um passo maior. A vinda do Neymar para o Fla, por exemplo, seria uma das maiores notícias para o futebol brasileiro.
L!: Especialistas apontam que, para gerar receita, os clubes de todo mundo não concorrem mais somente entre si, mas também com outros esportes, personalidades e os até os games...
- Hoje, o clube de futebol disputa com o entretenimento. Está claro. O caderno do Real Madrid vai concorrer com o caderno da princesa, do ˜Homem de Ferro". Hoje, não existe, por exemplo, estar nos games. O consumidor é gamer. O garoto de 0 a 28 anos, é gamer. Tem um estudo que eu preparei e ainda não publiquei: 61% da geração Y, no mundo, é gamer. E isso vai para outros mercados. Se um garoto brasileiro começar a gostar da NFL, ele para de comprar camisa do Corinthians para comprar camisa do Washington Redskins, por exemplo. O clube tem que pensar que ele não está isolado no mundo. Embora pareçam gigantes, os clubes brasileiros enfrentam uma concorrência muito grande.
L!: E como criar novas fontes de arrecadação?
O mercado feminino vai ser fundamental para o mercado do esporte. Não tem como crescer se não for pelas mulheres, não tem outro caminho. A mulher é 51% da população, e é a que menos pratica e consome esporte. Ou a gente muda essa realidade, ou a indústria vai estagnar. Então cada ponto percentual que você atingir de mulheres, mais milhões são injetados na indústria.